CONTA OUTRA VÓ 07. O SAPATINHO

o sapatinho

desenho de Ricardo Garanhani

    Nota: Há dois aspectos curiosos  neste conto de minha avó. O primeiro é sobre suas variantes mais antigas; conheço duas, uma derivada da outra. A história do homem que faz uma aposta sobre a virtude de sua mulher aparece primeiro no Decameron de Boccaccio (1313/1375), na nona novela da segunda jornada. E serve de modelo para um dos episódios de uma tragédia romanceada de Shakespeare (1564/1616), Cimbelino. Nos dois casos o sedutor entra no quarto da mulher dentro de uma arca. No conto de minha avó, o sinal da mulher, que serve como prova de que o sedutor descobrira a sua nudez, é escandalosamente exagerado, beirando o surrealismo.
O segundo aspecto é o estratagema usado pela mulher, para desmascarar o sedutor. É de muita imaginação. Nunca encontrei nada semelhante em outros livros.

    (Bagunça)
Se não ficarem quietos, eu não conto nada.
(Bagunça)
Era uma vez uma vaca amarela. Cagou na panela, três mexeram, três lamberam. Quem falar primeiro, come a bosta dela.
(Silêncio)

    Era uma vez uma linda mulher, cheia de virtude. Era bela e rica, pois seu marido era um mercador bem sucedido. Viviam bem, tinham tudo o que precisavam e gostavam um do outro.

    A mulher era invejada por todas as outras por ser tão rica e bem casada. O homem era invejado por todos os outros por ser rico e feliz e ter uma mulher tão virtuosa.

    O homem sempre fez muito alarde da virtude da mulher. Sucedeu que numa grande festa, depois de muitos e muitos copos de vinho, começaram os homens a falar de suas mulheres. O marido da mulher virtuosa, quase bêbado, gritou bem alto:

    – Pois todos sabem que nenhuma mulher se compara com a minha porque ela é a única de quem ninguém pode falar nada.

    Então um jovem novo na cidade falou:

    – Pois uma mulher virtuosa só é virtuosa até o dia em que deixa de ser.

    Todos riram e o marido, desfeiteado, falou:

    – Pois a minha será até a morte. Daria a minha vida para provar isto que falo.

    O outro gritou:

    – Elas não merecem metade da vida de um homem.

    – A minha merece.

    – A vida?

    – A vida.

    – Pois podíamos fazer uma aposta!

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CONTA OUTRA VÓ 02. A SANDÁLIA

a sandália

 

 (ilustração de Ricardo Garanhani)

Nota: No início dos anos 70 li o Decameron de Boccaccio. A quarta novela da sétima jornada me fez lembrar de uma das historinhas que minha avó contava. Havia variações quanto a local e detalhes mas a essência era a mesma. Fiquei pensando em outras histórias de minha avó, analfabeta. Fiz um levantamento de todas, ela contava e recontava a cada vez que pedíamos. Percebi que nas minhas leituras nunca tinha encontrado algumas daquelas histórias. E resolvi anotar todas, para não esquecê-las. O resultado foi esse Conta outra, vó. A Sandália, o segundo conto, é a variante encontrada no Decameron. 

    Era uma vez uma vez uma mulher muito linda. Era casada com um fazendeiro rico e tinham muitos escravos. Isto aconteceu quando o Brasil ainda tinha escravos negros.

    Certa feita apareceu um mascate cheio de novidades e a mulher comprou um lenço. Quando entrou no quarto e abriu o lenço pra enrolar nos cabelos, caiu um anel de rubi. Ela guardou o anel e quando ele voltou, dias depois, disse que o anel estava escondido dentro do lenço. Ele pegou o anel e olhou ela de um jeito muito especial e ela estremeceu inteirinha.

    Um mês depois ele voltou e ela comprou uma caixinha de jóias. Ele disse que ia embrulhar e ela não quis, mas ele tanto fez que ela consentiu. Ela entrou pro quarto e daí a pouco uma escrava veio com o pacote. A mulher estava cheia de aflição.

    Pois não é que o sem-vergonha tinha colocado um bilhetinho no porta-jóias? “Quero me encontrar com a senhora num lugar escondido.”

   A mulher não quis receber o mascate quando ele voltou, disse que não precisava de nada. Mas à noite o fazendeiro falou na janta que tinha empregado ele na fazenda, que ele ia fazer serviços de carpintaria. Ela ficou cheia de medo mas não falou nada.

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