GIL VICENTE 34. TRAGICOMÉDIA PASTORIL DA SERRA DA ESTRELA (1527)

o ermitão

Resumo:

A personagem Serra da Estrela, acompanhada de um criado parvo, convoca alguns pastores para visitar a Rainha que deu à luz, estando a corte na cidade de Coimbra. A rainha é Dona Catarina, mulher de D. João III. A criança é a infanta Dona Maria. Entre os pastores há enormes desencontros amorosos. Um Ermitão surge, pedindo esmola. Um pastor sugere que o Ermitão indique a cada um o seu par. Ele apresenta uns papéis, onde se lê as sortes dos pastores e são feitos os pares. A seguir o Ermitão faz desfilar uma série de condições para uma ermida onde gostaria de viver, nada santamente: “…uma cela larga… e que fosse num deserto d’infindo vinho e pão, e a fonte muito perto e longe a contemplação; … e que a filha do juiz me fizesse sempre a cama. E enquanto eu rezasse, esquecesse as ovelhas, e na cela me abraçasse e mordesse nas orelhas!” Gonçalo, um pastor, reage: “Está ali, padre, um silvado viçoso, verde, florido, com espinho tão comprido, e vós nu ali deitado… porque a vida que buscais, não na dá Deus verdadeiro”. A Serra lhes lembra que precisam ir até a Rainha. E enumera os produtos especiais da região que levará como presentes. Entram dois foliões, cada um canta uma canção. E juntos, todos cantam e dançam.

GV103. Gonçalo

Volaba la pega y vaise:
Quem me la tomasse.

Andaba la pega
No meu cerrado,
Olhos morenos
Bico dourado
Quem me la tomasse.

(canta Gerson Marchiori)

GV104. Felipa

A mi seguem dous açores,
Hum delles morirá d’amores.

Dous açores qu’eu havia
Aqui andão nesta bailia,
Hum delles morirá d’amores.

(canta Kátia Santos)

GV105. Catherina Meigengra

A serra es alta,
O amor he grande,
Se nos ouvirane.

(canta Carmen Ziege)

GV106. Fernando

Com que olhos me olhaste,
Que tão bem vos pareci?
Tão asinha m’olvidaste,
Quem te disse mal de mi?

(canta Jorge Teles)

GV107. Madanela

Quando aqui chove e neva,
Que fará na serra.

Na serra de Coimbra
Nevava e chovia,
Que fará na serra?

(canta Kátia Santos)

GV108. Rodrigo

Vayámonos ambos, amor, vayamos,
Vayamonos ambos.
Felipa e Rodrigo passavão o rio,
Amor, vayámonos.

(canta Rubem Ferreira Jr)

GV109. Lopo

E se ponerei la mano em vós
Garrido amor.

Hum amigo que eu havia
Mançanas d’ouro m’envia,
Garrido amor.

Hum amigo que eu amava,
Mançanas d’ouro me manda,
Garrido amor.

Mançanas d’ouro m’envia,
A melhor era partida,
Garrido amor.

(canta Kátia Santos)

GV110. Lopo

Ja não quer minha senhora
Que lhe falle em apartado;
Oh que mal tão alongado!

Minha Senhora me disse
Que me quer fallar hum dia,
Agora por meu peccado
Disse-me que não podia:
Oh que mal tão alongado!

Minha senhora me disse
Que me queria fallar,
Agora por meu peccado
Não me quer ver nem olhar,
Oh que mal tão alongado!

Agora por meu peccado
Disse-me que não podia.
Ir-me-hei triste polo mundo
Onde me levar a dita.
Oh que mal tão alongado!

(canta Graciano Santos)

GV111. Todos

Não me firais, madre,
Que eu direi a verdade.

Madre, hum escudeiro
Da nossa Rainha
Fallou-me d’amores:
Vereis que dizia,
Eu direi a verdade.

Fallou-me d’amores,
Vereis que dizia:
Quem te me tivesse
Desnuda em camisa!
Eu direi a verdade.

(canta Carmen Ziege)

 

Comentário:

Deliciosa pastoral de Gil Vicente. Mas uma pastoral bem diferente das que acontecerão na literatura a partir da segunda metade do século XVI, pois que aqui os pastores não são nada idealizados, não há modelo grego para definir características físicas ou de comportamento. Ao contrário, um realismo meio grosseiro perpassa a maioria das falas dos jovens. Exemplos: “Meigengra traz a saia descosida e não lhe dará um ponto. Oh, quantas lêndeas vi nela, e pentear, nem migalha”. “Aborrece-me Gonçalo como o cu do nosso galo!” Alguns dos diálogos entre os namorados lembram cenas semelhantes do Sonho de Uma Noite de Verão. Talvez o mais cativante dessa obra seja o grande número de canções populares, aqui, reproduzidas quase todas na íntegra.
O Ermitão tem uma função um tanto artificial, nada convincente, a não ser no momento cômico em que enumera as mordomias de sua pretendida ermida. Entra em cena já com papeizinhos onde estão escritos os versos que determinarão os pares.
Mas a comédia (chamada de tragicomédia, que era o nome dado às peças que serviam para comemorar algum acontecimento importante), certamente cumpriu o seu objetivo, que era embelezar as festas da comemoração pelo nascimento de uma filha do rei. Todo o clima é alegre, as cantigas encantam.

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GIL VICENTE 26. FRÁGOA D’AMOR (1525)

mercúrio

Resumo:

Um peregrino explica que Portugal está para conquistar um castelo espanhol, símbolo da rainha Catarina que se casará com o rei português, D. João III. Vênus entra chorando à procura de seu filho Cupido. Ele está organizando com outros deuses uma grande forja para refazer as pessoas, para que todos estejam à altura da rainha. Armou-se no palco um castelo com uma grande forja e de lá saem quatro deuses e quatro serranas, estas representando os quatro prazeres do amor: o olhar enamorado, o falar amoroso, o ouvir com amor, o ser fiel ao amor. Vem um negro. Entra na forja. As serranas cantam uma cantiga e os deuses batem os martelos. Sai o negro inteiramente branco mas com a fala estropiada como antes. Vem uma velha encurvada; é a Justiça, tem a vara torcida e a balança quebrada. Quer ter mãos menores para não receber tanto dinheiro de suborno. Entra na forja mas não endireita. Tiram dela as escórias dos subornos, duas galinhas, duas perdizes e dois sacos de dinheiro, após o quê, ela volta a ser bela. Um Frade quer virar leigo porque há demasiados frades em Portugal. Cupido pede uma Autorização de seu superior. Um Fidalgo quer voltar a ser criança. Outro quer rejuvenecer mas sem que diminua o dinheiro que possui. Volta o Frade com bastante carvão, para ser forjado de novo e se livrar dos afazeres religiosos. Após sua refundição, terminam a peça cantando.

… Peregrino (Vide Cortes de Júpiter, GV049)
Nunca fue pena mayor
Ni tormento tan estraño,
Que iguale con el dolor.

GV080. Romeiro

Donde estás que no te veo,
Que es de tí, esperanza mia?

(canta Gerson Marchiori)

GV081. Venus

Tristeza, quien á vos me dió,
Pues no fue la culpa mia,
No se la merecí, no.

(canta Kátia Santos)

GV082. Negro

Le bella mal maruvada
De linde que a mi ve,
Vejo-ta triste nojada,
Dize tu razão puruque.
A mi cuida que doromia
Quando ma foram cassá;
Se acordaro a mi jazia
Esse nunca a mi lembrá.
Le bella mal maruvada
Não sei quem cassa a mi,
Mia marido não vale nada,
Mi sabe razão puruque.

(canta Graciano Santos)

GV083. Serranas

El que quisiere apurarse,
Vengase muy sin temor
Á la fragoa del amor.

Todo oro que se afina
Es de mas fina valía,
Porque tiene mejoria
De cuando estaba en la mina.
Ansí se apura y refina
El hombre y cobra valor
En la fragoa del Amor.

El fuego vivo y ardiente
Mejor apura el metal,
Y cuanto mas, mejor sal,
Mas claro y mas excelente.
Ansi el vivir presente
Se pára mucho mejor
En la fragoa del Amor.

Quanto persona mas alta,
Se debe querer mas fina,
Porque es de mas fina mina,
Donde no se espera falta.
Mas tal oro no se esmalta,
Ni cobra rico color
Sin la fragoa del amor.

(cantam Carmen Ziege e Kátia Santos)

Comentário:

Gil Vicente não perdia a chance de exibir os pecados da sociedade, embrulhando-os numa visão crítica de ironia e zombaria. Percebe-se que à medida que seu trabalho era mais reconhecido (a rainha no caso era irmã do mais poderoso rei europeu, Carlos V), ganhava coragem e aumentava a dosagem do veneno moralizante que tinha em sua pena. Desta obra, diversas frases foram suprimidas pelo Index Católico. Considerando-se também a sua obra não teatral, cartas e sermões, percebe-se que devia gozar de um prestígio muito grande na corte. Brincando, sugeria mudanças. Aqui faz uma censura á venalidade da justiça e à quantidade de padres em Portugal, o que fazia diminuir o número de trabalhadores que produziam. Como acontece em algumas peças, há indicação de que a canção das serranas é de autoria do próprio escritor.

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GIL VICENTE 23. FARSA DE INÊS PEREIRA (1523)

lianor vaz

Resumo:

Inês não aceita sua condição social, panela sem cabo, presa em casa. A mãe discute com ela. Vem a comadre Lianor Vaz, esbaforida. Um clérigo tentou estuprá-la. (“Irmã, eu te absolverei com o breviário de Braga”). Lianor vem falar de casamento. Traz uma carta do pretendente. Vem o mesmo a seguir, mas não passa de um simplório inexpressivo. Inês o rejeita. pois quer um homem inteligente e que toque viola. Latão e Vidal, dois judeus casamenteiros, apresentam um escudeiro a Inês. Ele fala bonito e toca viola. Casam-se. O escudeiro transforma-se numa peste (“Já vos preguei as janelas, porque não vos ponhais nelas; estareis aqui encerrada, nesta casa tão fechada, como freira d’Oudivelas”). Vai para a guerra e morre. O primeiro pretendente herdou uma fazenda e Inês se casa com ele. Ele, ao contrário do primeiro marido, satisfaz todos os desejos dela. Surge, como Ermitão, um antigo namorado. Mora numa ermida. Inês, montada a cavalo no marido, vai visitar a ermida.

GV069. Latão

Canas do amor, canas
Canas do amor.
Polo longo de hum rio
Canaval está florido,
Canas do amor.

(canta Gerson Marchiori)

GV070. Escudeiro

Mal me quieren en Castilla.

(canta Rubem Ferreira Jr)

GV071. Latão

Pelo mar vay a vela
Vela vay pelo mar.

(canta Gerson Marchiori)

GV072. Todos

Mal herida iba la garza
Enamorada
Sola va y gritos daba.

(canta Geovani Dallagrana)

GV073. Ines

Quem bem tem e mal escolhe,
Por mal que lhe venha não sanoje.

(canta Jorge Teles)

 

GV074. Ines e Pero

Marido cuco me levades
E mais duas lousas.
-Pois assi se fazem as cousas.

Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos quero;
Sempre fostes percebido
Pera cervo:
Agora vos tomou o demo
Com duas lousas.
– Pois assi se fazem as cousas.

Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos amo,
Sempre fostes percebido
Pera gamo.
Carregado ides, noss’amo,
Com duas lousas.
– Pois assi se fazem as cousas.

(cantam Carmen Ziege e João Batista Carneiro)

 

Comentário

Gil Vicente era destratado por intelectuais como sendo um imitador de dramaturgos espanhóis, principalmente Juan de Encina. Sabe-se hoje que as influências foram recíprocas. Gil Vicente começou imitando mas, a partir de um certo momento, seu gênio explodiu em criações importantes que ditaram aos autores peninsulares os caminhos do teatro ibérico.
Foi-lhe dado como mote o provérbio: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube, para que, a partir daí, criasse uma peça teatral. Inês Pereira é o resultado do desafio. Considerada como sua mais perfeita comédia é um desfilar homogêneo de tipos e situações hilariantes.

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