garças e abutres… 19

patchwork

19. Retalhos

    Há um bando aflito de pequenas lembranças me incomodando, exigindo registro. São pequeninas garças inquietas, inofensivas, apagadas. Batem-se dentro da gaiola da minha memória e, se eu as solto, elas partem numa vertigem.
Ou partem, simplesmente.
Será como uma colcha de retalhos; pedacinhos de um momento qualquer, por um motivo ou outro, inesquecível.
Lembro de um sonho apenas. Estou no meio de toda a família, caminhando no alto dum morro, cuidando para não escorregar. Sei que minha mãe está ali, não a vejo, porém. Sinto grande alegria por que estou em Manhuaçu, isto significa, então, que saí do colégio. De todos os presentes, só consigo ver a Zélia, que sorri e me dá a mão. Ela tem franja e veste um vestido curto, como numa das pouquíssimas fotos da família, o pai, a mãe e dez dos onze filhos; o mais velho já tinha casado. De repente, encontramos, no declive, um pé de tomate. Rodeamos a planta, de mãos dadas, como se brincássemos de roda ao seu redor.  Mas tudo começa a se apagar. Lembro do desespero enorme que senti, ao acordar. Aquele dia foi de uma lenta agonia. Fiquei esquecido de tudo, perdido por ali, sentindo alfinetadas confusas no coração, um aperto na alma, tanta coisa…
Um dia um marimbondo me mordeu na nuca. Foi um desespero. Senti que havia algo grudado, passei a mão e o bicho saiu voando, amarelo e preto, tinha tantos!, me deixando com o pescoço em brasa. Passava água para esfriar, o ardor durou todo um dia.
Uma vez, eu estava brincando e chegaram Geraldo e um amigo negro. Esse negro é alto e magro, ah, já sei, ele ficava no beliche de baixo e foi sobre ele que eu urinei, enquanto dormia. Eles me disseram para eu rezar pra gente sair de lá. Eles já tinham pecado, não adiantava muito, mas eu era inocente,
    e se alguém quiser molestar um inocente…
e se rezasse com fé, conseguiríamos sair. Eu tinha, sim, um tipo de inocência, pois perguntei se era para rezar como nos santinhos, de mãos postas e olhar perdido para o alto. Disseram que eu rezasse como quisesse, o importante era ter fé. Eles se foram cheios de esperança e eu me perguntei, perplexo, o que seria necessário fazer, para ser pecador. Comecei a rezar todas as noites, para constatar um horror: eu não tinha fé. Tinha medo. Se eu tivesse fé, rezaria a oração até o fim. E eu sempre me distraía, olhando para os lados e ouvindo as conversas.
E o que dizer das marchas? Atenção! Em forma! Cobrir! Marcar passo! Mar… char! Alguém tocava um bumbo e todo mundo começava a marchar. Não havia um aluno de apelido Passarinho? Não era um pouco retardado? Não era ele que marchava fora do padrão?, ambos os braços para a frente, para trás, para a frente…
De uma feita, descendo do dormitório, aquele bando, senti algo caindo na minha cabeça. Passei a mão e cuspi enojado. Alguém escarrara para o alto e caíra em cima de mim. Faziam muito isto, mas eu nunca fora premiado. Passei muito tempo debaixo da torneira, demorou para descolar-se a brancura gosmenta e esverdeada.
Não falei das tentativas de fuga. Às vezes, desapareciam para sempre. No mais freqüente, eles eram capturados, apanhavam “pra burro”. Uns, foram encontrados com enxada na mão, chapéu de palha, mas não tinham trocado o uniforme. Alguém comentou:
São uns patetas! O principal, eles não trocaram.
Mas, quando sumiam para sempre, viravam heróis.
Não é verdade que um deles foi encontrado muito e muito longe? Tinha pegado um trem, tinha conseguido roupas, tanta coisa difícil! E lá estava ele, de volta, rodeado de ouvintes, todo machucado e de mãos inchadas, explicando os sucessivos detalhes de sua aventura frustrada. Um velho índio, contando aos curumins inexperientes e medrosos, como ele quase conseguira chegar aos domínios da mãe-lua.
Certa vez, eu, Valdemar, Bojão, Zé da Silva e Hermes, falávamos de assombração. O dia terminava e já começava a escurecer. Tinham dito de garfos e facas que dançavam no refeitório, alguém tinha visto. Ou um saci, enrolando fumo. Um de nós observou que, no muro, à nossa frente, havia o desenho grande de um diabo, uma carranca feia com chifres e cavanhaque. Quem falou, primeiro, que o desenho parecia olhar pra gente? Quem continuou, dizendo que ele ria? De quem partiu a idéia de que ele se mexia na parede? E eu juro, que ele começou a se mexer. Nossos pobres corações entraram a pular, ficamos brancos e, após um ruído qualquer, o desespero nos fez correr covardemente até um grupo de grandes. Um de nós falou que a máscara do diabo estava se mexendo. Sinuca liderou, seguimos atrás, cheios de espanto, e mostramos o desenho imóvel e idiota. A zombaria foi feia. Eu morria de vergonha e já não sabia se o diabo tinha ou não rido para mim, mexendo a carranca.
Falei das redes que faziam? Com fios de carretel, uma espécie de filé, era preciso uma varinha. Teciam aquela renda aberta, com a qual faziam uma rede para prender o cabelo para trás. Eram obras de arte. Aprendi a tecê-las, mas esqueci.
Estas lembranças são estranhas. São esfarrapadas demais. Arrebentadas. Cacos de vidro…
E não quero me esquecer de falar de música. Cantávamos muito pouco, algumas canções infantis, pouquíssimas. Mas, sempre havia os hinos pátrios. Mais tarde, eu os aprendi de verdade, participando de corais escolares. Daquela época, fica na minha lembrança apenas a idéia de que todas as músicas do mundo eram muito tristes. Machucavam por dentro. E me tatuaram com uma dúvida que carregarei para sempre no coração: será que toda a música, pra ser bonita, precisa mesmo ser triste?

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 18

...fora mondo

18. Impressões de um mundo distante

    Sempre me tenho perguntado sobre meu aprendizado e minhas reações, na época, com relação aos problemas sexuais. Sei bem que a situação que presenciei era caótica, anormal e densa. Mas isto eu sei por outros caminhos, leitura, filmes, documentos, deduções. Me pergunto, pois, sobre o que eu já sabia, o que vi, o que aprendi ali dentro.
Tinha seis anos e nove meses, quando entrei. Saí com oito anos e seis meses. Nada sabia, a não ser que existiam homens e mulheres. Sabia que os homens e as mulheres faziam alguma coisa lá entre eles, mas, o que faziam, não tinha sido objeto de ruminações, até então.
Já de cara, no trem, ouvi aquela frase cortante e fria, que me obrigou a refazer minhas noções:
O Aluísio é mulher do Antonio.
Era um elemento novo, muito complexo.
Devo frisar, antes de tudo, que o assunto sexo nunca me preocupou, não devendo também incomodar os outros pequenos, porque nunca conversamos sobre isto. Assistíamos, ouvíamos, era como se falassem de aviões complicados que nada tinham a ver com nossos preciosos carrinhos de barro.
Eles cantavam uma música bem barra-pesada, que me introduziu novo conceito:
    Eu vi sua mãe no Mangue,
com a b. escorrendo sangue,
com a mão cheia de dinheiro,
às custas de um marinheiro.

Deve ter sido lá que aprendi o que vinha a ser prostituta; evidentemente nunca usaram este eufemismo inexpressivo. Soltavam o outro nome, sonoro. Contavam também aventuras fictícias, numa delas o herói brincava com uma lanterna debaixo da mesa e iluminou entre as pernas da tia, dizendo abertamente, com a boca pura e sem preconceito, o que tinha visto.
Uma outra canção não me dizia muito, porque não entendia o significado da palavra-chave, só no Pedro II é que fui aprender. A melodia é um conhecido hino católico:
    Os anjos tocam punheta,
Os anjos tocam punheta.
Galinha preta é o cu da mãe.
Galinha preta é o cu da mãe.

Aos poucos, o novo mundo ia saindo da neblina. Com movimentos obscenos, eles contavam o que se fazia com as mulheres, diante de todos, eu não entendia. Mas arquivava. Os mesmos movimentos serviam para atacar um companheiro distraído que estivesse de costas. Era fácil demais, era só entender a lição, repetida quantas vezes fosse preciso.
Tinham uma brincadeira chocante e muito usada. Estivesse algum colega sentado no chão, jogando ou conversando, vinha um outro por trás e desenhava no chão, partindo das nádegas do que estava sentado, um falo imenso, sem que a vítima se apercebesse. Na outra ponta, fazia os testículos para os lados, sentava-se ali e lá vinham os mesmos gestos, com gemidos de gato machucado. Todos começavam a rir e quando o distraído dava conta de si, se levantava rápido e saía apagando o desenho na areia, para acabar com os vestígios do vexame tão público.
Lembro que todos tomavam banho no mesmo banheiro, eles, lá, nós, aqui. Nunca prestei atenção a eles, a não ser na oportunidade em que percebi que eles tinham cabelos sobre os genitais e nós não. Também esta descoberta foi arquivada, agora, porém, absolutamente desligada de qualquer emoção.
É fato que não dávamos atenção a esses detalhes. Raramente ouvíamos as conversas até o fim, porque não entendíamos muita coisa.

Há, porém, dentro de mim, a lembrança de um episódio muito complexo. É uma cena confusa, apagada, mas, ao mesmo tempo, com detalhes de uma nitidez penetrante. Já falei antes que, com igual intensidade, só a noite na casa da professora e meu mergulho no rio, abraçado às costas do inspetor. A este episódio chamei O Acontecimento.
É confuso querer saber por que guardei o fato com alguns detalhes tão bem delineados, sem saber, porém, encadear suas partes. Aparentemente não apresenta nada de grave ou muito desagradável, a não ser a faca meio escondida e a ameaça de uma hipotética violência. Isto me faz concluir que o acontecido deve ter tido alguma relação com sexo, por causa de um dos detalhes e por ter marcado minha memória num halo de tremor e espanto.
Há uma escada encostada na parede. Um dos maiores estava sentado lá no alto, de calção. Antonio chegou-se e começaram a conversar. Eu brincava com barro exatamente debaixo da escada. Antonio tem uma faca na mão, mostrando-a e escondendo-a. A primeira frase, não, não, a única frase que ouvi, daquilo tudo, foi:
Se você contar pra alguém, eu te mato.
Eles discutem longo tempo. O rapaz, um louro forte e bonito, vai se deixando convencer, de má vontade. Suas vozes são abafadas. Ele tenta algum novo argumento, Antonio corta ríspido, falando firme, mas muito tranqüilo.
Olhei para o alto e vi que a glande do aluno estava para fora, acho que ninguém ali era circuncidado. O curioso é o fato de ser a única vez, que me lembro, de ter prestado atenção no órgão genital de algum deles, coisa que ninguém jamais escondeu.
O resto é confusão, escuridão, dúvida.
Me pergunto: por que a impressão de ter sido um problema sexual? Pela frase dita? Pela visão que me incomodou? Minha censura deve ter apagado as frases do antes e do depois, não conseguindo destruir a emoção arquivada.
É claro que agora, enquanto escrevo, as coisas se tornam evidentes, pelo conhecimento intelectual que tenho de situações como aquela, jovens de diversas idades, inspetores, confinamento… Fica dito que foi algo de muito perturbador. A faca… Se você contar pra alguém, eu te mato… O sexo do jovem lá no alto, arregaçado…

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 17

dor de ouvido

17. Dor de ouvido e cegueira-noturna

    Quantas vezes entrou ali dentro a figura branda de um médico de mãos caridosas? Não me lembro de uma. Uma enfermeira? Nenhuma. Um farmacêutico? Nunca.
Nossa medicina se resumia nos purgantes. Aquilo era tão ruim que devia expulsar com todos os vírus que se tivessem alojado nos corpos raquíticos e esfomeados. O próprio demônio não resistiria.
As condições sanitárias davam excelente material de pesquisa. Cobaias à vontade, frio, fome, avitaminose, todos descalços, sono desagradável, água sem filtrar, quando não fosse da caixa da privada. Todos tínhamos os lábios enormes e rachados. Sei disso porque me lembro que minhas irmãs, durante muito tempo, repetiram que ficaram horrorizadas com o aspecto de nossos lábios, depois de nossa saída. Nossa pele era seca, como pêssego, com manchas brancas. De todos os narizes escorria eternamente o catarro verde e aguado. Limpávamos o nariz na alça do macacão, no fim da semana esta se apresentava engomada e imunda.
Às vezes, um ou outro não conseguia reter a comida no estômago. O órgão se recusava, era uma maré rapidíssima, ia e vinha e ia e vinha e acabava por provocar a onda azeda do feijão com arroz que se espalhava pelo chão, ficando ali até secar.
Afora isto, só a magreza.
Com relação à nossa saúde, lembro de um episódio com Geraldo e dois comigo. Além da tuberculose benéfica de Marquinhos, que lhe valeu invejadas férias na casa do padre.
Certa noite, Geraldo não deixou ninguém dormir. Tinha dor de dente. Muitos tinham dor de dente, lembro disso, bochechas inchadas, amarradas com pano saído não se sabe de onde. A dele, ou doía mais, ou estava servindo de pretexto para uma revolta violenta. Ele gritava, urrava, o inspetor não sabia o que fazer. Vendo que todos estavam atentos, aproveitou a oportunidade e começou a xingar o padre. Xingar o padre era mais que um sacrilégio. Sacrilégios podem atrair ou não o raio fulminante, espera-se o raio fulminante que nunca vem. Mas, ali, xingar o padre representava uma escala crescente em dor física e decrescente em humilhação. Palmatória, safanões, pontapés, culminando por vôos desengonçados e quedas de embrulho.
A dor lhe dava forças. Eu me enchia de horror porque xingar alguém me parecia terrível e eu era um animalzinho cheio de medo. Ao mesmo tempo, me orgulhava por ser meu irmão aquele que afrontava os poderes, ele atirava para o alto aquela chuva invertida de destruição.
Aquele filho da puta, desgraçado, aquele viado, é por causa daquele filho da puta daquele padre.
Houve silêncios, todos olhavam o inspetor.
Geraldo, vem comigo.
Não vou porra nenhuma! Eu tô com dor por causa desses filhos da puta, daquele desgraçado daquele padre!
A noite não terminou mal. Ao contrário do previsto, Geraldo foi levado à casa do diretor-padre que lhe deu remédio e cuidou dele. Ele voltou triunfante.

Certa manhã, acordei indisposto. O mundo tinha perdido o sentido. O mingau me pareceu repugnante e eu não quis comê-lo. Estendi-me no banquinho de cimento e me deixei esquecido. Veio a hora do almoço. Chamaram-me, era domingo. Não era razoável perder o almoço de domingo: o arroz era mais solto e havia um pedaço de carne de carneiro. Não tive ânimo e fiquei. A impressão que eu sentia era a de um universo paralisado. Dormi. O sol estava forte, era confuso porque eu sentia muito frio, o cimento estava gelado, mas o lado da cabeça que estava ao sol, queimava. Um rumor distante começou a perturbar-me, era como uma cachoeira interminável. O sol estava insuportável, o ruído cresceu. Era um zumbido desagradável, áspero, rouco. Aumentou, percebi que o ouvido que estivera colado no cimento doía muito.
Alguém me falou, tentou me levantar, eu olhava e não entendia nada. As figuras brilhavam à minha frente, como anjos no crepúsculo do paraíso. Falaram em Geraldo, ouvi no meio de trovoadas o nome de meu irmão. Ele já chegou preocupado e me levantou. Entre brilhos imensos e estalos eu percebi que ele me advertia por ter perdido o almoço e ter ficado ao sol. Na sombra, o brilho diminuiu, mas os ruídos loucos de usina infernal continuaram por muito tempo.

Há um aspecto digno de menção, ligado à minha saúde. Eu não enxergava durante a noite. No Colégio Pedro II, muito mais tarde, descobri num livro de ciências, que a falta de vitamina A provoca a cegueira noturna. Dessa forma, ficou esclarecida aquela estranha perturbação. Até então, o fato me enchia de espanto, não sabia se era diferente dos outros, se estava ficando cego, não entendia nada…
Uma lembrança dolorosa é a da hora de subir pro dormitório. Tenho a impressão de que, mal escurecia, éramos colocados em fila para subir. Aquela escuridão me aniquilava. Eu era incapaz de perceber um clarão tênue, uma mancha clara. Ouvia a todos, sabia do que se passava ao meu redor, mas me sentia isolado de todo o resto. Uma vez saí da fila, sem querer. Começaram a me chamar. Eu perdi o rumo das vozes, eram muitas ao mesmo tempo, tentei voltar e comecei a bater nas paredes. Ouvia as vozes aflitas de Valdemar, Hermes, Bojão, Zé da Silva, não conseguia localizá-los e rodava abobalhado, com os braços estendidos para não machucar o rosto. Então, u’a mão me pegou pelo ombro e senti que me levavam, fui guiado até a cama.
A partir daí, quando a fila começava a andar, eu segurava na roupa do que estava à minha frente e ia caminhando…
Numa outra feita, acordei querendo ir ao banheiro. Havia um banheiro do lado dos dormitórios. Comecei a tatear com cuidado as madeiras dos beliches. À custo, consegui descobrir o ladrilho frio, urinei num lugar qualquer e procurei minha cama. Comecei a tatear, sentia os corpos, cabelos encarapinhados e cheios de areia, pés barrentos, batia com a cabeça nas grades, ia e vinha e estava de novo na porta do banheiro, sem ter encontrado minha cama. No desespero, me perdi no meio daquela floresta de beliches absurdamente escura e meu corpo começou a atropelar tudo. Alguém gritou meu nome,
não consigo achar minha cama,
e me levou como mágica diretamente ao leito vazio e frio.
O que teria sido de mim numa noite como aquela, se eu não fosse magrinho e de olhos medrosos e tímido e amado por todos?

continua no próximo domingo.

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