garças e abutres… 15

jorge de souza felix

15. Jorge de Souza Félix

    É muito estranho lembrar.
Surgiram, no começo dessa minha tentativa de penetrar nos labirintos de minha memória, as imagens de garças e de abutres. Garças seriam pálidas lembranças de fatos agradáveis; abutres, qualquer cena mais assustadora. Nalguns momentos parece que eles se misturam.
Lembrar também pode ser como a imagem de uma paisagem cheia de ruínas. Aqui, um muro totalmente isolado, mas há nele afrescos muito coloridos de uma cena inteira, nítida e cheia de significado. Além, uma estátua decapitada, seria esta criatura uma boa divindade ou uma fúria terrível? Uma coluna solitária me fala de algum aprendizado. Uma coluna despedaçada no chão sugere algum motivo de vergonha.
Sei bem que houve um momento de minha vida em que todos estes detalhes arquitetônicos faziam parte de um todo coerente. Eram o meu tempo presente. Ali dentro, eu respirava meus medos e minhas esperanças. Ali dentro, meu coração ia aprendendo aos pouquinhos, muito aos pouquinhos, sobre o grande espanto que significa viver.
Anos e anos mais tarde, a gente só consegue lembrar que alguma coisa existiu, muito mais à semelhança de uma grande mentira. E, ao tentar refazer o passeio ao passado, descobrimos que aquela cidade está morta.
Meus passos se dirigem a um pequeno templo. Sei que vou encontrar algo terrível. Vejo murais destruídos, mostrando garras. Há cacos espalhados de uma escultura, mostrando olhos cheios de dor. Está quebrada a bacia onde deveria haver uma água abençoada; não posso ver, pois, o reflexo de meu rosto melancólico. É um templo pagão. Prefiro que seja um templo pagão.

Algum tempo depois que cheguei, apresentou-se nova turma. Foram colocados diante de todos nós e seus nomes foram lidos, para conhecimento geral. Num momento, eu estremeci. Meu nome fora gritado, meu nome tinha sido gritado na confusão. Era esquisito tudo aquilo, acerquei-me depois do Geraldo, cheio de espanto, e comuniquei meu medo. Ele falou com o Antonio. Não era Teles. Era Félis. Jorge de Souza Félis. Deveria ser Félix, teriam lido errado.
Curiosamente, ele também chegara acompanhado de um irmão mais velho. Geraldo procurou os dois. Não me lembro do outro nome. Ambos pardos, quase mulatos. Meu xará aproximou-se. Tinha os olhos fundos, a pele seca, manchada de branco, as orelhas enormes. Parecia a caveirinha de um macaco. Esquelético, subnutrido. Uma das mãos, viradas para trás, a paralisia o deformara. Também um pé virado para trás, o aleijadinho se torcia todo para andar, desequilibrado e bambo.
Que lástima! Que sofrimentos ele não deve ter padecido! Eu não consigo conciliar o ato da criação com aquele resultado. Qualquer deus haveria de se envergonhar com tanta crueldade. Pensar num acaso indiferente, numa natureza desapaixonada, num destino imprevisível… continuo achando uma crueldade.
O menino aos poucos foi se aproximando de meu grupo. Foi aceito, misturou-se, mas já os meus amigos se afastaram discretamente. Mas eu quase tenho certeza de que ninguém zombou dele.
Não sei por que motivo, nalgum dia, percebi que brincávamos juntos. Isolado de todos, segregado, não sei se exilado por pressão dos outros, por medo ou por decisão própria, o aleijadinho se agarrou à única tábua de salvação que encontrara: alguém com o nome quase igual ao dele. Era como se eu estivesse condenado a aceitá-lo, pelo fato de me chamar como me chamava.
Desconheço nossas primitivas brincadeiras. O que se marcou profundamente em mim, foi o susto ao perceber que as nossas relações não estavam iguais às dos outros. Eu mandava, ele obedecia. Ele perguntava o que fazer, humilde. Eu ordenava, zangado. Ele me olhava com os olhos cheios de horror e tenho a impressão de que eu batia nele. Não tenho certeza. Era um pequeno escravo, submisso, morbidamente dócil, desesperadamente obediente. Me afligia muito o fato dele não reagir, dele aceitar minhas injúrias, dele continuar farejando a minha companhia. Redobrei as maldades, rasgava suas figurinhas, destruía seus brinquedos.
Ele voltava como um cãozinho desagradável, olhando-me com aqueles olhos que só vi de novo nos documentos dos campos de concentração nazistas. Com certeza, eu exagero. Meu arrependimento cheio de terror deve estar, agora, acrescentando pinceladas expressionistas a esse farrapo de memória.
Não sei o que mais me afligia: se o fato dele ser aleijado, não me deixando a oportunidade de abandoná-lo; se o crescente remorso que minhas atitudes passaram a criar em mim.
Voltava a ele disposto a acabar com tudo, batia nele, ele ficava um pouco longe, de cabeça baixa e eu mesmo resolvia conversar com ele, cheio de pena. Não admitia, porém, nenhum deslize, ralhava, xingava, me sentia o dono dele.
Não me lembro de como tudo terminou. Acho que os outros voltaram e ele se foi de mansinho, não me lembro. Não o vejo mais brincando comigo, depois daquela fase escura. Talvez tenha se juntado a um grupo mais infeliz, o dos mijões, quem sabe?, sendo recebido como um igual. Que, ali, a felicidade tinha chegado ao limite mínimo. Naquele zero, não faria diferença um aleijão a mais ou a menos.
A última lembrança dessa infeliz criatura surge em mim como se eu estivesse a ver um pássaro ensangüentado sobre um mosaico cheio de fuligem.
Na véspera de minha partida, um dia, até então, como outro qualquer, fomos todos reunidos para a leitura dos nomes daqueles que seriam “desligados” do colégio. Geraldo foi chamado. Ao soar o seguinte, não entendi direito, tinha certeza de que leram Félix. Começaram a me empurrar para fora da fila, não sou eu, é ele, ele saiu desajeitado, puxaram-no, empurraram-no, voltei ao meu lugar, Geraldo me tirou da forma e ele parou sozinho, bambo, me olhando com seus olhos enormes no fundo dos buracos.
Não me lembro do resto.
Não… não me lembro do resto…
Acho que o sentimento intenso e complexo que se seguiu, apagou em mim aquele menino, dentro daquela cena. Muito tempo depois, lembrando do fato, é que sofri por ele.
Pobre menino, pobre aleijadinho, que, infelizmente, naquele momento, pelo menos, pobre daquele que não era eu.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 14

sereias, caminhões...

14. Sereias, caminhões, a felicidade da criança abrange mais de um capítulo

    É reconfortante perceber que minhas perdidas alegrias ultrapassam um capítulo. Pois, o que vier após as lembranças dessas manhãs de brincadeiras, mais parece uma noite de pesadelos.
Há lembranças daquele tempo que são tão iluminadas, tão quentes, tão mágicas, que penso, sem exagero, serem suficientes para toda uma vida. Talvez não representassem nada para qualquer outra criança. Para nós, ali, despidos de tudo que fosse considerado supérfluo, para nós, pequeninos Diógenes na marra, sem cuia para beber água e com um colchão esfarelado como tonel, para nós, bastava um pedaço de barro. Um pedacinho de pau. Um chão. Medalhas seriam surrupiadas e colocadas em fila em algum alfinete. Bolas de gude acabariam nas sacolinhas inchadas dos mirolhas. Papel para pipa e bola eram mistérios a que não tínhamos acesso, pertenciam, por uma desconhecida ordem natural das coisas, aos mais velhos. Não me lembro de ter jamais cogitado se eu teria ou não direito àquelas maravilhas. Havia de ser daquele jeito e isso era tudo.
Nós, menores, nos perdíamos esquecidos dentro de nós mesmos, desenhando no chão. Aos poucos iam sendo montados painéis primitivos, como é fácil, então, compreender a arte pré-histórica. Nada de sagrado, nada de tabu, nada de magia. Desenhávamos, porque, nalgum acaso, descobrimos que era possível desenhar. A única palavra que admito poder ser aplicada àquela situação é Identificação. De um modo ou de outro, cada uma daquelas manifestações indicava um objeto com o qual nos relacionávamos, emocional ou intelectualmente, consciente ou inconscientemente. Alguém conseguiria descobrir para que serviria aquilo?
Fala-se muito em função pragmática da arte, função naturalista, função social… Penso nos habitantes de Altamira, esfregando pozinhos coloridos nas paredes da gruta. E, agora, observando, do lado de cá do muro, aquele bando silencioso e distraído de crianças a desenhar no chão, me parece estar diante do nascimento de algo gratuito e lúdico, com intenções indefinidas e desconhecidas delas mesmas, escapando à finalidade consciente.
Desenhávamos sereias e carros. Mais sereias que carros. Primeiro, a areia era alisada, tiradas as pedrinhas, afastados os lixos. Depois, o dedo corria rápido e já se montava uma multidão de sereias. Sem cenário, sem proporção entre as figuras. Cada um daqueles desenhos era suficiente a si mesmo, não se ligava a outro e, se nalgum momento, a cauda de uma sereia esbarrasse no rosto de uma outra já terminada, passava-se por cima, havendo superposição das imagens. O que interessava era o desenho enquanto ia sendo desenhado. Terminada a figura, a ânsia de uma nova criação abandonava o filhote recém-nascido e principiava outra criatura.
O forte, porém, era a nossa cerâmica. Fazíamos figurinhas de barro. Bois, cavalos, lembro de um cachorro, lembro que algum dos amigos fez um cachorro sentado sobre as patas traseiras. Os cangurus tinham na bolsa as minúsculas carinhas dos canguruzinhos. Os elefantes tinham as trombas, ora caídas, ora levantadas sobre as cabeças. Muitos patos, sempre com as asas abertas. Patos, marrecos, gansos, cisnes, era uma ave que representava a todos.
As estatuetas eram moldadas e o barro rachava rápido. Molhava-se o dedo com cuspe, para alisar, e logo os dedos e os lábios se apresentavam marrons, pela sujeira do barro. Depois, as figuras iam para o sol, endurecer. Não me lembro de brincar com aquilo. Lembro de fazer as figuras, depois, esquecê-las.
Os nossos carrinhos, porém, transformavam todo o resto numa coisa distante e inútil. Ficávamos horas e horas moldando com capricho os nossos automóveis, ônibus e caminhões.
Com o tempo, fomos ficando mais sofisticados. Não me lembro de alguma idéia original que tenha partido de mim. Sempre imitei os outros, minha timidez tolhia completamente o impulso pessoal. A primeira marca de originalidade, foram as rodas com eixo de madeira. Fazíamos o carrinho, as rodas, e ligávamos as mesmas ao carro, através de um palito que se fixava ao chassis por meio de um pedacinho de barro. Depois de seco, era possível movimentar o veículo. Acho que Valdemar fez um ônibus oco, colocando vidros nas janelas. Seguiu-se uma série de ônibus ocos, com vidros multicores. O genial foi quando Hermes fez a frente do carro oca, colocando palitinhos enfileirados, imitando as grades de um radiador. Era um trabalho demorado e carente de precisão. Mas o resultado era capaz de encher de encantamento toda a semana.
Não restam se não dois detalhes dessas horas alegres. As pedras de fogo e o córrego.
De vez em quando toda a meninada guardava pedrinhas de fogo pra esfregar uma na outra, durante a noite. A faísca, rápida e fraca, tinha o valor de uma moeda de ouro. O barulho é que era chato. E como a mania pegava, antes de dormir era aquele martelar sem fim, aqui e ali, pirilampos sonoros, estalidos luminosos, pequenas luzes efêmeras e barulhentas. Cada um se comprazia na própria obra, aguardando com ansiedade o acaso feliz em que o esfregar produzisse uma faísca mais forte. Um berro, não sei de quem, silenciava aqueles sapos de pedra. No dia seguinte, eles tornariam ao concerto de luzes, até que o berro novamente silenciasse as pedrinhas. Dormia-se no meio de um cheiro que eu cismei em classificar como sendo o cheiro de enxofre do diabo.
E o córrego? Fosse domingo, houvesse sol, estivesse o Antonio de boa vontade, íamos ao córrego. Como ter raiva daquele homem?, que nos colocava em fila, sentido!, marcar passos!, descansar!, levando a seguir o cortejo em direção ao riacho. Assim que saíamos, eu me sentia totalmente perdido. Era um mundo imenso, casinhas avulsas, capões, montanhas lá longe. O chão seco ganhava vida, chutávamos a terra, levantávamos poeira e os mais velhos, lá atrás, ralhavam.
Numa curva do caminho havia um painel gigantesco, o maravilhoso desenho de um homem tomando uma xícara de café. Vote em Brigadeiro, todos liam alto. Que homem?, que portento?, que rei seria aquele?, que conseguira fazer um retrato tão grande e colocá-lo na beira do caminho.
O córrego era pequeno, raso e estreito. Terminava numa espécie de bacia, funda e larga. Na parte rasa brincávamos os pequenos. Na funda, o inspetor e os maiores. Nós, pelados. Eles, de calção.
A alegria era contagiante. Gritos e risos, mergulhos, pulos. Certa vez, levamos uma bola de pano e ela, para espanto nosso, não afundou. Jogamos durante muito tempo até que ela subitamente desapareceu. Em vão, procuramos aflitos. Anos e anos depois do episódio foi que me ocorreu que, com certeza, a água foi penetrando aos poucos, até que ela ficasse mais pesada e foi ao fundo, sendo levada a seguir.
Há uma lembrança ligada ao córrego que muito me marcou. De igual intensidade, só consigo lembrar de outros dois fatos: a noite na casa de Dona Leca e aquele estranhíssimo episódio a que chamarei O Acontecimento. O detalhe do córrego parece mais forte que todos, uma misteriosa garça, muito nítida, mas confusa. É possível que tenha acontecido mais de uma vez. Mas no meio de tanta neblina, minha memória só retém uma cena.
Antonio me chamou e me perguntou se eu queria mergulhar com ele. Nunca tive medo de água. Ele se agachou e pediu para eu montar nas suas costas. Tinha que segurar no seu peito, se fosse no pescoço ele não ia conseguir respirar. Me segurei firme, envolvendo-o como se fosse um filhotinho de coala. Ele era enorme, parecia uma estátua. Mandou que eu respirasse fundo. Pronto? Um estalo e eu me senti envolvido por todo um universo frio. Ruídos estranhos, seria este o canto da Iara? Eu ia soltando o ar aos poucos, era confuso e extraordinário ali. Apertei os braços, ele me dava a segurança máxima e eu sabia que não podia me soltar. Finalmente os sons desapareceram, aqueles zumbidos e melodias do outro mundo. Ele nadou comigo até a outra margem. Eu era um carrapatinho maravilhado e, mais que a sensação de atravessar a parte funda do córrego, me enchia de prazer estar ali, abraçado a ele, com meu corpo todo colado às suas costas, o sexo apertadinho, sentindo por inteiro suas carnes rijas e molhadas.
Nem é preciso que o Sr. Freud explique.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 13

ladybugs...

13. Joaninhas, brincadeiras, diversões, raios de luz nunca apagados

    Dalton Trevisan, no conto O Espião, escreve que aquelas meninas nunca sorriam. Mentira! Acho que é mentira! A alma da criança não é uma corda eternamente esticada. Há de haver, aqui e ali, longe da palmatória e logo depois da comida, momentos fugazes em que a canção suba, o sorriso brote, o brinquedo distraia.
Porque, se me lembro daqueles dias perdidos, vejo que são as garças pálidas das lembranças suaves que flutuam no azul vazio. Não as garras, não os bicos envenenados de padres e palmatórias e mijões. São os brinquedos que mais demoradamente algemam minha alma a minhas recordações. E nós sorríamos. Naquelas planícies, entre o abismo de um terror e outro, nós sorríamos. Tínhamos muitos e longos momentos de paz. E estes momentos, nessa hora de agora, se agitam dentro de mim, como areias vivas de um bosque encantado. As areias levantam-se, adquirem vida. Entre um agora e um depois, nós éramos felizes. Não há por que mentir. Eu era feliz.
Eis que eles se chegam de mansinho, meus fantasminhas brancos e definhados, pedindo para que recomeçamos os nossos folguedos. Eu mesmo, eu não tenho condições de brincar. Eles, fantasminhas, vivem dentro de mim. Mas o fantasminha que devia ser eu, aquele menino dissolvido na neblina de um tempo quase de todo esquecido, com o olhar sempre triste e o rosto sempre voltado para o chão, sinto que aquele menininho morreu para sempre. Seu pecado foi estar inteiramente acorrentado a mim, ele foi dando lugar a um homem que o destruiu. Hoje, o muito que ele consegue fazer, é me ditar, de tão longe, as coisas que ele viveu lá, como as viveu.
Os outros pararam de crescer dentro de mim. São eternamente pequenos, eternamente meninos. Se hoje eu os encontrasse, não seriam mais os meus amigos. Seriam, também, adultos que mataram meus amiguinhos. Estaríamos, os de hoje e os de ontem, separados por um muro: de um lado, aquilo que eles são agora; e do outro, os pequeninos habitantes que conheci no internato.
Este muro tem frestas. Sim, o muro tem frestas e nós, os de hoje, podemos observá-los, enquanto brincam do lado de lá. Eles não se dão conta de que nós, adultos de hoje, os estamos vigiando. Não viviam para o nosso hoje, viviam o momento deles.

Uma brincadeira que era sempre repetida a intervalos curtos era a das grutas para as joaninhas. Nalguma parte do pátio, o chão era barrento. Não sei que milagre fazia aparecer no pátio pedaços de vidro colorido. Nós os guardávamos com um cuidado tremendo. Eram valiosíssimos haveres. Quando conseguíamos um caquinho, lavávamos até a total transparência e corríamos à cata de joaninhas. Elas eram de um vermelho marronzado, redondas e pintadas de preto. Havia também algumas compridinhas, verdes e vermelhas, mas estas eram muito ariscas, fugiam fácil. Apanhada a presa, fechávamos a coitadinha numa caixa de fósforo, outro milagre. Então, se começava a confecção da gruta, um buraquinho no barro. Depois de bem alisada, colocávamos lá dentro a joaninha e cobríamos com o vidro. No fechar, o vidro se turvava mas, com cuspe, nós o deixávamos novamente brilhante.
O inseto andava de cá para lá e nós o vigiávamos naquela quase escuridão.
O curioso é que nunca encontrei a joaninha no dia seguinte. Ora a gruta aparecia sem o vidro, ora desaparecia por completo, ora estava igualzinha, mas vazia.
Também pegávamos grilos. Pretinhos, miúdos. Alguém falou certa vez que, se enterrássemos a cabeça de um grilo, daí a alguns dias ela viraria uma caveirinha. Decapitávamos o coitado, arrancando rudemente sua cabeça, com os dedos. O corpo era jogado fora e a cabecinha enterrada. Nunca, também, consegui chegar ao fim da experiência. Perdíamos a cova, esquecíamos de procurá-la, sei lá.
Às vezes, jogávamos bola. As bolas eram resultado de uma paciente manifestação de artesanato primitivo. Primeiro, arranjavam trapos de pano. Os fios vinham dos macacões. As agulhas, das tardes vazias. Depois de feito um bolinho de trapos imprestáveis, começava-se a costurar pedaços pequenos de pano mais resistente ao redor. Era uma sucessiva costura de pedacinhos de pano e a bola ia engordando. Aqui e ali, um reforço para respeitar a esfera afundada. Com pouco, ela estava inteirinha, redonda e pesada. É claro que esta tarefa sempre cabia a algum dos grandes.
Alguns deles tinham bola de tênis e uma garça, mais pálida que todas, me fala de bolas maiores, de borracha. Com efeito, eu consigo vê-los lá longe, jogando com uma bola que parece bem maior do que a nossa.
Certa feita, numa pelada, instalou-se uma tal confusão diante do gol, juntou-se tanta gente em torno da bola, que esta permaneceu quase que parada, no pequeno espaço entre dezenas de pés que se chutavam. A bola ameaçava ir para um lado, já um pé a devolvia, outro mudava a sua direção, começamos todos a rir alto, chutando a esmo, a coitada da bola numa total indecisão, pisada, chutada, até que os corpos começaram a se desequilibrar e formou-se uma pirâmide de suor e corpos aflitos a gargalhar e ninguém mais conseguia respirar…
Os deuses de Homero eram peritos em gargalhadas homéricas. Mas nunca riram aquele nosso riso.
Também, que vantagem? Bastava um qualquer pedir para entrar no meio da partida e o regulamento perdia a sua sacralidade e vinha mais um e mais outro e quantos quisessem. Havia muitas confusões daquelas, aquela foi a mais espantosa.
Também íamos ao campo de futebol da cidade. Havia torneios entre os habitantes da região. Será que alguns dos nossos participavam? O que sei eu! Eles jogavam, os alunos maiores assistiam e nós, os fantasminhas, estamos correndo atrás dos gafanhotos e dos grilos. As caixinhas voltariam abarrotadas e ao abrirmos, na volta, deparávamos com um punhado de bichinhos mortos. Mas não queríamos que eles morressem!
Num desses passeios, houve um fato que muito me marcou. Sinuca narrava o jogo, proeza que exigia alta eficiência. Ele não parava de gritar, entusiasmado, exibindo-se feliz. Todos paramos, para ouvi-lo. Então, pediu a um dos grandes para continuar. O jovem começou, as palavras não apareciam, ele gaguejava, tropeçava, Sinuca repreendeu-o, era preciso vibrar, esquentar-se, estava sem vida. E deu, a seguir, uma demonstração de narração, alta, rápida, contagiante.
Nunca me esqueci de como fiquei triste naquele momento. Tive a nítida impressão de que, para se fazer alguma coisa, era absolutamente necessário ser livre.
Os grandes tinham outro tipo de brinquedos. Jogavam com um estoque, com bolas de gude e soltavam pipas.
Para jogar com estoque, era necessário ter um, o que era uma raridade, talvez por se constituir numa arma perigosa. Alisava-se bem o chão de barro (este brinquedo acontecia sempre depois de chuva), fazia-se um desenho para cada jogador. Eram as “casas” de cada um. O primeiro atirava o estoque, que devia enfiar-se no chão e ficar de pé. Da casa até o ponto feito pela queda do estoque, traçava-se uma reta. E ele continuava. O objetivo era envolver e fechar a casa do inimigo. Errando a queda, o outro começava. Duas espirais iam sendo feitas, em torno das duas casas. Ganhava o que, tendo envolvido o inimigo, acertava na própria linha, fechando o seu território.
As bolas de gude acabavam por pertencer todas a um restrito número de craques. Estes, só queriam jogar para valer. Sempre me maravilhou a pontaria daqueles semi-deuses. Eram os “mirolhas”. Eu, além de não saber pegar na bola, nunca acertava. Eu era “dedeiro”. Não me lembro de todas as regras. Um dos jogos tinha um arco com as bolas a serem acertadas. Um outro, tinha três buracos, era preciso entrar em cada um, depois de acertar alguém. Búlica. Um último tinha apenas um pequeno buraco no chão, não lembro absolutamente de regras. O nome desse último era “cuzinho”.
As pipas eram um privilégio de poucos. Santos eternos! De onde vinham aquelas linhas, aqueles papéis, aquelas varetas, aquelas giletes, aquela cola? O privilegiado ficava horas trabalhando com as varetas de bambu. Depois, fazia a armação. Uns, mais sofisticados, se davam ao luxo de usar duas cores. Montada a pipa, que eu teimava em chamar de papagaio, esticavam fios de linha ao longo do pátio e começavam a moer vidro. O vidro moído era misturado à cola e passavam tudo ao longo do fio. O objetivo era, num cruzamento entre pipas, cortar a linha do inimigo, para que a pipa desaparecesse do céu. A cauda era feita com tiras de trapos. Uma gilete era amarrada na cauda da pipa e isto a tornava, ao mesmo tempo, muito perigosa e muito vulnerável. Ela, mais facilmente cortaria a linha do inimigo. Por outro lado, exigia uma perícia maior, porque poderia cortar a própria linha.
O levantamento da pipa era um ritual. Se houvesse pipa no alto e, principalmente, se ela fosse de algum menino “de fora”, era uma verdadeira festa. O nosso herói soltava a linha aos poucos, tinha incrível destreza para enrolar o fio num pedaço de pau, dava braçadas, dava de bico, dava mais linha…
Pairava, contra o azul muito azul, um pedacinho de papel colorido. Flutuava majestoso como um anjo atento sobre a população de Sodoma. Vigiava. Era bonito demais.
Nenhum padre seria suficiente para diminuir aquela alegria.

continua no próximo domingo.

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