GIL VICENTE 41. AUTO DE MOFINA MENDES (1534)

a Virgem

Resumo:

Um Frade entra com um sermão cheio de citações, algumas sem nexo. Diz-se enviado para apresentar as figuras do Auto: a Virgem e suas criadas, Prudência, Pobreza, Humildade e Fé. As criadas têm livros e Maria pergunta a cada uma o que estão lendo. Elas enumeram diversas profecias sobre o nascimento de Cristo. Maria exclama: “Oh, se eu fosse tão ditosa que com estes olhos visse senhora tão preciosa, tesouro da vida nossa, e por escrava a servisse”.  Entra Gabriel e faz a ela a anunciação. Prudência, Pobreza, Humildade e Fé instruem sobre as respostas ao Anjo. Após este passo, fecha-se a cortina e a cena se desloca. Pastores estão entretidos em suas tarefas e entre eles Mofina Mendes. É desajeitada. Anuncia os desastres que aconteceram a todos os animais sob seus cuidados. É despedida e recebe um pote de azeite. Há o recantado relato sobre a sonhadora que ficará rica vendendo o azeite, comprando ovos, vendendo ovos, e casando-se. Quebra-se o pote e o devaneio termina. Mofina sai cantando. Chegam outros pastores e dormem. Segue-se a segunda parte do Auto natalino, que é uma “contemplação” da natividade. Virtudes conclamam ao louvor a todos e a tudo, incluindo os fenômenos da natureza. Maria pede que a Fé vá ao povoado e traga acesa a vela da fé. A Fé volta e diz que não conseguiu pessoa que a acendesse. Maria pede à Prudência que vá ao povo para acender a vela da esperança. José intercede e pede que ela desista de pedir luz às gentes. Prudência diz que não há necessidade de luz, pois que “o Senhor qu’ há de nascer é a mesma claridade”. Um Anjo canta para que os pastores acordem e adorem seu rei. Anjos tocam os instrumentos, as Virtudes cantam e os pastores dançam, saindo todos.

GV136. Mofina Mendes

Por mais que a dita m’engeite,
Pastores, não me deis guerra;
Que todo o humano deleite,
Como o meu pote d’azeite,
Ha de dar comsigo em terra.

(canta Carmen Ziege)

GV137. Anjo

Recordae, pastores!
Que vos levanteis.
Naceu em terra de Judá
Hum Deos so, que vos salvará.
Que vos levanteis.
Ah pastor! Ah Pastor!
Chama todos teus parceiros,
Vereis vosso Redemptor.

(canta Jaqueson Magrani)

 

Comentário:

Último auto natalino composto por Gil Vicente, uma peça madura e poética. Entre a anunciação e o nascimento, acontece a cena profana de Mofina Mendes.
Ao que tudo indica, alguns Autos separavam o sagrado do profano por meio de uma cortina. Alguns aconteciam em capelas, como o Auto dos Quatro Tempos. A anunciação feita por Gabriel é interessantemente dramatizada. Após cada palavra do Anjo, Maria pergunta a suas criadas o que deve responder e elas vão aconselhando suas respostas. A ave-maria acaba se transformando num lírico texto expandido.
Todo o texto da introdução, o prólogo dito pelo Frade, foi proibido nas edições de 1586 e 1624.

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GIL VICENTE 36. TRIUNFO DO INVERNO (1529)

Inverno

Resumo:

O próprio Autor se apresenta como prólogo, lamentando uma antiga alegria, não mais existente em Portugal. Diz que se acabaram as festas populares com suas danças e seus cantos e que o povo tem estado triste. A seguir, o Inverno entra, selvagem, anunciando suas ações. Para mostrar sua força, apresenta seu primeiro triunfo, que é cobrir de neve uma serra: “Soy portero de los vientos, pastor de las tempestades…” Vem um Pastor, imprecando contra o frio e elogiando o Verão. Há uma incrível discussão entre ele e o Inverno e acabam trocando pragas. Outro Pastor vem e diz que não tem vestes contra o frio, porque esteve apaixonado durante o verão e gastou todo o dinheiro em flores e presentes para a namorada. Uma Velha surge a seguir: deve atravessar a serra descalça sobre a neve porque recebeu este desafio de um jovem, para que ele a aceite como namorada. O Inverno despede aos três para mostrar seu segundo triunfo. É uma impressionante e realista tempestade no mar. Durante a tempestade, um dos marinheiros começa a rezar: “Oh Virgem da Luz Senhora! São Jorge! São Nicolau!” Mas diz o Piloto: “Acudi eramá a náu, deixai os santos agora!” Após isto, três Sereias entoam uma confortadora canção sobre a esperança. O Inverno leva as Sereias até as majestades e elas cantam um romance enaltecendo Portugal e seus reis. O Verão expulsa o Inverno. Descreve o novo cenario: saiam as flores, cantem as aves. Chama a Serra de Sintra para que ela usufrua suas benesses. Um casal do povo reclama do calor, ele é ferreiro e ela forneira. Entra um grupo de moços e moças, trazendo aos reis os jardins perenais. Cantam em honra do Verão e da criança que nascera, filha de Dom João III e dona Catarina.

GV114. Autor

Terra frida d’eismelo,
No me negueis mi consuelo.

(canta Giovanni Dallagrana)

GV115. Autor

No penedo João Preto
E no penedo.

Quaes forão os perros
Que matárão os lobos,
Que comêrão as cabras,
Que roêrão o bacello
Que posera João Preto
No penedo?

(canta Rubem Ferreira Jr)

GV116. Brisco

Quien maora ca mi sayo,
Cuitado,
Quien maora ca mi sayo.

El mozo y la moza
Van en romería:
Tómales la noche
Naquella montina:

Cuitado,
Quien maora ca mi sayo.

Tómales la noche
Naquella montina,
La moza cantaba,
El mozo dexia:
Cuitado,
Quien maora ca mi sayo.

(canta Graciano Santos)

GV117. Juan Guijarro

Por do pasaré la sierra,
Gentil serrana morena?

Tu ru ru ru rá: quien la pasará?
Tu ru ru ru ru: no la pases tú.
Tu ru ru ru ré: yo la pasaré.
Di, serrana, por tu fe
Si naciste en esta tierra,
Por do pasaré la sierra,
Gentil serrana morena?

Ti ri ri ri ri: queda tú aqui.
Tu ru ru ru ru: qué me quieres tú?
To ro ro ro ro: que yo sola estó.
Serrana, no puedo no,
Que otro amor me da guerra.
Como pasaré la sierra,
Gentil serrana morena?

(cantam João Batista Carneiro e Carmen Ziege)

GV118. Velha

Assi andando, amor andando,
Assi andando m’ora irei.

(canta Kátia Santos)

GV119. Velha

Polo canaval da neve
Não h’a hi amor que me leve.

(canta Carmen Ziege)

GV120. Tres Sereas

Por mas que la vida pene,
No se pierda el esperanza,
Porque la desconfianza
Sola la muerte la tiene.
Si fortuna dolorida
Tuviera quien bien la sienta,
Sentirá que toda afrenta
Se remedia con la vida.
Y pues doble gloria tiene
Despues del mal la bonanza,
No se pierda el esperanza
En quanto muerte no viene.
Ha a a – ha a a – ha a a.

(cantam Carmen Ziege e Kátia Santos)

GV121. Sereias

Deus do ceu e Rei do mundo,
Por sempre sejas louvado,
Que mostraste tais grandezas
Em tudo que tens criado.
Fizeste reinos distintos
E cada um no seu grado,
Deste-lhes mui justos reis,
Cada rei no seu reinado.
Também deste a Portugal,
De mouros sendo ocupado,
O rei dom Afonso Henriques,
Que antes o tinha ganhado.
Este santo cavaleiro
De teu poder ajudado,
Venceu a cinco reis mouros
Juntos em campo apraçado.
Tu cinco chagas lhe deste
Em paga do seu cuidado.
Que as deixasse por armas
Ao seu reino assinalado.
Recorda-te, Portugal,
Quanto Deus te tem honrado;
Pois deu-te as terras do sol
Por comércio a teu mandado;
E os jardins de toda a terra
Tu tens bem assenhoreado:
Os pomares do Oriente
Dão-te seu fruto apreciado.
Seus paraísos terreais
Fechaste com teu cadeado.
Louva ao que te deu a chave
Do melhor que tem criado;
Todas as ilhas ignotas
Só a ti tem revelado.
De quinze Reis que tiveste,
Nenhum te tem despresado,
Mas de melhor em melhor
Têm-te acrescentado;
Tuas Rainhas passadas
Santas têm acabado.
Se a Deus deste louvores
Por quantos bens te tem dado,
Dá-lhe graças novamente,
Pois de novo te há olhado.
Deu-te o Rei Dom João,
Terceiro deste ditado;
E da rainha preciosa,
Porque sejas mais ligado,
Duas filhas primeiramente
Tudo por Deus ordenado;
Como quem sabe o bom,
Assim te tem orquestrado,
Bem sabes, Reino ditoso,
As Infantes que te ha dado,
Umas para Imperatrizes,
Rainhas que tens criado.
Outros Reis da Cristandade
De tua estirpe têm manado,
E também Imperadores
Procedem de teu costado,
Teu príncipe natural
Deus por ti o tem guardado,
E nascerá em tuas mãos
Quando o tempo for chegado.

(cantam Jorge Teles, Gerson Marchiori, João Batista Carneiro, Carmen Ziege, John Théo, Jáqueson Magrani, Rubem Ferreira Jr, Kátia Santos, Giovani Dallagrana e Graciano Santos)

GV122. Verão

Del rosal vengo, mi madre,
Vengo del rosale.

Á riberas daquel vado
Viera estar rosal granado.
Vengo del rosale.

Á riberas daquel rio
Viera estar rosal florido,
Vengo del rosale.

Viera estar rosal florido,
Cogí rosas con sospiro.
Vengo del rosale.

Del rosal vengo, mi madre,
Vengo del rosale.

(canta Jorge Teles)

GV123. Quatro mancebos e quatro moças

Quem diz que não he este
San João o verde?

(canta Jáqueson Magrani)

 

… Sintrãos e Principe (V.GV108, na peça Náu d’Amores)
Vento bueno nos ha de levar,
Garrido he o vendaval.

 

Comentário:

Tomando como tema o mito da luta entre os elementos da natureza nos extremos das estações, Gil Vicente construiu um poderoso painel. É uma sequência de cenas cativantes em que diferentes personagens se sucedem, sofrendo os rigores atmosféricos mas, humanamente, defendendo-se como podem e praguejando quando saída outra não lhes resta. Esta obra é um dos mais soberbos exemplos da genialidade de Gil Vicente. Feita para festejar o nascimento de uma filha de Dom João III, é uma demonstração de seu talento.
Como no decorrer de toda a sua obra, Gil Vicente não perde oportunidade para criticar aspectos da religiosidade do povo ou dos costumes da nobreza portuguesa, que ele considerava errados. Durante a tempestade ele faz com que o Piloto diga que é preciso trabalhar e não rezar. E um dos personagens critica um costume da época, que era dar o comando de um navio a um nobre importante, um aderente do paço, que nada entendia de navegação. Diz o Marinheiro: “Esta é uma errada, que mil erros traz consigo, ofício de tanto perigo, dar-se a quem não sabe nada”.
A discussão entre o Inverno e o Pastor é muito semelhante aos desafios dos cantadores do nordeste brasileiro.
O longo romance cantado pelas Sereias, narrando o brilho português, está em espanhol no original. Fiz uma tradução para o português, para dar autenticidade à canção.

Entre esta peça, de 1529, e a seguinte, de 1532, ocorrerá o trágico terremoto que destruíu boa parte de Lisboa, em 1531. Alguns frades de Santarém estavam anunciando a vinda imediata de outro terremoto, o que provocou tumulto no meio do povo. Acusavam, como causa dos desastres, a ira de Deus, pela presença dos cristãos-novos em Portugal. Cristãos-novos era o nome dado aos judeus convertidos ao cristianismo. Trinta e cinco anos antes havia sido decretada a sua expulsão e houve a conversão forçada dos remanescentes. Percebe-se, pois, que ainda havia preconceito fanático contra a presença dos convertidos. Numa carta endereçada ao rei, Gil Vicente conta os argumentos que apresentou aos frades, sobre as forças cegas da natureza, restaurando a tranquilidade no lugar.

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GIL VICENTE 30. FARSA DOS ALMOCREVES (1526)

o ourives

Resumo:

Um capelão, um ourives e dois almocreves (tropeiros, transportavam mercadorias para as pessoas), cobram de um Fidalgo as suas dívidas. Este, com sofismas, sarcasmos ou elogios, vai protelando os pagamentos. Seu principal argumento é que ele é bem recebido na corte, tendo intimidade com o rei, prometendo indicações e promoções para cada um dos credores. Ao final há uma conversa entre este Fidalgo e um outro, apaixonado, onde ambos expõem seus caracteres: o primeiro oportunista (por quantas damas Deus tem, não daria nem migalha), o segundo enamorado, idealista (quando fordes namorado, vireis a ser mais profundo, mais discreto e mais sutil, porque o mundo namorado é lá, senhor, outro mundo que está além do Brasil).

GV098. Pero Vaz

A serra é alta, fria, e nevosa;
Vi venir serrana, gentil, graciosa,
Vi venir serrana, gentil, graciosa;

Vi venir serrana, gentil, graciosa;
Cheguei-me per ella com gran cortezia,
Cheguei-me per ella com gran cortezia.

Cheguei-me per ella de gran cortezia.
Disse-lhe: “Senhora, quereis companhia?”
Disse-lhe: “Senhora, quereis companhia?”

Disse-lhe: “Senhora, quereis companhia?”
Disse-me: “Escudeiro, segui vossa via.”
Disse-me: “Escudeiro, segui vossa via.”

(canta Jaqueson Magrani)

 

Comentário:

Vai Gil Vicente entretendo a corte e tecendo a grande tapeçaria de sua obra. Esta peça padece da falta de alguma continuidade pois que não há ligação natural entre a primeira parte – as cobranças dos credores – e a parte final, o diálogo dos dois fidalgos, exibindo suas diferenças de carater. Mas, inda que em todas as peças não se encontre sempre lampejos de uma grande genialidade, a partir de um certo ponto, nota-se uma constante homogeneidade nas principais características do autor: lirismo nos textos, pintura de tipos humanos, linguagem sempre apropriada e uma mordacidade nunca misericordiosa. Aqui, Gil Vicente critica o tipo de vida de alguns fidalgos pobres, gastando o que não tinham para manter aparências de riqueza, e o objetivo de todo súdito: conseguir uma pensão real – a moradia – que consistia numa renda mensal e um tanto de cevada.
Novamente é citado o Brasil, desta vez significando um lugar ou uma coisa muito distante.

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