GIL VICENTE 19. FARSA CHAMADA AUTO DA ÍNDIA (1519)

Lemos


Resumo:

A Ama está chorando. A Criada acha que é porque o marido está de partida para as Índias. Não! É o contrário, pois dizem que já não vai. Mas ele se vai e ela fica, “em maio, quando o sangue novo atiça”. Logo surge o Castelhano que acabou de saber que o marido se fora. Ele desfia uma sequência longa de frases exageradas, para mostrar sua paixão: “y ando un cuerpo sin alma, un papel que lleva el viento, un pozo de pensamiento, una fortuna sin calma”. Ela não quer recebê-lo. E ele: “O mi vida y mi señora, luz de todo Portugal, teneis gracia especial para linda matadora”. Ela combina um encontro à noite.  A seguir surge Lemos, cheio de gentilezas: Ela: “Jesu! tamanha mesura! Sou rainha, porventura?” Ele: ” mas sois minha imperadora”. Ele despacha a Criada, para que vá as compras e traga vinho e comida. Enquanto Lemos faz a corte, o Castelhano  grita do lado de fora da janela. A Lemos, ela diz que é o irmão que está lá fora. Ao Castelhano, ela manda que se vá. Ele ameaça, fanfarrão: “Quiero destruir el mundo, quemar la casa, es la verdad, despues quemar la ciudad”. A Ama controla os dois. Quando volta o marido, ela dissimula, fala de suas saudades e rezas e jejuns. Ele narra os perigos da viagem. Vão-se a ver a nave.

GV042. Lemos

Quem vos anojou, meu bem,
Bem anojado me tem.

(canta João Batista Carneiro)

 

Comentário:

Típica comédia de situações, caracterizada principalmente pelos protótipos humanos. O marido bonachão e ingênuo, a mulher mentirosa e adúltera, o cortejador vulgar e o espanhol fanfarrão. Comentando com venenosos e realistas apartes, a Criada vai costurando as cenas entre si. Seria esta a mais perfeita comédia de Gil Vicente? Se não for, há de ser uma das mais graciosas.

O Auto da India é a primeira ficção portuguesa que tem por tema as viagens à India. As referências são bem claras. O marido vai para Calecut, na India, atrás da negra canela. Volta três anos depois. A mulher preparou pão especial, mais seco, para ser consumido na viagem. Ela presume que ele voltou rico mas ele disse que “se não fosse o capitão…”, ele teria muito mais. Mostra também a promiscuidade linguística vigente em Portugal nessa época, havendo diálogos entre portugueses e espanhol, cada um se manifestando na sua língua natal.

Esta peça de Gil Vicente tem, para mim, um vínculo muito especial. Quando a Professora Cecília Teixeira de Oliveira Zokner, à ocasião diretora do Centro de Estudos Portugueses da Universidade Federal do Paraná, criou o Grupo Gil Vicente, em 1970, eu, no primeiro ano do curso de Letras, fui convidado a participar do Grupo. A peça já tinha sido escolhida, era o Auto da India. Meu conhecimento de Gil Vicente era superficial, o criador do teatro em Portugal com o Monólogo do Vaqueiro, o Auto da Barca do Inferno, pouca coisa… Por causa de minha pequena experiência caseira com fantoches, fui escolhido para a função de direção. E por força disso, tive que fazer um estudo mais detalhado, visando a encenação, o que incluia uma atualização do texto para platéia desacostumada ao português do século XVI.

Mas, o que mais me surpreendeu no trabalho de Gil Vicente, coisa que logo percebi como marca de seu teatro, era a maneira como o dramaturgo (e todos os contemporâneos, constatei a seguir), tratava a unidade de Tempo. No teatro ibérico da época não há separação cênica para indicar a passagem de tempo. As cenas vão se sucedendo num fluir contínuo, sem cortes. Numa mesma estrofe o tempo pode transcorrer uma noite, dias, meses, anos. Exemplo:

Dormirei, dormirei,

boas novas acharei.

São João no ermo estava,

e a passarinha cantava.

Deus me cumpra o que sonhei.

A título de curiosidade, apresento a seguir a lista dos participantes da primeira encenação do Grupo. Maria Salete Busnardo – Moça (Criada); Marilú Silveira – Constança (Ama); Brás Ogleari – Castelhano; Helio Silva Altieri – Lemos; Manoel Moacir Werner – Marido; Sônia Berto – Figurino; Leika Puccynsky – Coordenação; Jorge de Souza Teles – Direção; Cecilia Teixeira de Oliveira Zokner – Supervisão. A apresentação aconteceu em Curitiba, no Círculo de Estudos Bandeirantes, às 21 horas do dia 17 de novembro de 1970.

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