Alma desdobrada, cap. 53, 54, 55, 56, 57 e 58.

Alma desdobrada, capítulos 53, 54, 55, 56, 57 e 58.

 

053.

          quando eu tinha medo, rezava: ave-maria e pai-nosso.

         depois, por influência do protestantismo a que me fizeram aderir (eu, ligeiramente teimoso, recusei a profissão de fé até o dia em que não mais ousaram sugeri-la), eu, depois, me contentava com o pai-nosso. qualquer situação de ameaça de pânico, o pai-nosso brotava livre e solto dentro de mim.

         eu tinha pesadelos, demônios e monstros que me perseguiam a maciez do sono: acordava e desabava dentro do silêncio da alma aflita aquela fileira de pais-nossos até que o sono…

         deu-se que mudei de opinião e deus deixou de me machucar. parei de rezar, na intenção de passar a contar comigo mesmo. mas, curioso!, percebi que, quando tinha pesadelos, acordava já no meio da reza, eu principiava a rezar dentro ainda do sonho.

         se não acredito de verdade, porque rezo? me perguntei.

         nunca mais acordei rezando, após este questionamento. acordava do pesadelo, abria os olhos e olhava o escuro. não orava. às vezes, não tinha coragem para abrir os olhos.

         quantas crianças habitam cada homem? quantas?

         eu não orava.

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Alma desdobrada, cap. 46, 47, 48, 49, 50, 51 e 52.

Alma desdobrada, capítulos 46, 47, 48, 49, 50, 51 e 52.

 

046.

          de onde saíram estes adolescentes belos e sedutores a quem amo perdidamente. são eles eu? são eles meu pai? são eles meu filho? adianta saber? ou me bastaria, sempre, entregar-me perdidamente, desesperadamente, alucinadamente, desvairadamente à minha paixão? isto o que sinto, é que é o amor? o que é o amor?

 

 047.

          percorro com tanta dor e tanta ousadia as terras deste livro, para me sentir forte e adulto, mais tarde, no estrangeiro do sem-ele.

 

 048.

          ocorre também, às vezes, que não sei se o que escrevo é pérola ou cocô.

  

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alma desdobrada, cap. 41, 42, 43, 44 e 45

Alma desdobrada, capítulos 41, 42, 43, 44 e 45.

 

 041.

          é estranho tudo isto que escrevo. o personagem do meu livro desistória afirmou: contar uma história é escolher, dentre as lembranças mais quentes, as que mais queimam. seria isto que escrevo a minha história?

  

042.

          lembro mais de meu pai agora. descobri tanto dele na terapia! foi todo esse proceder como tirar panos velhos, fétidos e ameaçadores de sobre uma múmia que eu julgava indiferente, antes, perigosíssima, depois. aos poucos, entretanto, foi-se modificando a figura que seria a múmia. transformou-se devagar num cadáver sagrado de um amigo. meu pai me amou. sei hoje, sinto agora, que foi ele quem me amou mais que todos.

  

043.

          no silêncio da tarde, eu leio. não estou só em casa. estou só em casa. no quarto, estendida sobre a cama, o corpo magro e ossudo e branco da neuza que dorme. se vou beber água ou ao banheiro, passo e olho. ela está viva. controlo os horários de seus tantos remédios e vigio seu sono. é difícil que ela durma muito tempo. geralmente, fica tão apenas estendida no leito, os cabelos muito negros a empalidecê-la mais ainda e os enormes dedos a trazer a lembrança daquilo que está por acontecer. ela fica entre a casa e o hospital. a cada vinda, seu organismo está mais debilitado.

         neuza convive com a morte. ela sabe que esta sua morte não pode ser enganada com facilidade. já abriu as portas de seu corpo, já se instalou furtiva e silenciosa.

         resta a espera do momento fatal.

         neuza espera com alguma esperança escapulindo do seu olhar. a distância entre o anúncio do fim e o fim, é feita com todos os segundos de que é feita. mas estes segundos não são, para mim, os mesmos segundos que são para ela.

         para ela, outro é o tempo.

         seu tempo como que está parado no que já se acabou.

  

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