GIL VICENTE 29. O CLÉRIGO DA BEIRA (1526)

gonçalo

Resumo:

Um Clérigo e seu filho estão na caça. Parodiam uma reza com dizeres mundanos e cômicos a partir dos textos em latim, geralmente salmos. Um rústico, Gonçalo, traz coisas para vender, dois galos, um coelho e limões. É enganado e roubado por dois jovens que pretendem ser cortesãos. Um engraçadíssimo Negro, cujo falar é quase incompreensível, lhe rouba a bolsa, as roupas e o chapéu. Uma Velha aparece com uma jovem possuída por um espírito, Pedreanes. O espírito, depois de indicar ao rústico quem tinha roubado seus produtos, advinha o futuro e faz indicações astrológicas sobre alguns cortesãos.

GV097. Negro (fala)

Pato nosso santo paceto ranho tu e figo valente tu salve tera pão nosso quanto dão dá noves caro  he debrite noses já libro nosso gallo. Amem Jeju, Jeju, Jeju.

(fala: Jorge Teles)

 

Comentário:

Esta peça bem poderia se chamar O Rústico da Beira, já que é o vilão que aparece em todos os quadros, exceto no primeiro. É uma sequência de situações desencontradas, ainda que muito cômicas. O longo trecho do Negro, em que menciona bolsas mais rentáveis que a roubada e imita possíveis diálogos com um funcionário da corte, suas paródias do pai-nosso e do salve-rainha, conferem a esta obra o tempero que sua estrutura não tem (num certo sentido, esta peça lembra modernos roteiros de filmes da “nouvelle vague” e de Bolognini).
A parte final é semelhante à Farsa das Ciganas, quando alguns espectadores ouvem o seu horóscopo e alguns comentários sobre sua pessoa.

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GIL VICENTE 28. TEMPLO DE APOLO (1526)

o rústico

Resumo:

O próprio Autor se apresenta como Prólogo. Esteve doente e conta as engraçadíssimas visões que teve durante a febre, citando famosas mulheres em cenas corriqueiras e ridículas. Anuncia que o palácio virou um Templo de Apolo. Apolo gostaria de reformar o mundo e apresenta algumas idéias, ridicularizando os padres. Na frente do templo é colocado um Porteiro, que deve impedir a entrada daqueles que não são dignos do Imperador Carlos V e de sua mulher, Isabel, filha de Dom Manuel e irmã do rei português Dom João III. Em pares, chegam os Romeiros para a visitação ao Templo. São alegorias diversas dos servidores do Imperador. Entram o Mundo e a Flor da Gentileza. Depois Vencimento e Virtuosa Fama. A seguir o Cetro Onipotente e a Prudente Gravidade. E o Tempo Glorioso e a Honesta Sabedoria. Oram, pedindo favores para o Imperador e sua mulher. Vem um plebeu português, rústico. Desentende-se com o Porteiro, que não o quer deixar entrar. Vem Apolo e logo a seguir os outros Romeiros. Todos cantam  e dançam em homenagem à Imperatriz.

GV093. Dois Romeiros

Gloriosa gloria mia,
Vos seais muy bien venida;
Pues con vos vive la vida,
Tiempo es de mi alegria.

(cantam Gerson Marchiori e Rubem Ferreira Jr)

GV094. Vilão

Rogaré á Dios del cielo
Que era padre de mesura,
Que ou me case ou me mate,
Ou me tire de tristura.
Amor no puedo dormir.

(canta Jorge Teles)

Gv095. Romeiros

Pardeos, bem andou Castella,
Pois tem Rainha tão bella.

Muito bem andou Castella
E todos os Castelhanos,
Pois tem Rainha tão bella,
Senhora de los Romanos.

Pardeos, bem andou Castella
Com toda sua Hespanha,
Pois tem Rainha tão bella,
Imperatriz d’Allemanha.

Muito bem andou Castella,
Navarra e Aragão,
Pois tem Rainha tão bella,
E Duqueza de Milão.

Pardeos bem andou Castella
E Sicilia tambem,
Pois tem Rainha tão bella,
Conquista de Jerusalem.

Muito bem andou Castella,
E Navarra não lhe pesa,
Pois tem Rainha tão bella,
E de Frandes he Duqueza.

Pardeos bem andou Castella,
Napoles e sua fronteira,
Pois tem Rainha tão bella,
França sua prisioneira.

(cantam Graciano Santos e Rubem Ferreira Jr)

GV096. Apolo

Águila, que dió tal vuelo,
Tambien volará al cielo.

Águila del bel volar
Voló la tierra y la mar:
Pues tan alto fue á posar
De un vuelo,
Tambien volará al cielo.

Águila una Señora
Muy graciosa voladera,
Si mas alto bien hubiera
En el suelo,
Todo llevara de vuelo.

Voló el águila real
Al trono imperial,
Porque le era natural,
Solo de um vuelo,
Subirse al mas alto cielo.

(canta Gerson Marchiori)

Comentário:

Peça, como tantas outras, encomendada para uma ocasião específica, no caso a partida de Isabel, filha de D. Manuel, para a Espanha, onde se casaria com Carlos V. O início da peça é cômico mas a solenidade das falas dos Romeiros-Alegorias dão à obra um caráter de chatice oficial. A entrada do rústico devolve-lhe o sabor, até porque os textos das canções são brilhantes.
Observa-se que, para certas festividades, Gil Vicente era encarregado de criar um teatro mais superficial, sem enredo; apenas uma situação que permitisse fazer os elogios aos nobres portugueses a quem era dedicada a apresentação. Isto aconteceu com As Cortes de Júpiter e, agora, com este Templo de Apolo. A escolha do maravilhoso pagão permite que o clima da festa seja feérico, figurinos certamente exuberantes e textos bajuladores.
As duas canções fazem a exaltação à princesa Isabel, imperatriz após o casamento com Carlos V. Com toda certeza, foram feitas especialmente para a ocasião.

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GIL VICENTE 27. DOM DUARDOS (1525) 

flerida

Resumo:

Primalion, filho de Palmerim, imperador de Constantinopla, matou em duelo a Perequim. Dom Duardos, rei da Inglaterra, vestido de cavaleiro, chama a duelo Primalion, para vingar a desfeita à dama de Perequim. Percebendo que um dos dois valentes cavaleiros morrerá, o Imperador manda que a filha Flérida interceda e peça que se separem. Dom Duardos se apaixona por ela. Para estar junto dela, finge ser jardineiro, filho dos guardadores da horta. Flérida também se apaixona por ele, estando em conflito por amar a um homem de baixa condição que, no entranto, fala como um nobre. Diz-lhe ela: “você deve falar como se veste ou vestir-se como fala”. Após uma vitória em outro duelo, como cavaleiro estrangeiro, ele se mostra e os dois fogem para a Inglaterra.

GV084. Julião

Soledad tengo de ti,
O tierras donde naci.

(canta Graciano Santos)

GV085. Dom Duardos

Oh mi pasion dolorosa,
Aun que penes no te quejes,
Ni te acabes ni me dejes.

Dos mil suspiros envio,
Y doblados pensamientos,
Que me trayan mas tormentos
Al triste corazon mio.
Pues amor que es señorío,
Te manda que no me dejes,
No te acabes ni te quejes.

(canta Gerson Marchiori)

GV086. Flerida

Quien pone su aficion
Do ningun remedio espera,
No se queje porque muera.

(canta Kátia Santos)

GV087. Dom Duardos

Aunque no espero gosar
Galardon de mi servir,
No me entiendo arrepentir.

(canta Gerson Marchiori)

GV88. Flerida

Si eres para librar
Mi corazon de fadigas,
Ay por Dios tú me lo digas!

(canta Kátia Santos)

GV089. Dom Duardos

El galgo y el gavilan
No se matan por la prea,
Sino porque es su ralea.

(canta Geovani Dallagrana)

GV090. Julião

Este es el calbi ora bi,
El calbi sol fa mellorado.

(canta Graciano Santos)

GV091. Artada

Al Amor y á la Fortuna
No hay defension ninguna.

(canta Carmen Ziege)

GV092. Flerida, Artada e Dom Duardos

En el mes era de Abril,
De Mayo antes un dia,
Quando lirios y rosas
Muestran mas su alegria,
En la noche mas serena
Que el cielo hacer podia,
Cuando la hermosa Infanta
Flerida ya se partia:
En la huerta de su padre
Á los árboles decia:
– Quedáos á Dios, mis flores,
Mi gloria que ser solia;
Voyme á tierras estrangeras,
Pues Ventura allá me guia.
Si mi padre me buscare,
Que grande bien me queria,
Digan que Amor me lleva,
Que no fue la culpa mia:
Tal tema tomó conmigo,
Que me venció su porfía:
Triste no sé adó vó,
Ni nadie me lo decia.
Allí habla Don Duardos.
No lloreis mi alegría,
Que en los reinos de Inglaterra
Mas claras aguas habia,
Y mas hermosos jardines,
Y vuesos, señora mia.
Terneis trecientas doncellas
De alta genealogia:
De plata son los palacios
Para vuesa señoria,
De esmeraldas y jacintos
De oro fino de Turquía,
Con letreros esmaltados
Que cuentan la vida mia,
Cuentan los vivos dolores
Que me distes aquel dia
Cuando con Primalion
Fuertemente combatia:
Señora, vos me matastes,
Que yo á él no lo temia.
Sus lágrimas consolaba
Flerida que esto oía;
Fueronse á las galeras
Que Don Duardos tenia,
Cincuenta eran por cuenta,
Todas van en compañia:
Al son de sus dulces remos
La Princesa se adormia
En brazos de Don Duardos,
Que bien le pertenecia.
Sepan quantos son nacidos
Aquesta sentencia mia:
Que contra la muerte y amor
Nadie no tiene valia.

(canta Jorge Teles)

Comentário:

Dom Duardos foi a peça escolhida por Everett W. Hesse e Juan O. Valencia para figurar no livro El Teatro anterior a Lope de Vega, da Editora Ediciones Alcalá, S.A., Madrid, de 1971. Segundo os autores, no prefácio referente ao autor português, “Gil Vicente es la figura más importante del teatro español durante el reinado de Carlos V… la contribuición más importante de Gil Vicente al teatro consiste en la estilización poética de la realidade, la cual confiere a su obra rapidez y gracia, carácter simbólico, y conocimiento profundo de la naturaleza humana, debido a la catarsis poética de los personajes vicentinos.”
Dom Duardos… eis Gil Vicente num de seus mais impressionantes momentos. De acordo com todos os críticos, foi a primeira vez em que um tema dos livros de cavalaria subiu ao palco. A linguagem, antes, quase sempre de pastores e camponeses, agora é elegante, espirituosa. Gil Vicente faz com que o protagonista nos brinde com três solilóquios: estamos não mais diante de um confronto entre personagens, mas diante de um confronto de personagem consigo mesmo; há então um aprofundamento do conflito com sua dilaceração dolorosa (não nos esqueçamos dos solilóquios de Hamlet). O grande tema desta peça é o amor. Diz Dom Duardos: “o amor que aqui me trouxe, ainda que eu seja humilde, ele não o é”. E há também nesta obra um aprofundado relacionamento entre personagens e a paisagem onde agem, no caso, o jardim de Flérida.
Se o tema medieval por excelência era a morte e as figuras flutuassem entre alegorias celestiais e demoníacas alegorias, aqui se vê corações e mentes em conflitos apaixonados, deambulando em espaços físicos bem definidos. Duzentos anos antes Giotto fizera o mesmo com a pintura: deu chão e paisagem para suas criaturas. Gil Vicente ainda não é renascentista, como os italianos seus contemporâneos, mas já não mais é medieval. Ousaria garantir que justamente nisto está sua glória maior.

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