bumba-meu-, reflexões…

BUMBA-MEU-, REFLEXÕES SOBRE UM TEXTO BASEADO NO BUMBA-MEU-BOI.

nota: Este texto foi escrito em 1983, por ocasião da montagem de Bumba-meu-, de minha autoria, pelo Grupo É Hoje.

    Bumba-meu-boi é um fato folclórico do Brasil, muito conhecido de nome. Já o seu enredo passa desapercebido com frequência. Principalmente para o povo do sul, distanciado geográfica e culturalmente do norte e do nordeste, que é onde o Bumba se apresenta na sua versão mais difundida.
    O fato folclórico tem, de uns tempos para cá, preocupado sensivelmente os cientistas sociais. Tem-se feito levantamentos, comentários, pesquisando-se o próprio fato, quando possível, ou entrevistando-se pessoas que participaram de eventos que não existem mais.
    De todos os trabalhos que se tem feito em torno do fato folclórico, geralmente são duas as mais importantes características apontadas pelos estudiosos:

    1. O fato folclórico nunca tem uma configuração definitiva; exatamente porque um de seus principais aspectos é que ele se transmite por via oral. Isto quer dizer que o exercício do folclore se faz de memória. Assim, uma brincadeira infantil, uma canção anônima, um folguedo popular, uma festa religiosa, dificilmente encontrarão registro por escrito, seja de sua parte falada, seja de suas partituras musicais, seja de sua coreografia. Não. As pessoas assimilam a sequência do fato, numa vivência integrada, memorizam e repetem quando novamente for ocasião. No geral, os velhos vão passando as tendências aos mais novos, e, no caso das festas em que há grandes textos declamados (bumba, guerreiro alagoano, folia de reis, etc), é costume manter-se a mesma pessoa desempenhando o mesmo papel, às vezes tão só improvisado, durante um bom par de anos.
    Essa tradição oral provoca uma série de consequências: a memória falha; algumas palavras sofrem alterações fonéticas, a ponto de se transmudarem em sons sem significado (por exemplo: uni, duni, tê, salamê minguê, significando: “um, dois, três”… e o quê mais?); algumas situações dramáticas perdem o sentido; outras se fazem necessárias. Vai assim o edifício do fato folclórico sofrendo lentas transformações ao longo do tempo: perde e ganha elementos. Às vezes perdas tão pequenas que se pode relacionar os fatos, ainda que distanciados na História: as panatenéias atenienses, longuíssimas procissões onde o elemento principal eram as virgens, em honra à “Virgem” Atena e as procissões que incluem meninas vestidas de anjinhos, no interior mineiro, para coroar a “Virgem”. Outras vezes, porém, as mudanças dão rumos tão distintos ao fato folclórico que é um espanto descobrir de que maneira elementos tão contraditórios ou de origem tão diversificada terminaram por se plasmar num fato tão sincrético: o natal, conta, por exemplo, entre outros, com elementos de mitologia nórdica – Papai Noel, de mitologia européia geral – o pinheiro, árvore que não “morria”, festejado pelo paganismo no solstício de inverno, 22 de dezembro, e mitologia cristã – o nascimento de um deus.

    2. O fato folclórico tende a desaparecer. As manifestações enfraquecem. Sabemos de vestígios de festas anteriormente grandiosas e hoje tristes e esfarrapadas. É um processo natural dentro da civilização; cresce a urbe e se renovam e se modificam seus interesses, por força das migrações; a escolaridade aumenta; a comunidade perde a força como um todo e se esfarelam isolados os seus elementos celulares; novos costumes – como a televisão, hoje, determinam o comportamento popular.

    Comparemos dois fatos folclóricos brasileiros, num período de 50 anos: Folia de Reis e Carnaval. A Folia de Reis deriva de festas em homenagem aos reis magos e costumam ser realizadas do natal ao dia de reis, seis de janeiro; o carnaval deriva de antigas festas pagãs, bacanais e saturnais, que os padres, por força da impossibilidade de conter a energia física e o sensualismo do povo, acabaram por acatar.
    Sabemos, por relatos, que, em 1935 a Folia de Reis saía “religiosamente”, então assumida pelos negros, que formavam a maioria da classe baixa: era um desfile rico e atraía todo o povo dos arredores, constituindo-se num acontecimento social muito importante. O Carnaval dividia-se em dois tipos de festejos: os pobres saíam às ruas, fantasiados com simplicidade, blocos de sujos, “escolas” de samba; os ricos saíam em desfiles de carros abertos, os “corsos”. Atualmente as poucas Folias que resistem são tristes, pobres, congregam em torno de si um pequeno grupo de crianças curiosas. O carnaval de rua se transformou numa imensa atração turística organizada e explorada pelo Estado e amparada pelos fundos populares e o dinheiro ilícito do jogo do bicho, enquanto uma parte da população se diverte nos clubes.
    Pode-se concluir que desaparece a Folia de Reis e se modifica o Carnaval.
    
    Há, porém, uma característica do fato folclórico que tem escapado à observação dos estudiosos, de modo bem generalizado:

    O fato folclórico costuma ser profundamente alienado.
(definição 9, para o verbete alienação, no Pequeno Dicionário de Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque: “falta de consciência dos problemas políticos e sociais”.)

    O fato folclórico deriva do povo e o povo na sua ingenuidade não está consciente da dinâmica de que é agente e em que é paciente. Um argumento muito simples para esta afirmação é: se o fato folclórico fosse embebido de alguma sugestão de mudança político-social, seria suprimido pelo Poder. Conhece-se exemplos disso: manifestações religiosas que um Estado intercepta, festas que um grupo religioso suprime ou exila, etc. Muito comumente, para se manter vivo, o fato veste roupas diferentes mas mantém sua essência original, como no caso das festas da umbanda, que os escravos fizeram coincidir com as festas cristãs.
    Um outro argumento para esta afirmação é que o fato folclórico é expressão popular e como expressão mantém as características do povo que a cria. De um povo sem participação no seu destino político não se pode esperar um ato político; seria como esperar encontrar numa expressão indígena um atributo que não é do índio ou pretender uma característica não infantil na expressão infantil.
    Pode-se afirmar, se a proposição for correta, que as manifestações folclóricas são, pois, inócuas, não provocativas, inconscientes do ponto de vista político-social e não modificam o universo dos “manifestantes”, a não ser no que diz respeito ao fixar mais ainda as tradições.
    No caso do Bumba, temos uma festa dramática (tem um enredo básico muito bem definido), em que, à maneira da Commedia dell’ Arte, improvisa-se às vezes em torno da ação. Conforme espaço e tempo, a caricatura do Bumba fere uns e elogia outros. Sabemos que o Bumba-meu-Boi é mais velho que o Brasil independente; e sabemos também que durante todo este período histórico o Bumba se manteve vivo, ainda que com as modificações lentas, que não alteraram sua trama nem lhe ameaçaram a existência. Logo, conclui-se, o Bumba é uma festa alienada. Não se trabalha aqui em torno do valor estético. Uma festa pode ser belíssima mas alienada. O Bumba é belíssimo e alienado (*). Quem, ao final, resolve todo o problema da ressurreição do Boi é o Pajé e não se pode esperar de um teatro popular fantasia maior que uma ressurreição conseguida por um Pajé. Visto por um prisma antropológico, é infantil como o caçador (menos místico) abrir a barriga do lobo e sacar a vovozinha viva, para que todos sejam felizes para sempre. O real fica num plano secundário.
    Pessoas “escolarizadas”, que, por força de sua consciência, apreendem o mundo de modo mais real, não exercem o folclore, se não como um jogo, uma brincadeira. Por isso é comum nos grandes centros urbanos e nos países de mais evolução racional, encontrar-se apenas manifestações musicais e de dança, enquanto as manifestações dramáticas que envolvem compromisso religioso ou de credo, se restrinjam aos meios rurais. Há ainda manifestações religiosas realizadas como puro teatro, pensemos nas suntuosas paixões de Cristo pelo mundo cristão afora. É difícil imaginar um grupo de universitários realizando uma encomenda de almas, um grupo de professores fazendo uma procissão do Encontro, um grupo de jornalistas organizando uma folia do Divino, por exemplos. Falta, para isso, a fé e a espontaneidade dos simples. Mas grupos desses níveis podem com tranquilidade dançar uma quadrilha junina, uma dança de pau de fitas ou uma ciranda de praia.
    De que maneira, então, seria possível organizar um bumba-meu-boi que pudesse demonstrar a força e o lirismo de um bumba verdadeiro, sem fixar a linha alienada e opressora que se mascara no bumba? Esta foi a exata tentativa do texto Bumba-meu-. Um bumba que, apesar de um questionamento também ingênuo, não seria encenado no Brasil de Getúlio ou no Brasil de Médici. Um bumba que não é bumba de todo mas se apossa da matéria-prima popular para questionar o folclore e os folcloristas, sem contudo desdenhar o poder criativo de sua trama e de seu colorido. Uma tentativa de revisão de um material folclórico, em que o povo é apanhado na sua mais aflitiva característica: a espera do milagre, que cria a inércia da esperança.

    Bumba-meu- é um folclore consciente.
    
    O folclore consciente é um jogo assumido enquanto jogo. A evolução dos povos não prevê outro caminho se não passar do folclore alienado para o folclore consciente. Chapeuzinho Vermelho dá lugar à Teologia da Libertação e o Pajé do Bumba cede a voz a discussões por uma Constituinte, como exemplos.

(*) nota acrescentada em 2011: não é por acaso que Roseana Sarney é madrinha de diversos bumbas no Maranhão; vá Catiró dizer que a eleição foi fajuta e a fada-madrinha vira bruxa; acaba com o patrocínio.

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bumba-bumba parte 2

PORNO-BUMBA

 

(atenção!, se você se escandaliza com facilidade, não continue a ler):


Nunca mais diga, de você: sou homossexual; ou voyeur; ou onanista; ou fetichista. Diga sempre: sou o que sou: sexuado.

Quem classifica as pessoas por preferências sexuais está apenas dividindo para enfraquecer e governar; ou para se enfraquecer e se deixar governar. 

(Alma Desdobrada, 1982)



MESTRE:

Boa noite, senhores.

Boa noite, senhoras.

Falei pra não virem

Mas já que insistiram

Vamos começar.

O Bumba-pornô

Vai se apresentar.


Sou o capitão

Pinto-mole chamado.

Tal nome me é dado

Por puro despeito.

Se vejo mulher

Já perco o respeito

E fico desfeito,

E vou dando um jeito

De arrumar os bolsos

Que é pra disfarçar!


Mas quero chamar

Nosso Incapataz!

Sujeito indecente,

Ótimo rapaz!

Só tem um defeito

Que eu vou já contar.

É que esse animal

Tem um pedestal

Que é descomunal.

Esse Incapataz

É tão anormal

No tamanho do pau

Que é mesmo bestial.

Maior que um jumento,

Mais grande que um burro,

Não existe unguento

Pra tanto talento

E nem vaselina

E nem margarina.

É mesmo um tormento.

Com tantas menina

Cá do lugarejo

Só sente desejo

Por sua burrica

Que é a Filomena.

Só ela é capaz

De guentar o Incapataz.


Bem feita de bunda,

Jeitosa de teta,

Ali ele afunda

A grande trombeta

E vai enfiando

Na sua buceta

E ela faz careta

De quem tá gostando

E faz pirueta

E balança o rabo,

Que é pra agradar.


Pois bem, meus amigos,

Vamos continuar.

Agora é a hora

Sonora e profunda

De entrar nossa banda,

A Banda dos Bunda!

Que banda mais bunda

Não vai se encontrar.


Esse violeiro, 

Sujeito matreiro,

Não pode ver bunda

Que pega o instrumento

E dana a tocar.

O atabaqueiro

De olheira profunda

Se vê uma bunda

Já fica excitado

E bate tão forte

Que o seu instrumento

Já está esfolado.

A moça do triângulo

Já está moribunda,

Triste, gemebunda,

Pois vê uma bunda

E fica a tocar.

O Zé do chocalho

Que nem um paspalho,

Já ficou grisalho

Com tanto trabalho.

Se vê uma bunda

Já pega o chocalho

E toca que toca

Que o pobre bandalho

Ficou em retalho.

O do reco-reco

Parece um boneco;

Olheira bem funda

De tanto que toca

Se vê uma bunda.

E assim essa Banda,

Essa banda imunda,

Vai levando a vida

Batendo e tocando

De frente e de lado,

Tocando e batendo

Com tanto cuidado

Que o instrumental

Tá sempre afiado.


E agora, senhores,

Preparem-se bem,

Escondam-se, cubram-se,

E bem protegidos

Nós receberemos

O Boi, nosso amigo.

O Boi, já lhes digo,

É um grande perigo.

Tarado igual

Nunca se verá.

Não pode ver fresta,

Buraco, abertura,

Que já desembesta

Armado e em fúria.

Um metro e quarenta,

Quem é que aguenta?


(todos se escondem; entra o Boi sozinho)


JORNALISTA:

O tamanho do pênis tem sido objeto de muitas frustrações por parte dos homens. A opinião dos psicólogos é de que…


(como o palco está vazio, o Boi se volta e desaparece)


MESTRE:

Pois bem, meus amigos,

Prestem atenção.

Vou chamar, então,

Nossos quatro heróis.

Catirina puta,

Catiró cornudo.

A criada Raimunda,

Que é boa de bunda,

E o Raimundo ordeiro,

Pobre punheteiro.


(entram e cantam)


CATIRINA: 

O meu nome é Catirina

Gosto de linguiça, de salsicha e vina.

O meu nome é Catirina,

Comigo é no seco e sem vaselina.


CATIRÓ:

O meu nome é Catiró,

Vivo muito triste, cabisbaixo e só.

O meu nome é Catiró,

Porque a Catirina não me dá o fiofó.


RAIMUNDA:

O meu nome é Raimunda

Sou linda de cara mas melhor de bunda.

O meu nome é Raimunda

Todos me conhecem por Grota Profunda.


RAIMUNDO:

O meu nome é Raimundo

Mas os meus amigos me olham de lado.

O meu nome é Raimundo,

Porque na Raimunda eu vivo atolado.


JORNALISTA:

A repressão sexual é muito mais violenta nas regiões mais pobres. Todavia, alguns sociólogos acreditam que nos meios mais desenvolvidos ela é apenas mais camuflada, assumindo formas diferentes…


CATIRINA:

Boa noite, senhores.

Eu sou Catirina.

Mas meu apelido

É Pimenta Malagueta.

Já sabem por quê.

Desde menininha

Me arde a buceta

E me chamam assim.

Coitada de mim.

De todas mulher

Cá do lugarejo

Eu sou a que mais

Sofre de desejo.

Se penso em linguiça

Salame ou cenoura,

Salsicha, banana,

Me dá uma gana,

Eu fico tarada,

Ardida e molhada, 

Mas quando o marido

Me atende o pedido

Já fico acalmada.


Marido, marido!


CATIRÓ:

Que foi, Catirina?


CATIRINA:

Tô tendo um desejo!


CATIRÓ:

Calminha, menina!


CATIRINA:

Um desejo quente,

Porco, indecente!


CATIRÓ:

Mas aqui na frente

De toda essa gente?


CATIRINA:

Marido, socorro!

Me acuda, que eu morro!


RAIMUNDA:

Eu já te falei,

Mas você não quis

Ouvir a Raimunda!

É só dar a bunda

Pro seu maridinho

Que o desejo acaba.

Você é jeitosa,

Formosa, fogosa,

Mas muito teimosa


CATIRINA:

Raimunda, matuta,

Eu posso ser puta

Mas tenho conduta.

Sou bem educada

E respeitadeira.

Você bem que sabe

Que eu fui criada

Em colégio de freira.

Eu faço de tudo,

Porém, não confunda.

Não dou minha bunda.


CATIRÓ:

Não adianta, Raimunda,

Ela me maltrata,

Me cansa, me mata.

Eu vou com jeitinho,

Fazendo carinho,

Lambendo, beijando,

Mordendo, apalpando,

Ela vai deixando

Eu chegar por trás

Mas na hora, záz,

Vira de repente

E fica de frente

Abrindo a gaveta

Que é pra eu guardar

A minha caneta.

Não aguento mais,

Prefiro punheta.


CATIRINA:

Marido, o desejo!


CATIRÓ:

Bem vejo, bem vejo.


CATIRINA:

Estou tão chorosa!


RAIMUNDA:

Calminha, menina,

Não fique nervosa!


CATIRÓ:

Pois fique manhosa,

Chorosa, raivosa,

O que ocê quiser.

Que eu vou te dizer:

Nunca mais eu vou

Querer te comer.

Ou eu te enrabo

Ou desapareço!

Vou fazer a vida

E por qualquer preço!


CATIRINA:

Socorro! Socorro!

Me acudam que eu morro!

Não tô aguentando,

Tô toda tremendo.

Catiró amado,

Não seja malvado!


CATIRÓ:

Falei, tá falado!


RAIMUNDO:

Catiró, me escuta!

Eu acho que tenho

Uma idéia batuta

Que vai atender

A essa pobre puta.


CATIRÓ:

Pois fala. O que foi?


RAIMUNDO:

Eu vi hoje um Boi

Lá perto do riacho!

Catiró, eu acho

Que esse Boi é o boi

Que o Mestre falou.

E é o mesmo Boi

Que há pouco chegou.

Estava cansado,

Todinho esgotado,

Com o pinto caído

Todo esparramado.

E lindas meninas,

Suas pastoreiras,

Cantavam e riam,

Enquanto do Boi

O pinto lambiam.


CATIRÓ:

E como  é o Boi?


RAIMUNDO:

Eu não vi direito

Que eu tava brincando

Com o meu chocalho.

Mas tinha um caralho!

Igual, nunca vi.

Começa aqui

E termina ali.

Maior que um jumento

Ou que um elefante.

É mesmo um portento.

E muito elegante.


CATIRINA:

Eu quero esse Boi!

Não aguento mais.

Tô toda excitada,

Todinha arrepiada,

Já estou encharcada

De tanto desejo!


CATIRÓ:

Bem vejo, bem vejo.

Então, combinado!

De noite, bem tarde,

Sem nenhum alarde

Eu vou com o Raimundo.

Vamos procurar

Esse Boi tarado.


RAIMUNDO:

Nada combinado!

Pensa que sou besta?

Não quero saber

Dessa barafunda.

Vou passar à noite

É comendo a bunda

Da minha Raimunda.


CATIRÓ:

Então, vou sozinho.


CATIRINA:

Isto, maridinho!

Assim que se fala.

Depois, de presente,

Te dou o cuzinho.


CATIRÓ E CATIRINA:

Eu vou procurar

Esse Boi tarado

E eu vou deixar

Ele aparvalhado!

Eu vou procurar

O Boi caralhudo

E eu vou deixar

Ele botar tudo!

Eu vou procurar

O Boi bem nutrido

E eu vou deixar ele

Com o pau ardido!

Eu vou procurar

O Boi da maloca!

E eu vou esfolar

A sua piroca!

Eu vou procurar

O Boi lá da horta!

E eu vou deixar ele

Com a pica torta!

Eu vou procurar

Esse Boi capeta

E ele vai ganhar

A minha buceta!

Eu vou procurar

O Boi do pintão

Pra ele acabar

Com o meu tesão!

Vou trazer o Boi

Ainda que eu morra

E eu vou me encher

Com a sua porra!


MESTRE:

Vocês viram como é que é?

Catirina, sem pensar no banzé,

Desejou o Boi caralhudo,

Um tarado aqui da região.

Um Boi que é por todas desejado.

Um Boi com um pau exagerado,

E isso é o começo malfadado

De uma enorme e tremenda confusão. 


(saem todos)


JORNALISTA:

A taxa de experiências sexuais entre pessoas e animais é maior entre homens que entre mulheres e muito frequente nos meios rurais…


(entram as 4 Pastoreiras e cantam)


PASTOREIRAS:

Pisando as flores do caminho

No meio desta noite tão escura

Nós, Pastoreiras do Boizinho,

Estamos aqui à sua procura!


O nosso Boi está sumido

Ninguém sabe onde ele anda!

Achamos que está escondido

Comendo os músicos da banda!


PASTOREIRA I:

Meu nome é Esperança!

Pastoreira sou.

Volte aqui, Boizinho!

Com tesão estou.


A esperança quero ter

De voltar a nossa orgia

E você vai me foder

dia e noite, noite e dia.


PASTOREIRA II:

O meu nome é Fé!

Pastoreira sou.

Volte aqui, Boizinho!

Com tesão estou.


A fé quero ter

De voltar a nossa orgia

E você vai me foder

Dia e noite, noite e dia.


PASTOREIRA III:

Meu nome é Promessa!

Pastoreira sou.

Volte aqui, Boizinho!

Com tesão estou.


A promessa quero ter

De voltar a nossa orgia

E você vai me foder

Dia e noite, noite e dia.


PASTOREIRA IV:

Meu nome é Ilusão!

Pastoreira sou.

Volte aqui, Boizinho!

Com tesão estou.


A ilusão quero ter

De ter você só pra mim

E você vai me foder

Enterrando até o fim. 


(saem; entra o Boi e se deita; entra Catiró)


CATIRÓ: (entrando)

Caramba, que escuro

Que esta isto tudo.

Onde anda este Boi

Tarado e pauzudo?

Pra onde ele foi?

Eu tô com um tesão

Que já não me aguento.

Pareço um jumento

Com o pinto grandão.

Eu cá nesse escuro

Fiquei de pau duro

Foi só de pensar

Na linda menina

Minha Catirina.

Mas o que é isto

Em que eu esbarrei?

Caramba, que sorte!

Pois eu encontrei

A pobre Burrinha

Do Incapataz.

Do jeito que estou

Eu sou bem capaz

De descarregar

Nessa gostozinha

O tesão que sinto.

Eu falo e não minto.

Amarro a Burrinha,

Amarro ela bem,

E aproveito agora

Que não tem ninguém

Pra experimentar

Essa bucetinha.


(o Boi se inquieta)


Burrinha, Burrinha!

Deixa eu me chegar!

Eu sou teu amigo!

Não corres perigo!

Só vou te enrabar!


(vai e faz; o Boi dá um berro)


CAPATAZ: (entrando)

Ha há! Mas que achado!

Apanhei em cheio

Catiró tarado

Comendo o alheio!


CATIRÓ:

Capataz, me ajude!

Não chame ninguém!


CAPATAZ:

Não vem, que não tem!

Isso não se faz!


CATIRÓ:

Mas meu Capataz!

Te digo que vinha,

andando distraído,

Topei com a Burrinha,

Quer dizer, com o Boi…

Pensei que era ela,

Meti, era o Boi.

Bem assim que foi.


CAPATAZ:

Pois tira, depressa.

Caia fora, então.


CATIRÓ:

Não consigo, não.

O Boi apertou

De tal jeito o rabo

Que estou entalado.

É mesmo um jacu.

Apertou o cu,

Pegou meu peru.


CAPATAZ:

Coitado do Boi!

Que grande problema!

Está num dilema.

Se ele desaperta

Esse cu imundo

Tem medo que ocê

Enfie mais fundo.


CATIRÓ:

Mas se ele não abre

Não posso sair.

Quê que eu faço, então?


CAPATAZ:

Isso eu não sei, não.


CATIRÓ: 

Pois mate esse Boi?


RAIMUNDO: (entrando)

O quê? O que foi?


CATIRÓ:

Eu digo e repito:

Pois mate esse Boi!


RAIMUNDO:

Catiró! Que é isto?

Pra que isto tudo?

De espanto estou mudo!

Meu Deus, mas que cena!


CATIRÓ:

Pensando que o Boi

Fosse a Filomena,

Ataquei armado

E fui apanhado!


RAIMUNDO:

Você realizou

O meu grande sonho!

Comer o Boizinho!


CATIRÓ:

Que sonho medonho!


RAIMUNDO:

Vem vindo um vizinho.

Mais outro, outro mais…


CATIRÓ:

Quem é, Capataz?


CAPATAZ:

Mas quanto ruído!

Parece que é o povo!

Que grande alarido!


CATIRÓ:

Já vem vindo gente?

Tô mesmo fudido!


RAIMUNDO:

Esconda-se, amigo.

Esconda-se já.

Eu fico calado,

Nada vou contar!


CAPATAZ:

Vou levando o Boi.

Eu te ajudo agora!

Aqui, pelo lado!


CATIRÓ:

Oh, mas essa, agora!

E eu, pendurado.

Tá tão apertado

Que se eu tropeçar

Perco a minha pica!

Que grande titica!


CAPATAZ:

Por aqui, Boizinho!

Boizinho batuta!


CATIRÓ:

Boizinho safado!

Boizinho viado!

Filho duma puta!

Devagar, devagar,

Ou vão me capar!


CAPATAZ:

Aqui, pelo atalho…


CATIRÓ:

Mas que atrapalho.

Qualquer ato falho

E eu perco o caralho

E fico em frangalho. 


(saem Catiró, o Boi e o Capataz)


MESTRE:

Cadê nosso Boi?

Ouvi um barulho,

Vim pra cá correndo.

Não encontro nada.

Que está acontecendo.


PASTOREIRA I:

Que grande maçada!


PASTOREIRA II:

Sem nosso Boizinho…


PASTOREIRA III:

Não temos tesão.


PASTOREIRA IV:

Que fazer?, então.


CAROLA: (entrando)

Eu posso ajudar! Minha experiência quero lhes trazer. Desistam do Boi! Trago uma verdade de grande ajuda! Essa nossa vida nós vamos mudar. Com muita virtude, muita castidade, pureza, bondade. Nada de palavrão. Nada de pornografia. Nada de sexo. Vamos seguir o exemplo dos eremitas da idade média. Puros, vigorosos na resistência à tentação do demônio. Só a virtude nos salvará do pecado original.


PASTOREIRA III:

Que fala bonita,

Essa que o senhor

Vem de nos falar.

Agora nos diga:

Quanto tempo a gente

Fica sem trepar

Pra seguir o exemplo

Desses eremitas

E o céu ganhar?


CAROLA:

É pra toda a vida. Pra ganhar o céu e a eternidade!


PASTOREIRA IV:

Puxa, mas que vida!

O senhor não se engana?

Não dá pra eu dar

Uma vez por semana?


PASTOREIRA III:

Chegou o Beato.

Aqui, faz favor.

Ensina pra gente,

O senhor que é um pão

Fofinho, tesudo,

Gostoso e pauzudo 

A mais não poder:

Se eu tenho um tesão,

Devo ou não foder?


BEATO: (entrando)

A abstinência sexual está comprovada cientificamente que é um dos fatores de longevidade e sanidade física e mental tanto no que diz respeito às alterações hormonais que levam o indivíduo a opções de uma vida virtuosa e dentro dos estreitíssimos limites daquilo que os sábios consideram moralidade, uma vez que não se pode admitir como plausível o desregramento que dilacera o equilíbrio entre a vida afetiva, a vida cognitiva e a vida emocional, já que as percentagens entre a loucura e o desequilíbrio é mais alta nas camadas sociais de menor proveito econômico, pois as estatísticas não mentem quando afirmam que uma vida regada à virtude eleva o espírito e induz o corpo a um adorável estado de calma e plenitude, estado que é o ideal de uma vida que se queira dentro das modernas descobertas da ciência, que separa o homem do animal sujo e bestial, em decorrência do que se afirma que a posição científica mais avançada, mais inabalável, mais progressista é: virtude, virtude, virtude.


MESTRE:

Puxa, seu doutor.

Mas isto é um horror!


BEATO:

A ciência, meus amigos, a ciência está acima de todas as coisas!


MESTRE:

Amigos, escutem,

Tô muito inseguro.

Essa tal de ciência, 

Agora, esconjuro.

Fico sem saber,

Me sinto no escuro…

Que devo fazer, 

Se estou de pau duro?


HIPÓCRITA: (entrando)

Quando a Igreja e a Ciência não forem suficientes, vamos nos lembrar da Tradição. A tradição dos nossos antepassados. Os costumes dos nossos avós. A retidão do seu comportamento deixou um exemplo polvilhado de luzes etéreas. As trilhas do bem já foram traçadas pelos que nos antecederam. Vamos seguir essa vereda da salvação, para estarmos seguros de que deixaremos nós mesmos um rastro digno de ser seguido.


PASTOREIRA II:

Ai, dona Hipócrita,

Por que pensar tanto

No nosso amanhã?

É muito mais fácil

Trepar e trepar

A mais não acabar.


SANTARRÃ: (entrando)

E a moralidade, meus amigos? E a moralidade, onde é que fica? Desde os primórdios da civilização vem o homem construindo lentamente a sua ética, burilando com disciplina o grande cristal do comportamento correto, acrescentando a cada dia um tijolo de lucidez para alevantar a portentosa construção da grande casa da moralidade. Não vamos abrir brechas nessas paredes de segurança e deixar que apodreçam os seus rigorosos alicerces.


(cantam os quatro o Rock dos Sepulcros Caiados)


CAROLA:

A Igreja é a salvação!

(moralidade, faz favor!)

A virtude traz perdão!

(hipocrisia, meu senhor!)

Castidade é o nosso pão!

(farisaísmo, seu doutor!)

Ao pecado dizer não!

(intolerância, estupor!)


TODOS:

Aprendi com tudo que tenho vivido

Que só o que é moral é que é verdadeiro.

Pra vida não vejo nenhum outro sentido

Que não seja viver disciplinado e ordeiro.


BEATO:

Vamos viver na razão!

Com a ciência na mão!

O saber no coração!

Viver a abstração!


HIPÓCRITA:

Acabar com a transgressão!

Respeitar a restrição!

Seja a nossa intenção

Seguir sempre a Tradição!


SANTARRÃ:

A moral move a ação!

Ela é como um Patrão!

Prende o vício na prisão

E triunfa qual Sansão!


DIABO: (entrando)

Pra fora, pra fora!

Pra fora, cambada!

Cambada danada!

Carola poltrão!

Pensa que eu não via?

Tem uma coleção

De pornografia!

Revistas e discos,

Calcinhas, bonecas…

E é tudo escondido,

Seu grande fingido!

Beato descarado!

Fala de ciência

Mas durante a noite

Não faz abstinência!

Tem sempre um garoto

Servindo o maroto.

Hipócrita matreira,

Seja verdadeira

E conta o que faz

Com a Tradição.

Ela, de cachorros,

Faz uma criação.

Lindos cachorrinhos, 

Peludos, fofinhos,

E o que faz à noite

Com os coitadinhos?

E a Santarrã,

Já se viu tal coisa?

Explora mocinhas

Que vende aos bocados

A clientes nobres.

Mas tudo escondido

Por trás de uma escola

Pra meninas pobres!

Pra fora! pra fora!

E já, sem demora!

Vocês, ao morrer,

Vão ficar vagando

No escuro, passeando,

No eterno vazio.

Nem céu nem inferno.

Só o vazio eterno!

Pra fora! pra fora!


MESTRE:

Amigos, agora,

Que ficamos livres

Dos falsos virtuosos,

Vamos continuar.

O Bumba pornô

Vai recomeçar!

De toda falsidade

Vamos nos livrar

E o que pensamos

Nós vamos falar!


PASTOREIRA I:

Bosta, merda, cocô, mijo, titica!


PASTOREIRA II:

Ânus, traseiro, rabo, bunda, cu!


PASTOREIRA III:

Saco, bolas, ovos, pentelhos, peru, pinto, pau!


PASTOREIRA IV:

Piça, pica, cacete, piroca, caralho!


RAIMUNDO:

Precheca, chochota, chibiu, buceta!


MESTRE:

Lamber, mamar, chupar, dar, piçirica, punheta!


RAIMUNDA:

Trepar, botar, meter, enrabar, comer, foder!


CATIRINA:

Silêncio, silêncio, que lá vem o seu Padre!


PADRE: (entrando)

Boa noite, amigos!

Como vão vocês?


MESTRE:

Como vai?, seu Padre.


PADRE:

Que estavam dizendo?


MESTRE:

A gente dizia

Que está lindo o dia.

O senhor não acha?


PADRE:

Que estavam falando?


RAIMUNDO:

A gente falava

Que este dia dava

Pra um piquenique.


PASTOREIRA I:

Seu Padre, que coisas que a gente pode dizer…


PASTOREIRA II:

… E que coisas a gente não pode dizer?


PADRE:

Eu te pergunto: se a tua palavra não ofende, por que deixar de pronunciá-la? E te pergunto também: se a tua palavra ofende, por que é que ofende? Vamos antes saber a causa da ofensa.


PASTOREIRA III:

Seu Padre, que coisas que a gente pode fazer…


PASTOREIRA IV:

… E que coisas a gente não pode fazer?


PADRE:

Eu te pergunto: se a tua ação não ofende, por que deixar de executá-la? E te pergunto também: se a tua ação ofende, por que é que ofende? Quem é que constrói a ofensa? O ofensor ou o ofendido? Porque isto eu digo a vocês: o escândalo só existe no coração do escandalizado!


MESTRE:

De que livro o senhor tirou estas palavras?


PADRE:

Do livro que eu escrevo com o meu medo e a minha coragem. E digo mais ainda: não queiram ler o Meu livro, mas o de cada um de vocês. E digo também: por mais promessas de quatro paraísos que haja em quatro livros sagrados, eles não são mais sagrados que o livro que cada um escreve dia a dia, com sua sacralizada vulgaridade. E pergunto para terminar: quem proibiu o proibido? Por quê? Com que objetivo?


SOLDADOS I e II: (entrando)

Padre, têje preso!

Têje preso, Padre!


MESTRE:

Amigos, amigos,

Prender nosso Padre?


SOLDADOS I e II:

Está blasfemando

Contra a autoridade!


MESTRE:

Então, o que diz

Deve ser verdade!


RAIMUNDO:

Estão enganados,

Amigos soldados!

O Padre que querem

Não tá mais aqui!

Vocês o prenderam

Numa outra peça

E foi deportado

Pro país natal.


SOLDADOS I e II:

Não tem mais conversa.

Todo Padre é igual.

Finge que faz bem

Mas espalha o mal.

Prender esse Padre

É um ato legal.

Além do quê, estamos

A obedecer.


MESTRE:

Mas a quem? A quem? 


(os Soldados seguram o Padre)


PADRE:

Amigos, escutem, meu último sermão. Pratiquem a inocência! Pratiquem a inocência! Não a pureza idiota dos santos inúteis. Pratiquem a inocência dos atos onde não cabe culpa!


(saem os Soldados levando o Padre)


JORNALISTA:

… O papel da Igreja tem sido definitivo no comportamento das mulheres dos meios pobres ou rurais. Os índices de aborto nessas regiões é bem menor que os observados…


MESTRE:

Agora, quem sabe

Quais são estes atos?


RAIMUNDO:

O Padre falou que são os atos onde não cabe culpa.


PASTOREIRA I:

Mas falou também que é o ato que não ofende.


PASTOREIRA II:

Mas, se o ato ofende, ele pergunta: por que é que ofende?


PASTOREIRA III:

Porque o escândalo está na cabeça daquele que se escandaliza!


PROFESSOR:

Caros companheiros!

Meus bons camaradas!

Que tanto discutem?

Que causa os aflige?


MESTRE:

Estávamos representando um porno-bumba e agora estamos confusos, sem saber o que fazer e o que não fazer.


PROFESSOR:

Para essas dúvidas, todas, eu só tenho uma colocação: de que vale a satisfação individual, o prazer de uma pessoa apenas, desligado do contexto social mais amplo? Cada ato a atender nosso solitário e egoísta desejo compromete a nossa militância! A práxis do nosso partido popular prega que a liberdade do amor está subjugada aos mais amplos destinos da Nação. Seja, o nosso amor, livre. Mas seja o nosso amor livre vinculado aos princípios de uma permanente revolução que mantém vigilância fechada sobre os desvios dos vícios capitalistas. Um casamento, sóbrio, uma união perene. Nada dessas imundícies imperialistas! Só assim nós vamos vencer. Nós vamos vencer! Eu digo em nome do povo: nós vamos vencer. E nós precisamos de muita união. Vamos repartir a virtude e o pão! Nós vamos viver na paz e no trabalho, não um ano, mas um milênio. (entram os dois Soldados)


MESTRE:

Nossa! Vão prender mais um!


RAIMUNDO:

Numa situação dessas, eu não consigo nem pensar num palavrão.


PASTOREIRA IV:

Que grande confusão armaram na minha cabeça! Antes, a coisa se resumia em dar ou não dar. Agora é tanto por quê e como, que eu já não sei o que fazer.


MESTRE:

Amigos, escutem o que eu estou pensando! O seu Padre foi preso, esse Professor aqui não tá com nada, o Diabo desapareceu, esses Soldados são um perigo. E se a gente pedisse pro Pajé-Feiticeiro nos ajudar? Quando a gente tem um problema e não tem saída, pede sempre pra ele resolver.


RAIMUNDO:

Pois vamos tentar. Se a gente não tenta, a oportunidade pode evaporar.


PASTOREIRA I:

Mas vejam, que horror! O Pajé-Feiticeiro está aqui no meio da gente! Esteve todo esse tempo conosco e nem percebemos!


PAJÉ:

Sim! Estou aqui desde o início e vocês nem perceberam!


PROFESSOR: (para o Pajé)

Por que você veio aqui para nos atormentar antes do tempo?


PAJÉ:

Qual é a tua aflição?


PROFESSOR:

É perceber que este pobre e ignorante povo não sabe resolver o único caminho que o levará ao poder!


PAJÉ: (para os outros personagens; sempre a mesma resposta)

Qual é a tua aflição?


RESPOSTA:

É não saber o que dizer e o que não dizer. O que fazer e o que não fazer.


JORNALISTA:

Minha não é esta aflição. Estou apenas fazendo um levantamento sobre a sexualidade das gentes, que publicarei numa revista de grande circulação nacional.


CORONEL: (entrando)

Mas para quê, minha filha? Para quê? Quer indispor o povo contra si mesmo? Para quê dar conhecimento aos que ainda não estão preparados para recebê-lo?


Quer que o povo tenha sua inocência perdida?


Não percebe você as consequências do seu Ato? E a sua responsabilidade profissional?


Fique sabendo: a pátria é feita de todos sós, de nossas famílias. A liberação sexual põe em risco a célula-mater da sociedade, que é a família e não há pátria sem família. Puxado pelos cavalos desembestados da liberdade sexual, virá o carroção que desintegra, com as pílulas, os concubinatos, as separações, os desquites, os divórcios, os abortos e os órfãos de pais vivos. Seria o cáos. Veja o exemplo dos países adiantados! A liberdade os leva a esse cáos e sobem as taxas que indicam os suicidas.


O povo precisa viver nessa inocência das crianças. Por isso nós, autoridades, que tudo fazemos para o bem das gentes, somos obrigados a proibir essas manifestações demoníacas, verdadeiras sementes do martírio da tentação: livros e canções e filmes e peças de teatro.


Resguardamos, assim, o humilde coração dos humildes. Encarceramos essas obras para evitar a desordem. Sine censura, não há ordem. Sem ordem, não há progresso. Há palavras mais belas do que estas duas, ordem e progresso, para brilharem no céu anil da nossa pátria? (a Jornalista sai para um lado)


Amigos, continuam a sua festa. Parece que vocês estão representando um Bumba-meu-boi. Mas, onde está o Boi? Onde está o Boi?


MESTRE:

O Boi… quer dizer…


PASTOREIRA I:

Não sabemos do Boi…


RAIMUNDO:

O Catiró… quer dizer… a Burrinha… quer dizer… o Boi…


SOLDADO I:

Coronel! Coronel! O senhor está se esquecendo do seu compromisso?


CORONEL:

Oh, desculpem, meus amigos todos! As senhoras fundadoras do Clube do Amparo às Velhinhas Ecumênicas prepararam para mim uma recepção na Casa Cultural. Vão me atribuir um título de Guardião da Pátria e Vigilante da Virtude. Desculpem. Preciso ir. Voltarei ao Bumba da próxima temporada. E é assim que quero o Bumba: inocente, infantil, com as suas roupas coloridas e suas lindas canções. Adeus. E você, mocinha, tome cuidado. Ah, esses jornalistas não aprendem nunca! 


(sai, com os Soldados)


RAIMUNDO:

Seu Mestre, nós não vamos mais continuar?


MESTRE:

Depois dessa agora, eu não sei de mais nada. 


CATIRINA:

Mas onde está o meu Catiró? Será que ele encontrou o Boi?


RAIMUNDO:

Vamos  pra casa, Raimunda.


PASTOREIRA I:

Preciso ir. Amanhã cedo vou cuidar da horta!


PASTOREIRA II:

Tenho que ir andando, também. O trabalho não pode esperar.


PASTOREIRA III:

Também quero ir. É tarde.


PASTOREIRA IV:

Até amanhã. Vamos!


PAJÉ:

Esperem! De onde vem esse medo Quem encheu de maus pensamentos o coração de vocês? Por que vocês não querem falar as coisas até o fim? Vocês começaram um tipo de festa e permitiram que hipócritas ou ignorantes ou mal-intencionados viessem aqui impedir a explosão de sua alegria! Por quê?

O que vão fazer com os palavrões que estão engolindo?

Vamos pensar juntos no significado deste silêncio! Se temos a criticar o anedótico infantil em torno da sexualidade, com seu palavrório malicioso de muitas intenções a ressaltar o que não precisa ser ressaltado, temos também a criticar a castração das palavras e dos gestos ligados ao sexo. Por que não temos nunca uma atitude natural e espontânea para com a sexualidade? Ou nos furtamos a enfrentá-la ou a caricaturizamos? Por quê?

Vamos fazer perguntas sobre todas estas coisas! De onde veio tanto bloqueio? E qual o seu objetivo

Direi a todos que tem sido sempre proibida qualquer coragem. Qualquer coragem vai colocar em perigo a ordem das coisas. Então, a proibição só pode vir daqueles que têm interesse em que não mudem as coisas.

Sexualidade é energia! É vida! E aqueles que negam ao mundo o direito à sexualidade são os mesmos que negam o direito à vida. Porque a vida se quer viva, não encarcerada num túmulo. Mas a vida viva movimenta, muda, inova. Incomoda!

Por que dizemos que não temos preconceito contra os homossexuais e rimos de modo diferente quando ouvimos que fulano transa com fulano? Estaríamos querendo desviar a atenção que se pode voltar contra nós mesmos?

Por que dizemos que somos naturais e armamos um porno-bumba? Um porno-bumba é uma coisa natural?

Por que arrumamos ocasiões e jeitos especiais para dizer os palavrões? Porque também nós aceitamos as cadeias que nos armaram?

Como vêem, há perguntas a fazer. Mas há também respostas. E eis algumas dessas respostas:

Somos todos um bando de ratos condicionados! Aceitamos, numa tenra idade em que éramos indefesos, aceitamos o ensinamento moralista de nossos pais e de nossas famílias, que nos passaram os desvalores disso que se diz civilização mas não passa de uma camuflagem do Poder! Aceitamos todas as regras! E nos castramos, porque é o que nos dizem: castrem-se! E nos matamos, porque é o que nos dizem: matem-se! E, eunucos por dentro e por fora, tecemos aos pedaços a nossa ilusão de felicidade. E àqueles corajosos que rompem as cadeias, nós gritamos: calma!, cuidado!, olhe o respeito!

Por que é que há palavras proibidas? Quem é que pretende segurar esse deus demoníaco que se chama desejo?

A aceitação da repressão sexual corresponde à aceitação de toda repressão humana. A resistência se dá ao nível do uso da liberdade possível. Por isso são mais livres os homens do que as mulheres, os jovens do que os adultos.

E quais são as armas utilizadas nessa repressão? Duas são as armas: o complexo de culpa, cuja síntese máxima ficou configurada com a noção do pecado original, e o banimento das pessoas que não respeitam as normas, cuja consequência é a marginalização.

E direi também que, descobrindo que fomos lesados, como crianças presas num apartamento que se vêem de repente num passeio público, então, apelamos para a compensação e soltamos no mato os cachorros da nossa tentativa de específica liberdade. E armamos um porno-bumba.

E de que é feito um porno-bumba: De que é feito?, se não das categorias que compões as relações de Poder e Repressão. E são estas as categorias: a categoria de agressividade: Raimundo COME a Raimunda; a categoria de tamanho: o pau do Capataz é descomunal; a categoria de domínio: Catirina não dá o rabo pro Catiró; a categoria de potência: o Boi é tarado, quer comer todo mundo; a categoria de lucro: o Capataz FATURA a Filomena; a categoria de obediência: aqueles que seguem a moralidade não são ridicularizados.

Mas eis a validade de um porno-bumba! Exibir em exagero esse nosso pedaço de conquista! Porque nenhuma palavra é pior do que a mentira nem nenhum ato é pior que a violência.

Seja então pornô o nosso Bumba! Para cantar, com essa controvertida alegria, mais um momento de vitória!

Ninguém vai dormir agora! O trabalho pode esperar. Façamos do nosso amanhã um dia feriado. Façamos do Boi, o símbolo da nossa libido. E façamos do Bumba o nosso grito de desobediência! Ninguém vai dormir agora. Que as atitudes individuais sejam, depois, assumidas dentro dos limites de cada consciência.

Ninguém vai dormir agora! Vamos começar tudo novamente! Eu quero ser o Mestre!


Boa noite, senhores,

Boa noite, senhoras.

Falei pra não virem

Mas, já que insistiram,

Vamos começar:

O Bumba-pornô

Vai se apresentar!


(fecha a cortina)


Jorge Teles – Curitiba, 02.12.1983. Dedicado ao Grupo É Hoje. 


Observação: Este texto nada tem de novidade. Repete, em ficção, uma tese de Wilhelm Reich (1897-1957), segundo a qual a neurose é resultado de um conflito entre a pulsão sexual e uma sociedade autoritária que a reprime.

 

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bumba-bumba parte 1

BUMBA-BUMBA.

Nota: Este texto se compõe de duas partes. A primeira peça, Bumba-meu-, foi apresentada em Curitiba, pelo Grupo É Hoje, em 1983.

Primeira parte: Bumba-meu-

MESTRE:
Boa tarde, senhores,
Boa tarde, senhoras,
A todos presentes
Digo que são horas
Da nossa chegança.
E sem mais tardança
Vamos começar.
O bumba-meu-boi
Vai se apresentar.

Eu sou o Capitão
Boca Mole chamado.
Este moço aqui
É um capataz.
Sujeito decente,
Ótimo rapaz.
Pois bem, meus amigos,
Agora é a hora
De entrar nossa banda!
Entre a sarabanda
Tocando a ciranda!
É o Boca quem manda!

(entram e tocam; entra também o Jornalista que, durante toda a encenação, passará de vez em quando no meio dos atores, fotografando com flash e anotando o que se dirá a seu tempo)

Atenção, senhores,
Muita atenção!
Chegamos enfim
Ao grande momento
De encantamento!
Mas eu também digo
Que é hora de perigo!
Vamos receber
O Boi, nosso amigo!

(entra o Boi e as Pastoreiras; todos dançam e cantam)

TODOS:
Boi, boi, boi, boi,
Entra sem acanhamento.
Boi, boi, boi, boi,
Dança sem ressentimento.
Boi, boi, boi, boi,
Eu te dou consentimento.
Boi, boi, boi, boi,
Manso e sem atrevimento.
Boi, boi, boi, boi,
De grande merecimento.
Boi, boi, boi, boi,
Respeita o alinhamento.
Boi, boi, boi, boi,
Lembra do regulamento.
Boi, boi, boi, boi,
É hora de divertimento

JORNALISTA:
A entrada do Boi é um espetáculo triunfal, um dos momentos mais encantadores nesta nossa festa folclórica.
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