A Espécie Humana – capítulos 55, 56, 57, 58 e 59
55.
liguei a fita de Gounod. e sentei-me, colocando sobre as pernas um travesseiro onde deitei a cabeça de meu filho.
Ego sum…
pai, grandes obras foram dedicadas à religião. os maiores músicos acabaram por criar obras-primas em torno da liturgia. e, ao final, o catolicismo ficou com um patrimônio artístico dos mais espetaculares.
isto não tem nada a ver com Deus mas com o Poder e com a criatividade do ser humano. o Poder compra, sustenta e garante a manutenção da arte. o homem cria obras-primas porque é capaz de criá-las. se não tivesse um pretexto, inventaria. ouça esta música, filho. os instrumentos têm sons prodigiosos. as melodias são dilacerantes. acordes e polifonias, parece que isto já existia, o autor apenas tirou-lhe a névoa que a escondia. e essas vozes! criaturas privilegiadas que transformam suas gargantas no instrumento mais esplendoroso de todos.
pouca gente gosta disso.
Kamalas. novamente a imagem da criança que não tem oportunidade pra aprender. já te falei da estética da nostalgia?
não.
é assim. numa determinada época, identificamo-nos com determinada obra. fiquemos com a música. uma canção infantil, quando criança. uma canção de amor, quando apaixonado. uma novela repete a mesma música durante meses, é claro que após um tempo todos estão gostando dela. então, o que sucede? esta obra vira para nós uma coisa bela. nem sempre é bela. mas como vem sempre carregada de uma carga de nostalgia, ah!, essa música! acaba por ferir forte as cordas da nossa emoção.
o que quero dizer, então, é que existe uma valoração da obra de arte que considera, não a beleza em si, mas a emoção que ela provoca. pessoas vão a um concerto: o Messias, de Haendel. bocejos e tédio. não de todos, claro! então irrompe o Aleluia, oh!, os corações todos estremecem. Kamala não aprendeu a diferença entre o que é belo e o que comove.
coelum novum et nova terra…
não está cansado?
hoje não tenho esse direito.
você esteve espantoso, pai. a dança dos ditirambos… falou tudo que eu queria ouvir. mas eu acabo me tornando mais pessimista do que já sou.
e se amanhã de manhã você passear com o menino e encontrar a mais linda borboleta azul, vai esquecer o pessimismo e se encher de esperança. como vai o livro?
estou terminando. estou apavorado!
apavorado! é a sua cabeça!
deixa eu aproveitar e perguntar: por que você foi tão severo?, quando Kamala morreu.
isso de deixar que os mortos cuidem dos mortos, só no evangelho. pra um vivo já não é fácil!
te decet hymnus…
estas coisas de Deus e religiões não me incomodam tanto, pai. mas as coisas do homem e seu sofrimento, é tão difícil! mesmo porque não tenho certeza se entendo. há sofrimentos inevitáveis, mas tanta coisa podia ser mudada!
suba e me traga a História da Civilização Ocidental, de Burns. quero te mostrar uma coisa.
o que fiz. meu pai folheou o livro, me indicou e eu li:
A democracia econômica, conforme sua definição geral, traz a noção de que todos tenham oportunidades iguais para atingir sua capacidade potencial. Nada tem a ver com aquele conceito liberal de igualdade perante a lei, debochado por Anatole France quando dizia que rico e pobre têm o mesmo direito de dormir debaixo da ponte e mendigar o pão. Democracia econômica significa que crianças não devem trabalhar em fábricas, sendo exploradas por empregadores egoístas; velhos não devem ser atirados aos montes de lixo humano depois que máquinas desumanas esgotaram suas energias; finalmente, não são os operários quem deve arcar com todo o peso do risco industrial, do desemprego e da doença.
isto foi publicado em 1941. havia então uma guerra. mas este conceito só funciona para o primeiro mundo. talvez, nem lá.
este mesmo livro, pai, fala que a morte de Schubert, de fome e doença, foi uma nódoa sobre o século dezenove.
sim. mais um crime perpetrado pela humanidade.
e eles, os americanos, mesmo com este livro, não aprenderam?
aprende quem pode.
tuba mirum spargens sonum…
coloco a História da Civilização na mesa, sobre outro livro, e percebo que o outro livro é o volume com as aventuras de Nils Holgersson. minha lista de 10 livros só tem oito. quero que a partir de agora Nils Holgersson faça parte da lista. principalmente nos dias de hoje, em que os animais são tratados com tanta crueldade. fica ainda uma vaga…
pai, você disse que a quantidade de processos judiciais poderia ser um fator pra se determinar sobre o atraso ou o progresso de um país…
digamos, sobre a civilidade e a incivilidade de sua população, isto é, sua capacidade de convivência.
este critério não é considerado?
não sei. mas agora, na calma da noite e no meio de nossos chazinhos, eu penso em algo mais terrível. o livro que eles tanto louvam, diz: bem aventurados os que têm fome e sede de justiça. e, na terra, qual é o prazo pra que essa fome e essa sede de justiça sejam saciadas? quantos dias?, quantos meses?, quantos anos?, a justiça tem o direito de ficar rolando pra cá e pra lá nas pastas da magna caterva, aumentando o número de páginas, alimentando com honorários, mas não a aqueles que precisam e esperam ser saciados, quantos?, quantos anos? então dá pra dizer que o país mais triste seria aquele em que, em média, os processos demoram mais tempo. talvez, um programa chamado Fome e Sede de Justiça-Zero?
Judex ergo cum sedebit…
trago mais chá. pai, a religião já esteve mais ligada ao Poder. parece que hoje…
alguns países ainda são vinculados à religião. mas, de fato, o dinheiro hoje está concentrado nas mãos, não de um país, mas de grupos de poucas pessoas. quem são? onde se escondem? manipulam governos, manipulam jornais…
rex tremendae majestatis…
mas e os americanos?
quer saber minha opinião? os americanos funcionam hoje como uma guarda pretoriana. talvez eles mesmos não saibam a quem defendam, já que estão preocupados apenas com o soldo que lhes mantém o estilo de vida.
estou com um pouco de sono. mas então este presidente que passa por cima de resoluções da ONU…
não passa de um metido chefe da guarda pretoriana.
ne me perdas illa die…
e por que a droga?
veja. hoje tomamos licor. riso. quer dizer, você tomou um traguinho e eu engoli o resto. todas as culturas, ou quase todas, usa este tipo de escape num momento sagrado em que tentam entrar em contato com a divindade. mas durante o resto do ano há trabalho e prudência, como se fosse um controle a favor da sobriedade. a nossa civilização perdeu o controle. diga-se porém que os nobres de todos os tempos, quase sem exceção, nunca exerceram este controle sobre si mesmos. a nossa civilização quer escapar durante o ano todo. por quê? por que os jovens do mundo se drogam? por que os jovens de alguns países se drogam mais do que os de outros? qual é a mais importante característica de um usuário de droga? eu diria que é a adolescência prolongada. o usuário de droga, como o adolescente, precisa ser mantido pela família. não trabalha e vira um tipo de piolho. e o usuário de droga, como o adolescente, vive no mundo da fantasia, os últimos momentos da fantasia infantil. a pergunta fica sendo: por que o drogado resolve viver nesse estado de eterna adolescência? talvez ele apenas se recuse a aceitar o mundo à sua volta. um mundo que se diz adulto mas não passa de uma projeção de um tipo de inferno da civilização.
lacrymosa dies illa…
fecho os olhos e tento me concentrar na música. estou cansado mas uma inquietação nervosa aninhou-se no meu cérebro.
quer dormir?
não.
vou dizer só mais uma coisa. se esse país que acumulou armamentos capazes de destruir o planeta diversas vezes para agora se pavonear feito um garotão inseguro e neurótico, e por isso mesmo muito agressivo e perigoso, se esse país tivesse investido todo o seu dinheiro em educação, filósofos e psicólogos nas salas de aula, filósofos e psicólogos, ah!, esse país seria o esplendor! a Nova Jerusalém na terra! o esplendor!
quam olim Abrahae promisisti…
mas não passam de um Fomá Fomitch.
como?, pai.
eles, os americanos, são o Fomá Fomitch da nossa época.
dei uma gargalhada. estivemos calados um tempo.
et lux perpetua luceat eis…
os cães estão tão quietos, pai. fizeram festa quando cheguei com o menino e agora dormem. parece que não aconteceu nada.
silêncio. meu pai fechou os olhos e recostou a cabeça no colo de Joan Baez. levantei-me e troquei a fita. ouvi os primeiros fogos de artifício. fui lá fora. esperei um tempo, passeando sobre a grama. de vez em quando, olhava o portão, onde há pouco tinham estado os cães negros. entrei. meu pai cochilava. sentei-me à mesa e fiquei ouvindo a música.
a música é uma bolha confortável e dentro dela flutuamos e é como se houvesse na alma a doce embriaguez e o perfume do licor de banana. fecho os olhos para melhor me perder nesse rio de sons perfumados…
o súbito silêncio me resgata da sonolência. meu pai continua dormindo, seu respirar é lentíssimo e uma paz como que paira em seu semblante. levanto-me e coloco a fita do Réquiem de Dvorjak.
e, novamente, me deixo levar nessa jangada de sons, acordes, vozes, textos…
mors stubebit et natura…
quando uma pessoa enfrenta uma situação desagradável, se não vê saída, ela fantasia. recurso primeiro para… é comum alguém desejar a morte de outrem. aplacar a dor ou resolver um problema com um fato apenas imaginado. eis aqui a célula-mater de tudo quanto derivará depois.
liber scriptus proferetur…
e quando duas crianças falam, vamos brincar de mocinho e bandido, estamos novamente diante de uma fantasia. mas, consciente! eu sei que não sou o bandido, faço de conta. brinco, jogo, homo ludens… quando o adulto concretiza um livro ou um filme ou uma música ou um quadro, também brinca, joga, o homem que faz arte… o elán é o mesmo do ludens… a arte seria a única forma da fantasia consciente…
et de profundo lacu…
e a filosofia? a filosofia…
abri os olhos. por que estou tão assustado? olhei para meu pai e percebi que ele estava me fitando. parecia muito calmo. levantei-me, fui até o fogão, coloquei algumas lenhas finas, fiz reviver o fogo.
trouxe um chá novo, pai… o meu amigo filósofo disse que talvez o problema da ecologia ajude a humanidade a sair desse tipo de impasse.
eu já fico esperando um cataclismo. um grandioso desastre telúrico. ou, quem sabe?, um microbiozinho mais obstinado. os transgênicos estão aí. defendem os transgênicos mas ninguém fala nas possibilidades de uma mutação.
que horror!
leia o livro A Raça Menina, de William Auld. somos crianças, engatinhamos.
somos Kamalas?
Kamalas, filhos e netos de Kamalas. não aprendemos o mínimo e procriamos.
pecata mundi…
recolhi as xícaras e levei-as à mesa.
meu pai novamente fecha os olhos. parece que delira baixinho:
o socialismo… o mito do super-homem de Nietzsche, não para o ariano infantilizado, mas para toda a humanidade… uma escola igual para todos os filhos do homem, despertando em cada criança o semideus que aí jaz à espera. todos se transcendem e se transformam em super-homens… e quando um estiver frente ao outro, haverá lampejos mas não de espadas… lampejos de respeito e admiração em seus mansos olhares de cordeiro… e, se não falarem a mesma língua, falarão, naturalmente, a única língua que pertence a todos…
recoloco a cabeça de meu filho sobre o travesseiro em meu colo, encosto-me e fecho os olhos. queria que essa música nunca acabasse. queria que essa noite nunca acabasse.
quantus tremor est futurus.
meu pai continua delirando… e canta às vezes…
na minha opinião, já passou da hora da ONU dar uma bronca nas grandes gravadoras de discos. eles pegam o vômito, o escarro, a pústula e a excreção, vestem-nos de ouro e seda, alojam-nos em andares inteiros de luxuosíssimos hotéis, transformando-os em semideuses intocáveis, diante de cujo peido pasmam as franguinhas todas e suspiram todos os cordeiros, prontos para ser sacrificados nas primícias da droga, espalham sobre o planeta a diarréia dos sons do horror e as melodias do cretinismo e criam para o filho do homem o ideal de se transformar num imbecil que aplaude a pestilência e sonha ser, ele mesmo, um dia, uma dessas imagens de pesadelo. quem vai chamar as gravadoras à responsabilidade pela incitação ao uso da droga, pela apologia da manhã do apocalipse?
ah, look at all the lonely people…
não perceberam os donos das gravadoras que os vapores do miasma destruidor sufocarão também seus próprios filhos?
no one was saved…
e pensar que houve um dia um grupo que mostrou, através de canções belíssimas, a possibilidade de um caminho a ser trilhado. qual! também os besourinhos se perderam nel mezzo del cammin…
don’t carry the world upon your shoulders…
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