curitiba, curitiba

Canções diversas 11: CURITIBA, CURITIBA. 
Eu quero, agora, cantar Curitiba,
cidade branca, limpa e sandia,
pedindo à Musa que me não proíba.
 
Quero cantar miséria e alegria,
munido de poética coragem
e equipado de inspirada ousadia.
 
Começo, então, essa minha viagem
procurando arrolar seus disparates,
o seu trabalho e sua vadiagem.
 
Rua das Flores, dolés, chocolates,
cafés e churros. Todos misturados,
estelionatários e engraxates,
 
mendigos, bichas loucas, advogados,
confusão de inquietos e teimosos,
de ofendidos e de humilhados.
 
Boca Maldita, encontro de ociosos
com o linguajar ferino criticando,
mas sem nada assumir, de tão medrosos.
 
Batel, com suas bruxas convidando
outras bruxas pros chás beneficentes,
e o jornalista idiota, publicando
 
suas recepções e seus presentes,
suas viagens pela Argentina,
seus filhos belos, vis e delinqüentes.
 
Enquanto as filhas, diante da vitrina
discutem de vestidos dispensáveis
pra debutar a vaidade cretina.
 
Nas marechais, políticos vendáveis,
executivos, ladrões, contadores,
corruptos, banqueiros execráveis,
 
subornos, mordomias, mil horrores,
tudo de acordo com a justiça cega
e a proteção dos desembargadores.
 
E o dinheiro secreto escorrega
pros cofres da canalha protetora
que despoja, assassina e sonega.
 
Rua Riachuelo, a domadora
provocando o passante com o convite
em troca da moeda enganadora.
 
Sede das pragas mil de Afrodite,
fome e dor simuladas e escondidas,
nas máscaras de um prazer sem limite.
 
Madrugadas eternas e sofridas,
batidas, cassetetes, frio e sono,
té que o sol afugente as desvalidas.
 
Passeio Público, o filho sem dono,
filho que é só filho da empregada
mal paga pela mãe do abandono.
 
Na areia a criança é negligenciada
enquanto a pobre moça fica à espera
do soldadinho que está de emboscada.
 
Nas áreas verdes, a alegria austera
dos papais e mamães endomingados
que a TV anunciou a primavera.
 
Em volta disso tudo, os amontoados
de cães, caixotes, latas, ferro velho,
lixo e alguns casebres definhados;
 
as roupas com remendos no joelho,
nas panelas só cabeças de bagre,
os bens aventurados do evangelho.
 
Filhos do fel diário e do vinagre,
disputando o diabólico pão:
sustentáculos do podre milagre.
 
Guabirotuba, Xaxim, Boqueirão,
Abranches, Oficinas, Barigüi,
Pinheirinho, Los Angeles, Portão,
 
Juvevê, Vila América, Tingüi,
Uberaba, Boa Vista, Cajuru,
Barreirinha, Cabral, Bacacheri,
 
Bigorrilho, Água Verde e Ahu,
Alto da Quinze, Mercês e Taboão.
Curitiba, querida, I love you.
 
Curitiba, 05.08.1980.
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canção da viúva

Canções diversas 02.

Nota: Em 1976, imaginei uma pecinha de teatro em que houvesse um velho rei, uma velha rainha, um príncipe inconstante e um bobo desaforado. A partir de um perfil apenas esboçado, faria as canções que definiriam cada personagem. Fiz a da rainha, a do rei, mas a do bobo desviou-se por um atalho inesperado, era a ditadura. Não sei se por esse motivo, a pecinha foi abandonada, tanto melhor. Ficaram os versinhos a seguir:

Canção da rainha: CANÇÃO DA VIÚVA


Morte negra, de asas de água,
Morte fria, de asas de sono.
A vida não passa de fonte de mágoa
Jorrando perdida num mundo sem dono.

Deixar quero este meu corpo escravo 
E que o nada revele-se a mim.
Da vida não quero tão amargo travo.
Mas quero da morte o silêncio e o fim.

Curitiba, setembro.1976
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agora e sempre

A ditadura da burrice 08: AGORA E SEMPRE


O pai, junto à hetaíra, comenta:
Ele merecia essa sorte.
A mãe, dedilhando a lira, lamenta:
Ele mesmo buscou tal morte.
O filho, acendendo a pira, proclama:
Não é bom criar problema.
O avô, copiando a Ilíada, exclama:
Não se deve contrariar
o sistema.

E Sócrates bebeu a cicuta. 
Lá fora o povo aplaudia.
E Sócrates bebeu a cicuta.
Afinal, isso não ocorre todo dia.

O pai, a contar denários, comenta:
Ele merecia essa sorte.
A mãe, a tecer sudários, lamenta:
Ele mesmo buscou tal morte.
O filho, a roubar dromedários, proclama:
Não é bom criar problema.
O avô, compondo a parábola, exclama:
Não se deve contrariar
o sistema.

E Cristo foi pregado à cruz.
Lá embaixo o povo aplaudia.
E Cristo foi pregado à cruz.
Afinal, isso não ocorre todo dia.

O pai, a erigir papados, comenta:
Ele merecia essa sorte.
A mãe, a trançar bordados, lamenta:
Ele mesmo buscou tal morte.
O filho, a quebrar tratados, proclama:
Não é bom criar problema.
O avô, ensinando a Escolástica, exclama:
Não se deve contrariar
o sistema.

Giordano Bruno foi queimado,
Ao redor, o povo aplaudia.
Giordano Bruno foi queimado,
Afinal, isso não ocorre todo dia.

O pai, a erguer capelas, comenta:
Ele merecia essa sorte.
A mãe, a mexer gamelas, lamenta:
Ele mesmo buscou tal morte.
O filho, a enganar donzelas, proclama:
Não é bom criar problema.
O avô, lendo o verso arcádico, exclama:
Não se deve contrariar
o sistema.

E Tiradentes foi enforcado,
Em volta o povo aplaudia.
E Tiradentes foi enforcado,
Afinal, isso não ocorre todo dia.

O pai, a fraudar falências, comenta:
Ele merecia essa sorte.
A mãe, a exigir decências, lamenta:
Ele mesmo buscou tal morte.
O filho, a viver carências, proclama:
Não é bom criar problema.
O avô, diante da Estatística, exclama:
Não se deve contrariar
o sistema.

Era eu, ou você, ou ele ou nós.
E a gente achando que entendia.
Sim, era eu, você, e ele e nós.
Afinal, isso nos ocorre todo dia.

Curitiba, 29.11.1977
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