Trilogia das Barcas, Inferno (1517)

o frade e a moça

16. Auto da Barca do Inferno (1517)

Resumo:

A barca do Diabo vai levar os pecadores à lha Perdida. Um a um (ou a dois, já que o Frade vem com sua amante) vão desfilando diante de nós alguns dos mais bem pintados tipos vicentinos: o Fidalgo, (cujo pai, segundo o Diabo, já tinha embarcado em ocasião anterior); o usurário, um parvo, um sapateiro, o frade com sua amante, a alcoviteira – mulher que organizava encontros amorosos,  muitas vezes desviando moças pobres – um judeu (porque não seguia os jejuns e os dias religiosos), um juiz e um procurador que recebiam subornos, um enforcado por ter roubado, e finalmente quatro fidalgos que tinham morrido no norte da África. Agora, ninguém consegue enganar. Nem ao Diabo nem a Gil Vicente. Porque o Diabo os conhece por dentro e os castiga com a viagem implacável. E Gil Vicente, que também os conhece por dentro, castiga-os com a implacável zombaria de sua arte refinada; nesse aspecto a Barca do Inferno é uma obra moderníssima. Só escapam o Parvo (bem aventurados os simples…) e os Quatro Cavaleiros que morreram numa guerra que, para os católicos, era santa, porque contra os muçulmanos.

GV037. Diabo

Á barca, á barca, senhores!
Oh que maré tão de prata!
Hum ventosinho que mata,
E valentes remadores.
Vos me veniredes á la mano,
Á la mano me veniredes;
Y vos veredes
Peixes nas redes.

(fala e canto: Jorge Teles)

GV038. Quatro Fidalgos, Cavalleiros da Ordem de Christo

Á Barca, á barca segura,
Guardar da barca perdida:
Á barca, á barca da vida.

Senhores, que trabalhais
Pola vida transitória
Memoria, por Deos, memoria
Deste temeroso cais.

Á barca, á barca, mortaes;
Porém na vida perdida
Se perde a barca da vida.

(cantam Geovani Dallagrana, Gerson Marchiori, Graciano Santos e Rubem Ferreira Jr.)

 

Comentário:

Esta é, com muita razão, a mais famosa peça de Gil Vicente. Do ponto de vista temático é absolutamente medieval. O cômico rege a atmosfera desta Barca desde a primeira cena, já que o Diabo é ironicamente perspicaz. E o autor vai expondo os vícios e as hipocrisias de cada um. Aventuro-me a dizer que grandes escritores são aqueles que conhecem fundo a alma humana. Os outros são malabaristas. Gil Vicente, apesar de pertencer a um período em que a literatura moderna estava dando seus primeiros passos, já demonstra uma sinceridade grande no desnudar seus personagens.
Como em todo o decorrer de sua obra, quando se trata de criticar costumes imorais, o autor aproveita para mostrar algumas das posturas éticas defendidas por Erasmo de Roterdam, para quem a piedade e a honestidade valiam mais que missas e confissões. Vejamos:
Sapateiro: quanta missa que eu ouvi! Diabo: ouvir missa e roubar, é o caminho pra aqui! (Erasmo: …aqueles que, supersticiosamente, acham que, o dia em que não vão à missa não será bem sucedido, e que, tendo acabado a missa, vão-se aos negócios do mundo, ou a roubar, ou ao palácio, e qualquer coisa que aconteça de bem ou mal que tenham feito, o atribuem à missa…)
Frade: para onde levais gente? Diabo: para aquele fogo ardente, que não temeste, vivendo. Frade: juro a Deus que não te entendo. E meu hábito não vale? (Erasmo: …eu acredito que a sinceridade cristã e a pureza evangélica não são a consequência do fato de vestir-se um hábito, mas da honestidade e do propósito de quem o veste… …você acha que exista agora gente tão simplória que, vendo um hábito de São Francisco ou Santo Domingos, vai acreditar que a santidade destes santos está com quem os veste?…)
Frade: há de um frade se perder com tanto salmo rezado? (Erasmo: …vocês colocam toda a sua confiança e felicidade em rezar tal número de rezas e durante tal tempo e em outras cerimônias semelhantes, e fazem tanta conta disto, que descuidam do estudo e do exercício da piedade evangélica…)
As citações de Erasmo pertencem à obra Colóquios.
Gil Vicente deixa claro em seu trabalho que era um livre pensador, que não era fanático, mas buscava uma ética que estivesse vinculada ao cristianismo.

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GIL VICENTE 15. COMÉDIA DO VIÚVO (1514)

dom rosvel

Resumo:

Um homem lamenta a perda de sua mulher. Vem um Frade consolá-lo. A seguir um Compadre diz que ele é feliz e invejado por estar viúvo. O compadre descreve sua mulher, que é uma verdadeira serpente. Saem estes e as duas filhas do viúvo, Paula e Melícia, lamentam a orfandade. Falam as duas: “Grande segredo é morrer. Mas é muito declarado, maior segredo é viver e sendo certo a partida, não estar bem preparado”. Dom Rosvel, um Príncipe, as vê e disfarça-se de empregado. O viúvo o admite para os mais baixos serviços: cuidar dos porcos, trazer lenha. Num momento em que o viúvo está ausente, Dom Rosvel declara-se. Está apaixonado pelas duas e diz-se ser feliz apenas com as tarefas que desempenha, por poder estar junto delas, apesar de ser filho de duque e duquesa. O viúvo volta e diz já ter acertado o casamento de Paula. Nesse momento surge dom Gilberto, irmão de dom Rosvel. Algumas feiticeiras haviam falado aos seus pais de como vivia o filho perdido e ele saíra pelo mundo, para procurá-lo. Vai dom Rosvel até o príncipe Dom João III, que faz parte da platéia (nessa altura, com 12 anos) e pergunta com quem deve se casar. O príncipe indica Paula. O irmão do príncipe se apaixona por Melícia. Chegam músicos e um padre e a obra termina com os dois casamentos.

GV034. D. Rosvel

Arrimárame à tí, rosa,
No me diste solombra.

(canta Jaqueson Magrani)

GV035. D. Rosvel

Mal herido me ha la niña,
No me hacen justicia.

(canta Jaqueson Magrani)

GV036. Quatro Cantores

Estanse dos hermanas
Doliéndose de si;
Hermosas son entrambas
Lo mas que yo nunca ví.
Hufa! Hufa!
Á la fiesta, á la fiesta
Que las bodas son aqui.

Namorado se había dellas
Don Rosvel Tenori:
Nunca tan lindos amores
Yo jamas contar oí.
Hufa! Hufa!
Á la fiesta, á la fiesta,
Que las bodas son aqui.

(cantam Gerson Marchiori e Graciano Santos)

 

Comentário:

A peça é toda em castelhano. Aos poucos a obra de Gil Vicente vai sendo enriquecida com situações psicológicas mais sutis e um humor recheado com mais finas ironias. Esta obra é um exemplo, ao mostrar a indecisão do Príncipe em relação às duas moças e as palavras do Compradre ao descrever a serpente que é sua mulher. O tema do nobre enamorado que se finge de trabalhador rústico é constante na literatura da época. Gil Vicente vai repetí-lo em Dom Duardos, Cervantes narra episódios no Dom Quixote.

Há uma certa simplicidade no desenrolar da ação, resultado de uma cultura conservadora muito presa ao catolicismo. Se pensarmos que, duzentos anos antes, a literatura italiana já mostrava uma moderníssima licenciosidade, podemos levantar grandes diferenças entre as culturas portuguesa e a italiana. Pensemos no Decameron, de Boccaccio (1313-1375) e na Mandrágora, de Maquiavel (1469-1527). A Itália era o centro do catolicismo e sabe-se da corrupção e imoralidade que reinava no Vaticano, motivo da revolução protestante, que se iniciará em 1517, com a reação luterana à venda das indulgências. Portugal e Espanha se mantinham num cristianismo mais puro (apesar das constantes denúncias de Gil Vicente aos maus costumes do clero). O resto da Europa fervilhava em discussões sobre religião e ética. Gil Vicente tentou acompanhar o pensamento de Erasmo de Roterdã, como se percebe em seu trabalho e em uma carta endereçada ao rei João III, muito mais tarde. Mas os costumes apresentados em sua obra são pautados por um comportamento rígido e preso às normas ditadas pelo catolicismo.

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GIL VICENTE 10. AUTO DA SIBILA CASSANDRA (1511)

cassandra

Resumo:

    Cassandra é cortejada pelo pastor Salomão mas não quer se casar. Ela fala sobre o lado desagradável do casamento: as mulheres são cativas, os homens são ciumentos ou conquistadores; um purgatório. Salomão traz três camponesas, Eritrea, Ciméria e Peresica (Pérsica), tias da moça, para que a convençam. A seguir vêm os tios Esaias, Moyses e Abrahão. Moises fala que o casamento é um sacramento e as camponesas, que têm os nomes das Sibilas, apresentam as profecias sobre a Virgem. Cassandra diz a todos que também profetizou que o Salvador nascerá de uma virgem e ela presume ser esta virgem. Abrem-se cortinas e surge o presépio. Anjos cantam uma cantiga de ninar. Cada um dos presentes dirige-se ao menino e à Virgem, em adoração. Cassandra pele perdão a Maria. Cantam um hino à Virgem e um hino bélico.

GV022. Cassandra

Dicen que me case yo;
No quiero marido, no.

Mas quiero vivir segura
Nesta sierra á mi soltura,
Que no estar en ventura
Si casaré bien ó no.
Dicen que me case yo;
No quiero marido, no.

Madre, no seré casada,
Por no ver vida cansada,
Ó quizá mal empleada
La gracia que Dios me dió.
Dicen que me case yo;
No quiero marido, no.

No será ni es nacido
Tal para ser mi marido;
Y pues que tengo sabido
Que la flor yo me la só,
Dicen que me case yo,
No quiero marido, no.

(canta Carmen Ziege)

GV023. Salomão, Esaias, Moysés, Abrahão

Que sañosa está la niña!
Ay Dios, quien le hablaria!

En la sierra anda la niña
Su ganado á repastar;
Hermosa como las flores,
Sañosa como la mar.
Sañosa como la mar
Está la niña;
Ay Dios, quien le hablaria!

(cantam Geovani Dallagrana, Gerson Marchiori, Graciano Santos e Ruben Ferreira Jr.)

GV024. Quatro Anjos

Ro ro ro
Nuestro Dios y Redentor,
No lloreis, que dais dolor
Á la vírgen que os parió.
Ro ro ro.

Niño hijo de dios Padre,
Padre de todalas cosas,
Cesen las lágrimas vuesas,
No llorará vuestra madre,
Pues sin dolor os parió.
Ro, ro, ro,
No le deis vos pena, no.

Ora, niño, ro ro ro.
Nuestro Dios y Redentor,
No lloreis, que dais dolor
Á la vírgen que os parió.
Ro ro ro.

(canta Jorge Teles)

GV025. Todos

Muy graciosa es la doncella:
Como es bella y hermosa!

Digas tú, el marinero,
Que en las naves vivías,
Si la nave ó la vela ó la estrella
Es tan bella.

Digas tú, el caballero,
Que las armas vestías,
Si el caballo ó las armas ó la guerra
Es tan bella.

Digas tú, el pastorcico,
Que el ganadico guardas,
Si el ganado ó las valles ó la sierra
Es tan bella.

(canta Jorge Teles)

GV026. Todos

Á la guerra,
Caballeros esforzados;
Pues los ángeles sagrados
Á socorro son en tierra.
Á la guerra.

Con armas resplandecientes
Vienen del cielo volando,
Dios y hombre apelidando
En socorro de las gentes,
Á la guerra,

Caballeros esmerados;
Pues los ángeles sagrados
Á socorro son en tierra
Á la guerra.

(cantam Geovani Dallagrana, Gerson Marchiori e Graciano Santos)

Comentário:

Texto integralmente em espanhol. Este Auto mostra um notável passo estilístico em Gil Vicente. Abandonou completamente a estrutura dos autos de natal ibéricos. Juntou quatro nomes bíblicos, Abraão, Moisés, Salomão e Isaías, como pastores, três profetizas da antiguidade, adotadas pelo cristianismo, e Cassandra, filha de Príamo e Hécuba, também profetiza, mas do ciclo troiano. Esta última não tem nenhuma ligação com o cristianismo. Com relação a estas profetizas pagãs, desde um sermão de Agostinho (354-430) elas eram reverenciadas pelo cristianismo. O filósofo citava supostas previsões das mesmas sobre o nascimento de Cristo. Michelangelo pintaria cinco delas no teto da Capela Sistina, de 1508 a 1512. Rafael pintaria quatro Sibilas na Capela Cighi da Igreja Santa Maria della Pace, em Roma, em 1514; o Auto de Gil Vicente é tido como de 1511.
Notável é o desenlace que o Autor dá à presunção de Cassandra. A atitude que facilmente poderia ser considerada como blasfêmia é perdoada com toda tranquilidade.
O Auto apresenta cinco belíssimos textos de canções, terminando com um canto à guerra, totalmente fora de contexto. Sobre a canção Muy graciosa es la doncella, uma rubrica dentro do texto diz que a mesma foi “feita e ensaiada pelo autor”. Deve-se deduzir, então, que as outras não seriam de sua lavra, mas cantos populares aproveitados. Veremos mais tarde que ele mesmo cuidou das canções de muitas de suas peças, por pertencerem a um contexto muito específico, como a que narra a viagem para a Itália da filha do rei dom Manuel ou o nascimento do príncipe herdeiro, filho de Dom João III, entre muitas outras. Por outro lado, sabemos que muitas canções de peças de Gil Vicente eram cantares populares, na maioria anônimos, por constarem em Cancioneiros famosos (coleções de textos, verdadeiras peças de arte, geralmente em pergaminho, com a letra, a partitura e iluminuras).
Com relação ao hino bélico do final, acredita-se que seja um incentivo à aceitação das atividades militares dos portugueses na África.

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