conta outra vó 16. a aposta com o diabo

a aposta com o Diabo

A APOSTA COM O DIABO

   

a aposta com o Diabo

desenho de Ricardo Garanhani. 

Nota: Esta última historinha vem trazer a minha coletânea um tema muitíssimo repetido na literatura popular: uma disputa com o Diabo. Este tema tem lá suas variantes mais nobres e cheias de filosofia, até o seu tanto de metafísica; os dois exemplos mais fantásticos são o Livro de Jó, do Velho Testamento e o Fausto de Goethe (1749-1832). No caso dessas variantes mais nobres, não é o personagem que faz a aposta com o Diabo mas, estranhamente, o próprio Deus. Jó e Fausto são as vítimas da disputa, cada um simbolizando a cultura de sua época.
    A historinha contada por minha avó é uma de muitas que correm o Brasil. Na maioria delas, é a mulher que consegue o estratagema para vencer o Diabo, inconsciente remissão do pecado da pobre Eva, que caiu na tentação primeira. E na maioria, são historinhas com fundo erótico. Tudo a ver.

    Um homem muito pobre já estava cansado de passar necessidade. Um dia o Diabo apareceu e fez uma proposta:
    – Se quiser ficar rico, vamos fazer um contrato. Você vai ganhar dinheiro e ter saúde a partir de amanhã. Daqui a um ano voltarei. Se você me apresentar um trabalho que eu não consiga fazer, sua alma ficará livre e você continuará com todo o seu ouro. Mas se eu conseguir resolver o trabalho proposto, então levarei sua alma para os confins dos confins.
    O homem nem pestanejou. Achou que o prazo de um ano era suficiente para ele encontrar uma tarefa que o Diabo não conseguisse fazer. Disse que sim. O Diabo, num estouro de fumaça e cheiro de enxofre, desapareceu.
    No dia seguinte começaram os milagres. A mulher dele recebeu a visita de um homem da cidade, dizendo que ela tinha uma herança. O filho brincando no quintal encontrou enterrado um baú de ouro. E ele mesmo, indo pescar, encontrou à margem do rio uma bolsa cheia de dinheiro.
    Ah, que felicidade. A vida dos três mudou e o homem acabou esquecendo do contrato feito com o Diabo, como se sua riqueza fosse de fato por acaso.
    O tempo passou.
    O tempo passou mais um tanto.
    O tempo passou mais outro tanto.
    Um dia ele teve um pesadelo e acordou suado. Sonhou com a cara do Diabo respirando um ar quente junto da sua cara. De repente, lembrou-se de tudo.

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conta outra vó 15. o enigma

o enigma

O ENIGMA

       o enigma                                                

Nota: Historinhas em que o irmão mais novo, às vezes tido como bobo, leva a melhor, existem aos montes na literatura popular do mundo inteiro. Dentre as que eu conheço, a mais elaborada e mais poética é o maravilhoso relato bíblico da história de José. Historinhas em que um enigma é apresentado ao herói, sob pena de um grande castigo, em caso de erro, e com um grande prêmio, em caso de acerto, também são muito comuns. A de Édipo foi a que atingiu uma das mais altas expressões na literatura. Decifra-me ou te devoro, dizia a Esfinge aos passantes. Édipo desvendou o enigma, ganhou um reino com rainha e tudo, mas por trás dessa vitória o destino o premiava com a trágica fatalidade que ele acreditava estar evitando.
    Este pequeno conto de minha vó é parecido com a vida que ela viveu; ingênuo, humilde, despretencioso. O relato mínimo, expurgado de devaneios, imagens poéticas ou elucubrações sobre o destino humano. A simplicidade absoluta, para crianças que estão começando a compreender o mundo.

    Era uma vez três irmãos. O mais velho, o do meio e o mais pequeno. Tudo que os dois grandes queriam fazer, o pequeno também queria mas ele era meio abobalhado e atrapalhava tudo e os irmãos batiam nele e passavam pito.
    Uma vez os dois irmãos resolveram ir na cidade porque a princesa ia falar um enigma e quem adivinhasse ia casar com ela e ganhar a metado do reino. Mas, se não acertasse, ia ficar escravo no palácio.
    Aí o caçula disse que também ia. Os irmãos brigaram muito e falaram pro pai que ele ia atrapalhar tudo e que não queriam ter que cuidar de um irmão abobalhado.
    Mas o pequeno tanto tez e tanto fez, que o pai deixou e os três se foram.
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CONTA OUTRA VÓ 14. A MORTA-VIVA

a morta viva

desenho de Ricardo Garanhani

Nota: O sepultamento de pessoa ainda viva, tendo os sintomas de morta, sempre foi tema de narrativas terríveis. Allan Poe (1809-1849), como não podia deixar de ser, tem duas (Premature Burial e The fall of the House of Usher); na introdução da primeira, ele apresenta casos famosos em sua época. Numa novela cheia de emoções, Selma Lagerllöf (1858-1940) também narra a história de uma moça que acaba sendo resgatada do sepultamento (En herrgårdssägen -1899).
Uma observação que cabe aqui, também, é de como eram simples os contos de minha avó. Os analfabetos contavam e recontavam as historinhas e aos poucos ela se reduzia a uma matéria prima nua e crua, mantendo intacta apenas a essência do acontecido.

Era uma vez… um fazendeiro tinha uma filha. Ele era um viúvo muito rico e tinha muitos escravos e escravas e gado. Ele só tinha essa filha e gostava muito dela. Ela estudava música, ele trazia professores do litoral, e ela ia ficando prendada.
Vai que um dia a moça morreu. O fazendeiro ficou apaixonado e quase morreu de desgosto. Mandou fazer uma mortalha branca, muito rica, e pediu uma coroa de flores de laranjeira e um buquê e um véu de noiva. Naquele tempo as moças que morriam virgens não eram enterradas de roxo mas iam com uma mortalha de noiva, muito branca e muito linda. Aí o fazendeiro mandou que colocassem no caixão todas as jóias que eram da familia porque já não tinha mulher e nem filha e não queria vender nada daquilo.
Então as velhas lavaram a defunta, pentearam os seus cabelos, vestiram a mortalha que era o vestido de noiva e colocaram o buquê na mão dela e o véu na cabeça e a grinalda por cima do véu. Depois colocaram na moça as pulseiras e os colares e os anéis e os brincos.
Ela mais parecia uma filha de reis, de tão maravilhosa que ficou.

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