Trilogia das Barcas, Purgatório (1518)

companheiro do diabo


17. Auto da Barca do Purgatório (1518)

Resumo

Três Anjos cantam um hino em louvor da barca do Paraíso. Um anjo e um Diabo anunciam as suas viagens. Todavia a barca do Diabo não pode se mover. Explica o Anjo: “E o batel dos danados, porque nasceu hoje Cristo, está com os remos quebrados, em seco. Oh descuidados, cuidai nisto”. A barca do inferno não pode, pois, se mover na noite de natal. Aos poucos vão se chegando os que morreram, na ordem: um lavrador, uma regateira (vendedora de feira), um pastor, uma pastora, um menino e um taful (jogador profissional, geralmente de cartas). Os mortos desta feita são trabalhadores que cometeram apenas pecadilhos. A vendedora de rua menciona o Brasil. Impedidos que são de entrar na barca da Glória, devem permanecer na praia purgatória até merecerem o Paraíso. O menino embarca com os Anjos e o Diabo leva apenas o Taful, não porque tivesse roubado nos jogos, mas porque renegara em vida os mistérios divinos. Este tenta se defender: “Deus não quis hoje nascer pra remir os pecadores?” Anjo: “E pois, que queres dizer? Que só com o seu padecer se salvam os renegadores?”

GV039. Três Anjos

Remando vão remadores
Barca de grande alegria;
O patrão que a guiava,
Filho de Deos se dizia.
Anjos erão os remeiros,
Que remavão á porfia;
Estandarte d’esperança,
Oh quão bem que parecia!
O mastro da fortaleza
Como cristal reluzia;
A vela com fé cozida
Todo o mundo esclarecia:
A ribeira mui serena,
Que nenhum vento bolia.

(cantam Geovani Dallagrana, Gerson Marchiori, Graciano Santos e Rubem Ferreira Jr.)

 

Comentário:

Ainda  que recheada por diálogos engraçados, novamente, é claro!, entre o Diabo e as almas, esta cena do purgatório é menos genial que a anterior, a do inferno. Aspecto digno de se mencionar é a linguagem dos mortos, carregada de expressões populares. Provavelmente esse falar deve incluir palavras e jargões que permitam identificar algumas regiões portuguesas da época, sutileza que escapa aos ouvidos de hoje.
A vendedora de rua fala no Brasil, numa expressão instigante: “ora, assim me salve Deus e me livre do Brasil”. Sabe-se que nas Ordenações Afonsinas, código de leis promulgadas em Portugal a partir de 1446, já se contava com a punição pelo degredo em terras de África, e, mais tarde incluiu-se terras do Brasil. Punia-se com degredo delitos como matar um animal de outra pessoa ou trapacear nos jogos. Quando D. Manuel enviou uma carta ao rei espanhol, narrando a viagem de Cabral, explicou: “o capitão deixou ali dois degredados à mercê de Deus.” Alguma coisa como: Deus me livre do Brasil!, naquela época, deveria ser uma fórmula comum para se esconjurar a pena desagradável.
Já dona Carolina Michaelis (1851-1925), a maior comentadora da obra de Gil Vicente, tinha feito a observação sobre a canção inicial dos Anjos. Relaciona-a com cantares populares de Portugal, um deles tendo vindo para o Brasil, até hoje uma canção infantil muito cantada: Vamos maninha, vamos, à praia passear, vamos ver a barca bela que do céu caiu no mar. Nossa Senhora vai dentro, os anjinhos a remar, Santo Antonio é o piloto, Nosso Senhor, general. Remem, remem, remadores, que estas águas são de flores.

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Trilogia das Barcas, Inferno (1517)

o frade e a moça

16. Auto da Barca do Inferno (1517)

Resumo:

A barca do Diabo vai levar os pecadores à lha Perdida. Um a um (ou a dois, já que o Frade vem com sua amante) vão desfilando diante de nós alguns dos mais bem pintados tipos vicentinos: o Fidalgo, (cujo pai, segundo o Diabo, já tinha embarcado em ocasião anterior); o usurário, um parvo, um sapateiro, o frade com sua amante, a alcoviteira – mulher que organizava encontros amorosos,  muitas vezes desviando moças pobres – um judeu (porque não seguia os jejuns e os dias religiosos), um juiz e um procurador que recebiam subornos, um enforcado por ter roubado, e finalmente quatro fidalgos que tinham morrido no norte da África. Agora, ninguém consegue enganar. Nem ao Diabo nem a Gil Vicente. Porque o Diabo os conhece por dentro e os castiga com a viagem implacável. E Gil Vicente, que também os conhece por dentro, castiga-os com a implacável zombaria de sua arte refinada; nesse aspecto a Barca do Inferno é uma obra moderníssima. Só escapam o Parvo (bem aventurados os simples…) e os Quatro Cavaleiros que morreram numa guerra que, para os católicos, era santa, porque contra os muçulmanos.

GV037. Diabo

Á barca, á barca, senhores!
Oh que maré tão de prata!
Hum ventosinho que mata,
E valentes remadores.
Vos me veniredes á la mano,
Á la mano me veniredes;
Y vos veredes
Peixes nas redes.

(fala e canto: Jorge Teles)

GV038. Quatro Fidalgos, Cavalleiros da Ordem de Christo

Á Barca, á barca segura,
Guardar da barca perdida:
Á barca, á barca da vida.

Senhores, que trabalhais
Pola vida transitória
Memoria, por Deos, memoria
Deste temeroso cais.

Á barca, á barca, mortaes;
Porém na vida perdida
Se perde a barca da vida.

(cantam Geovani Dallagrana, Gerson Marchiori, Graciano Santos e Rubem Ferreira Jr.)

 

Comentário:

Esta é, com muita razão, a mais famosa peça de Gil Vicente. Do ponto de vista temático é absolutamente medieval. O cômico rege a atmosfera desta Barca desde a primeira cena, já que o Diabo é ironicamente perspicaz. E o autor vai expondo os vícios e as hipocrisias de cada um. Aventuro-me a dizer que grandes escritores são aqueles que conhecem fundo a alma humana. Os outros são malabaristas. Gil Vicente, apesar de pertencer a um período em que a literatura moderna estava dando seus primeiros passos, já demonstra uma sinceridade grande no desnudar seus personagens.
Como em todo o decorrer de sua obra, quando se trata de criticar costumes imorais, o autor aproveita para mostrar algumas das posturas éticas defendidas por Erasmo de Roterdam, para quem a piedade e a honestidade valiam mais que missas e confissões. Vejamos:
Sapateiro: quanta missa que eu ouvi! Diabo: ouvir missa e roubar, é o caminho pra aqui! (Erasmo: …aqueles que, supersticiosamente, acham que, o dia em que não vão à missa não será bem sucedido, e que, tendo acabado a missa, vão-se aos negócios do mundo, ou a roubar, ou ao palácio, e qualquer coisa que aconteça de bem ou mal que tenham feito, o atribuem à missa…)
Frade: para onde levais gente? Diabo: para aquele fogo ardente, que não temeste, vivendo. Frade: juro a Deus que não te entendo. E meu hábito não vale? (Erasmo: …eu acredito que a sinceridade cristã e a pureza evangélica não são a consequência do fato de vestir-se um hábito, mas da honestidade e do propósito de quem o veste… …você acha que exista agora gente tão simplória que, vendo um hábito de São Francisco ou Santo Domingos, vai acreditar que a santidade destes santos está com quem os veste?…)
Frade: há de um frade se perder com tanto salmo rezado? (Erasmo: …vocês colocam toda a sua confiança e felicidade em rezar tal número de rezas e durante tal tempo e em outras cerimônias semelhantes, e fazem tanta conta disto, que descuidam do estudo e do exercício da piedade evangélica…)
As citações de Erasmo pertencem à obra Colóquios.
Gil Vicente deixa claro em seu trabalho que era um livre pensador, que não era fanático, mas buscava uma ética que estivesse vinculada ao cristianismo.

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GIL VICENTE 10. AUTO DA SIBILA CASSANDRA (1511)

cassandra

Resumo:

    Cassandra é cortejada pelo pastor Salomão mas não quer se casar. Ela fala sobre o lado desagradável do casamento: as mulheres são cativas, os homens são ciumentos ou conquistadores; um purgatório. Salomão traz três camponesas, Eritrea, Ciméria e Peresica (Pérsica), tias da moça, para que a convençam. A seguir vêm os tios Esaias, Moyses e Abrahão. Moises fala que o casamento é um sacramento e as camponesas, que têm os nomes das Sibilas, apresentam as profecias sobre a Virgem. Cassandra diz a todos que também profetizou que o Salvador nascerá de uma virgem e ela presume ser esta virgem. Abrem-se cortinas e surge o presépio. Anjos cantam uma cantiga de ninar. Cada um dos presentes dirige-se ao menino e à Virgem, em adoração. Cassandra pele perdão a Maria. Cantam um hino à Virgem e um hino bélico.

GV022. Cassandra

Dicen que me case yo;
No quiero marido, no.

Mas quiero vivir segura
Nesta sierra á mi soltura,
Que no estar en ventura
Si casaré bien ó no.
Dicen que me case yo;
No quiero marido, no.

Madre, no seré casada,
Por no ver vida cansada,
Ó quizá mal empleada
La gracia que Dios me dió.
Dicen que me case yo;
No quiero marido, no.

No será ni es nacido
Tal para ser mi marido;
Y pues que tengo sabido
Que la flor yo me la só,
Dicen que me case yo,
No quiero marido, no.

(canta Carmen Ziege)

GV023. Salomão, Esaias, Moysés, Abrahão

Que sañosa está la niña!
Ay Dios, quien le hablaria!

En la sierra anda la niña
Su ganado á repastar;
Hermosa como las flores,
Sañosa como la mar.
Sañosa como la mar
Está la niña;
Ay Dios, quien le hablaria!

(cantam Geovani Dallagrana, Gerson Marchiori, Graciano Santos e Ruben Ferreira Jr.)

GV024. Quatro Anjos

Ro ro ro
Nuestro Dios y Redentor,
No lloreis, que dais dolor
Á la vírgen que os parió.
Ro ro ro.

Niño hijo de dios Padre,
Padre de todalas cosas,
Cesen las lágrimas vuesas,
No llorará vuestra madre,
Pues sin dolor os parió.
Ro, ro, ro,
No le deis vos pena, no.

Ora, niño, ro ro ro.
Nuestro Dios y Redentor,
No lloreis, que dais dolor
Á la vírgen que os parió.
Ro ro ro.

(canta Jorge Teles)

GV025. Todos

Muy graciosa es la doncella:
Como es bella y hermosa!

Digas tú, el marinero,
Que en las naves vivías,
Si la nave ó la vela ó la estrella
Es tan bella.

Digas tú, el caballero,
Que las armas vestías,
Si el caballo ó las armas ó la guerra
Es tan bella.

Digas tú, el pastorcico,
Que el ganadico guardas,
Si el ganado ó las valles ó la sierra
Es tan bella.

(canta Jorge Teles)

GV026. Todos

Á la guerra,
Caballeros esforzados;
Pues los ángeles sagrados
Á socorro son en tierra.
Á la guerra.

Con armas resplandecientes
Vienen del cielo volando,
Dios y hombre apelidando
En socorro de las gentes,
Á la guerra,

Caballeros esmerados;
Pues los ángeles sagrados
Á socorro son en tierra
Á la guerra.

(cantam Geovani Dallagrana, Gerson Marchiori e Graciano Santos)

Comentário:

Texto integralmente em espanhol. Este Auto mostra um notável passo estilístico em Gil Vicente. Abandonou completamente a estrutura dos autos de natal ibéricos. Juntou quatro nomes bíblicos, Abraão, Moisés, Salomão e Isaías, como pastores, três profetizas da antiguidade, adotadas pelo cristianismo, e Cassandra, filha de Príamo e Hécuba, também profetiza, mas do ciclo troiano. Esta última não tem nenhuma ligação com o cristianismo. Com relação a estas profetizas pagãs, desde um sermão de Agostinho (354-430) elas eram reverenciadas pelo cristianismo. O filósofo citava supostas previsões das mesmas sobre o nascimento de Cristo. Michelangelo pintaria cinco delas no teto da Capela Sistina, de 1508 a 1512. Rafael pintaria quatro Sibilas na Capela Cighi da Igreja Santa Maria della Pace, em Roma, em 1514; o Auto de Gil Vicente é tido como de 1511.
Notável é o desenlace que o Autor dá à presunção de Cassandra. A atitude que facilmente poderia ser considerada como blasfêmia é perdoada com toda tranquilidade.
O Auto apresenta cinco belíssimos textos de canções, terminando com um canto à guerra, totalmente fora de contexto. Sobre a canção Muy graciosa es la doncella, uma rubrica dentro do texto diz que a mesma foi “feita e ensaiada pelo autor”. Deve-se deduzir, então, que as outras não seriam de sua lavra, mas cantos populares aproveitados. Veremos mais tarde que ele mesmo cuidou das canções de muitas de suas peças, por pertencerem a um contexto muito específico, como a que narra a viagem para a Itália da filha do rei dom Manuel ou o nascimento do príncipe herdeiro, filho de Dom João III, entre muitas outras. Por outro lado, sabemos que muitas canções de peças de Gil Vicente eram cantares populares, na maioria anônimos, por constarem em Cancioneiros famosos (coleções de textos, verdadeiras peças de arte, geralmente em pergaminho, com a letra, a partitura e iluminuras).
Com relação ao hino bélico do final, acredita-se que seja um incentivo à aceitação das atividades militares dos portugueses na África.

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