garças e abutres… 04

bucket and zé da silva

4. Ainda os habitantes

    Eu estava sentado no chão, no meio de pequeno grupo, devia ser meu primeiro ou segundo dia, alguém chamou:
Bojão!
Bojão chegou e começou a me olhar. O apelido era muito esquisito. Comecei a rir.
Bojão? perguntei.
É.
Bojão de merda? ainda sorrindo. Não sei que associação me levara a isto.
Bojão de merda é um soco no meio dos teus cornos.
Ele ficou zangado e eu me encolhi inteirinho, envergonhado e medroso. Era uma situação nova, não desejava enfrentá-la. Qualquer reação mais agressiva me enchia de pavor, detestaria ter que brigar. Por isso a vergonha e o medo. Também me senti arrependido, quando percebi que o tinha ofendido.
Nada aconteceu, todavia. Ele resmungou um pouco, olhando-me com raiva e mágoa, e a memória tropeça aqui. A partir de então, sempre fomos amigos, sempre participamos de tudo, qualquer lembrança apagada me mostra um pedaço dessa criatura.
Bojão. Viveria hoje o homem que, em dias perdidos de minha infância, suportou a carga desse apelido? Que doação magra, a do destino, que não lhe reservou sequer um nome! Não era Francisco nem Paulo nem José. Podia ao menos ser Chico, Zé, Mané! Não. Bojão. Bojão e nada mais. Há de ser Bojão até o fim de minhas lembranças.
Bojão era mulato, amulatado. A característica mais marcante de seu rosto era que seus maxilares se adiantavam muito, como se a dentadura tivesse que chegar primeiro. Não me lembro de nenhum traço de seu caráter. O único que me ocorre é a fidelidade da companhia. No córrego, nos campos, com o barro ou com a bola, Bojão está presente. Nem amargo nem suave, não ri nem chora, não é leve como Valdemar nem melancólico como Hermes. É o companheiro.
O último desses amiguinhos de desmanchada memória se chamou Zé da Silva. Nova ironia. O anterior não tinha nome, esse tem nome e sobrenome e, no entanto, nome e sobrenome que não pertencem a ninguém, por ser, no Brasil, o nome mais comum de todos. Tinha dentes demasiado brancos?, ou pareciam demasiado brancos pelo contraste violento com sua absoluta negrura! Ria todo o tempo?, ou era que a absoluta brancura de seus dentes legitimava ainda mais o seu riso! Não sei. Para mim, há de ter sempre os mais belos dentes do mundo, esse negrinho sorridente. Dono de uma energia fogosa, pula mais que todos, brinca mais que todos, mexe-se mais que todos, uma formiguinha elétrica. Não consigo imaginar tristeza nessa criaturinha, nem nesse agora relembrado nem em seu futuro apenas imaginado. Valdemar haveria de exibir, mais tarde, alguma fugidia dor nos olhos claros, Hermes choraria, Bojão parecia frágil, tremeria facilmente. Mas não Zé da Silva. O pretinho haveria de ter sempre aquele sorriso branco e enorme, eco gratuito da resposta que a argila africana deu à divindade negra, no dia da criação. É fácil imaginá-lo passista feliz em alguma escola-de-samba, no carnaval carioca. É possível pensá-lo amando a negra mais bela, mistura efêmera de duas noites eternas.
Precisaria fazer força para concebê-lo caído, de qualquer jeito, no meio da lama, ensangüentado, varado pelas balas da justiça. Aquele sorriso não iluminava esse caminho. Sei, porém, que é uma vereda possível.
Indiquei dois outros nomes, Gata Russa e Marquinhos.  Fato curioso, a presença dessas figuras dentro de mim. Ambos permaneceram graças a dois incidentes que ocorreram durante minha estada lá. Não existem nem no antes nem no depois, apenas nesses dois momentos rápidos e marcantes.
Gata Russa era um branquinho louro; branco como leite, louro como fios de uma espiga de milho. Falava fino e a cada frase despertava risos, porque era natural daquela região e o sotaque matuto fazia rir aos cariocas. Parece que tinha um irmão mais velho, tão branco como ele, ou mais ainda. Dois pedaços de papel branco, soltos no meio de pardos, cobres, bronzes, roxos, rosas e negros. Eram esquivos e amedrontados, me davam a impressão de animais em perigo.
Um dia briguei com Gata Russa. Não sei por quê. A mais remota lembrança começa com nossos corpos engalfinhados. Não sei se durou, não sei se foi rápido. Sei que ele me unhou o rosto inteirinho e as arranhadas me arderam durante muitos dias. Teria advindo daí o seu apelido? Ou ele já brigara antes com as unhas? Também não me lembro. Hei de repetir muito isto, não me lembro, não sei, não me recordo, o sol de minhas manhãs ainda não iluminava todos os confins de minha experiência e só aqueles momentos mais fortes deixaram marcas; mesmo estas, imprecisas e voláteis. Não vem ao caso.
A impressão que a briga me deixou foi mais forte que a própria briga. Para variar. Lembro da dor moral que sentia por tê-lo machucado. Não brigava nunca, foi a única vez naqueles vinte meses. Tinha medo, era humilde, era manso, era covarde, muita coisa. Mas, sobretudo, tinha pena de agredir, de machucar. Os arranhões no rosto me causavam uma espécie de consolo porque eu podia imaginar que não tinha sido apenas eu o ofensor, também fora ofendido.
Marquinhos era pequenino. Claro, louro, uma figura digna dos santinhos de papel. Lembro-me dele como menino muito antipático. Ao contrário de Bojão, tinha os dentes para dentro e falava com ceceio afetado. Aquilo me irritava muito. Deveria ser um tipo de ciúme instintivo e primário, porque ele também era protegido pelos maiores. Lembro que ele emagreceu muito e de repente sumiu do colégio. Estava na casa do padre, diziam, tuberculoso. Num dia qualquer, por sobre o muro, alguém disse tê-lo visto passeando a cavalo e a imagem me enchia de despeito. Comentávamos o tipo de comida gostosa que ele devia estar comendo. Em torno de sua lamentável ausência, tecíamos paraísos feitos de cobertores, doces, passeios e macarronadas. Algum tempo depois ele voltou. A cor voltara, engordara um pouco, não era mais aquele esqueletinho pálido que ameaçava tombar a cada vento mais rápido. Não sei de onde me vem a impressão de que, após a volta, ele parecia mais simpático, tinha um riso mais camarada, falava sem afetação. Apesar dessa imagem menos desagradável, ele nunca é lembrado nas brincadeiras, não pertence ao grupo, não volta mais.
Há outros nomes a ferir as cordas dessa minha harpa de recordações. Mas cansei um pouco de gente. Por enquanto. Voltarei depois. Estou precisando de ambiente, espaço, quero começar a viver novamente as lembranças daqueles dias. Principiarei a desfiar o rosário das passagens de que me lembro, quero chão, quero aula, quero noite para dormir, quero comida. Esse meu bando de fantasminhas suspira por tomar banho no riacho, por chutar bolas, escrever suas cartas, que sei eu? Vou, pois, descrever o cenário da tragédia, aquele campo de batalha de lutas tão injustas entre forças tão desiguais.

continua no próximo domingo.

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a cruzada das crianças – bertold brecht

A CRUZADA DAS CRIANÇAS 1939 – Bertold Brecht (1898-1956)

Nota: Meus 5 anos de Goethe não me autorizaram a traduzir do alemão, muito menos versos de Brecht. Fiz o que pude e minha amiga e colega na Faculdade, Adelaide Rudolf, professora e tradutora do Goethe Institut de Curitiba, muito ajudou em algumas dificuldades.

No ano 39, houve na Polônia
uma sangrenta batalha
que a aldeias e cidades,
numa fúria selvagem, amortalha.

As irmãs ali perderam seus irmãos
e as mulheres perderam seus maridos,
e entre fogo e escombros, as crianças
procuravam, em vão, aos pais perdidos.

E da Polônia não chegava mais
nem carta nem notícias de jornal
mas lá pros lados do leste
corria uma história sem igual.

Numa cidade, debaixo da neve,
lá pro leste, segundo se falava,
uma cruzada de crianças,
então, na Polônia começava.

As crianças famintas se juntavam
seguindo a passos curtos os caminhos
e iam recolhendo outras crianças
nas ruínas dos povoados vizinhos.

Queriam escapulir das batalhas
e daquele pesadelo tão voraz
e poder chegar a uma terra
onde pudessem encontrar a paz.
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garças e abutres… 03

valdemaro kaj hermeso

3. Os habitantes    

    Falei em garças e garras e bicos. Garças voam, é verdade. Mas garras e bicos é exagero literário. Não me lembro agora de um fato que me doa, que me assuste, que me apavore. Alguma coisa devia ser terrível, na ocasião, mas hoje não faz a mínima diferença.
Penso que todas estas lembranças poderiam ser apenas garças. À ocasião, é verdade, deviam ser aves trágicas e fatais, deformadas, monstruosas, há algumas parecidas, não mais garças, mas terríveis criaturas em cantinhos quase escondidos de Hieronimus Bosch. Mas, tanto tempo depois, agora, essas minhas lembranças se mostram suaves e delicadas, brancas garças a voar, numa pintura japonesa.
E se me pergunto se isto marcou os caminhos por onde perambula a minha vivência, respondo que não sei. É possível. É muito possível. A auréola que teci para mim, a couraça de protetora timidez, os sustos futuros, as saudades que senti… Não sei. Não sei. É possível. E muito possível.
É quase certo que sim.
A cena que me ocorre a seguir já me mostra sentado no chão, entre alguns meninos. Não, não eram meninos, eram garotos ou guris. O internato ficava em Campo do Meio, Minas Gerais. Pesquisando mais tarde em livros sobre municípios brasileiros, do IBGE, descobri o nome: Instituto Profissional e Agrícola São José. Estávamos em Minas, mas o ambiente era carioca. A maioria de nós tinha sido arrebanhada na cidade que, à época, era a capital federal: brancos, negros e mulatos. Logo logo, descobri que eu era um dos mais novos. Isto me ajudaria terrivelmente, facilitando muito as coisas para mim, em prejuízo dos mais velhos. Não sei os limites de idade daquela pequena população e, menos ainda, sei do número de seus habitantes. Imagino que as idades deveriam variar entre seis e quatorze anos (depois, não haveriam de tomar outro rumo?). Mas jamais conseguiria uma idéia precisa quanto ao número de crianças e adolescentes. De que mesquinharias depende nossa memória! Um mosquito pode permitir que ela levante impérios, componha painéis imensos. Bem…
Os pequeninos formavam seus grupinhos e assim os maiores. Quero me lembrar dos mais próximos, os mais íntimos: Valdemar, Hermes, Bojão, Zé da Silva, Gata Russa, Marquinhos… Devo ter esquecido algum… Talvez, para sempre.
Valdemar era claro, tinha a voz rouca. Cabelos encaracolados, olhos verdes, cinzentos, azuis, seus olhos mudam de cor a cada lembrança. Sentava-se no chão e desenhava uma sereia de perfil, inevitavelmente, desenhava uma sereia de perfil. Com ele aprendi a desenhar perfis femininos, que me perseguem até hoje. Seria por isso que as mulheres de Piero della Francesca me impressionam tanto? Aquelas enormes testas, os olhos um pouco empapuçados, os traços ligeiramente primitivos… Valdemar há de me acompanhar durante todas as lembranças. Quando eu falar “nós”, sem me referir a todo o corpo de alunos, estarei falando dele e dos outros poucos amigos.
Acho que ele era mais velho do que eu. Por que não me lembro dele, na sala de aula. Ou seriam tantos da mesma idade?, a ponto de serem distribuídos por muitas turmas da mesma série. Não sei. Valdemar está comigo quando desenhamos no chão, brincamos com barro ou cantamos.
Hermes era mulato, alto e magro. Um dia aprendi que na história do Brasil o primeiro presidente se chamava marechal Hermes e a partir daí sempre tentei imaginar o meu amiguinho vestido de marechal e segurando uma espada ou algo que presidente costuma segurar. Nunca consegui, ele ficava ridículo, se desequilibrava com aquela carga confusa e imprecisa, medalhas, cavalo, quem sabe uma coroa, farda, capa, tanta coisa importante! Voltava a ser Hermes, mulato mansinho, magro, alto. Sua voz era fina. Seus olhos me lembram o mel transparente. Parece que a gente atravessava através dele, quando o olhava nos olhos. A pele era bonita, um bronze queimado, e quando estudei, no ginásio, que os egípcios eram cor de bronze ou cobre, e assim também os hindus, lembrei-me, na hora, do amigo distante, com certeza seria egípcio ou hindu, porque tinha os cabelos lisos e era alto e magro. Lembro mais: algum tempo antes de minha saída, ele disse que estávamos todos muito magros. Eu pude reparar a verdade dolorosa. E me lembrei de como ele era forte e me parecia belo, à primeira vez que o vi.
Foi Hermes ou Valdemar quem ensinou ao resto do grupo a cançãozinha que falava de São Pedro?

    Meu pai amarrou meus olhos
Para São Pedro desamarrar.
A menina que tem dó de mim
Venha meus olhos desamarrar…

Não consigo lembrar. Lembro, porém, que foi ele, com certeza, que inovou as rodas dos carrinhos de barro e nos maravilhou com a invenção das grades do carburador. Voltarei a isto, noutro capítulo.
A última lembrança que tenho desse menino triste e magro, de olhar transparente como o de um anjo, é a da noite que antecedeu a minha partida. Ele estava profundamente triste, cabisbaixo e abatido. Acho que chorava. Falei que preferia não ir embora, que não queria deixá-los lá. Ele disse que eu não tinha direito de estar triste. Eu tinha mãe, ia voltar, era um sonho maravilhoso. Eles continuariam ali, sofrendo, comendo misérias, levando porradas, emagrecendo… Colocou seu bracinho junto do meu e, ao ver aqueles ossinhos sob a pele, meu corpo todo estremeceu e eu senti como que uma faca mexendo no meu coração. Doeu muito vê-lo com os braços tão fininhos, ele todo fraco, tão melancolicamente doente.
Eu disse que não há mais garras nem bico de abutres dentro de mim. Mas que mistério é esse que enche meus olhos de água e me estremece a mão? Onde se escondeu o fantasma benévolo desse anjinho mulato que não cresceu mais, que não me acompanhou pela vida afora, que se plantou dentro de mim, como um menino imorredouro?

continua no próximo domingo.

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