GIL VICENTE 26. FRÁGOA D’AMOR (1525)

mercúrio

Resumo:

Um peregrino explica que Portugal está para conquistar um castelo espanhol, símbolo da rainha Catarina que se casará com o rei português, D. João III. Vênus entra chorando à procura de seu filho Cupido. Ele está organizando com outros deuses uma grande forja para refazer as pessoas, para que todos estejam à altura da rainha. Armou-se no palco um castelo com uma grande forja e de lá saem quatro deuses e quatro serranas, estas representando os quatro prazeres do amor: o olhar enamorado, o falar amoroso, o ouvir com amor, o ser fiel ao amor. Vem um negro. Entra na forja. As serranas cantam uma cantiga e os deuses batem os martelos. Sai o negro inteiramente branco mas com a fala estropiada como antes. Vem uma velha encurvada; é a Justiça, tem a vara torcida e a balança quebrada. Quer ter mãos menores para não receber tanto dinheiro de suborno. Entra na forja mas não endireita. Tiram dela as escórias dos subornos, duas galinhas, duas perdizes e dois sacos de dinheiro, após o quê, ela volta a ser bela. Um Frade quer virar leigo porque há demasiados frades em Portugal. Cupido pede uma Autorização de seu superior. Um Fidalgo quer voltar a ser criança. Outro quer rejuvenecer mas sem que diminua o dinheiro que possui. Volta o Frade com bastante carvão, para ser forjado de novo e se livrar dos afazeres religiosos. Após sua refundição, terminam a peça cantando.

… Peregrino (Vide Cortes de Júpiter, GV049)
Nunca fue pena mayor
Ni tormento tan estraño,
Que iguale con el dolor.

GV080. Romeiro

Donde estás que no te veo,
Que es de tí, esperanza mia?

(canta Gerson Marchiori)

GV081. Venus

Tristeza, quien á vos me dió,
Pues no fue la culpa mia,
No se la merecí, no.

(canta Kátia Santos)

GV082. Negro

Le bella mal maruvada
De linde que a mi ve,
Vejo-ta triste nojada,
Dize tu razão puruque.
A mi cuida que doromia
Quando ma foram cassá;
Se acordaro a mi jazia
Esse nunca a mi lembrá.
Le bella mal maruvada
Não sei quem cassa a mi,
Mia marido não vale nada,
Mi sabe razão puruque.

(canta Graciano Santos)

GV083. Serranas

El que quisiere apurarse,
Vengase muy sin temor
Á la fragoa del amor.

Todo oro que se afina
Es de mas fina valía,
Porque tiene mejoria
De cuando estaba en la mina.
Ansí se apura y refina
El hombre y cobra valor
En la fragoa del Amor.

El fuego vivo y ardiente
Mejor apura el metal,
Y cuanto mas, mejor sal,
Mas claro y mas excelente.
Ansi el vivir presente
Se pára mucho mejor
En la fragoa del Amor.

Quanto persona mas alta,
Se debe querer mas fina,
Porque es de mas fina mina,
Donde no se espera falta.
Mas tal oro no se esmalta,
Ni cobra rico color
Sin la fragoa del amor.

(cantam Carmen Ziege e Kátia Santos)

Comentário:

Gil Vicente não perdia a chance de exibir os pecados da sociedade, embrulhando-os numa visão crítica de ironia e zombaria. Percebe-se que à medida que seu trabalho era mais reconhecido (a rainha no caso era irmã do mais poderoso rei europeu, Carlos V), ganhava coragem e aumentava a dosagem do veneno moralizante que tinha em sua pena. Desta obra, diversas frases foram suprimidas pelo Index Católico. Considerando-se também a sua obra não teatral, cartas e sermões, percebe-se que devia gozar de um prestígio muito grande na corte. Brincando, sugeria mudanças. Aqui faz uma censura á venalidade da justiça e à quantidade de padres em Portugal, o que fazia diminuir o número de trabalhadores que produziam. Como acontece em algumas peças, há indicação de que a canção das serranas é de autoria do próprio escritor.

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GIL VICENTE 24. AUTO PASTORIL PORTUGUÊS (1523)

o pastor

Resumo:

Um lavrador entra como Prólogo e, antes de anunciar os outros personagens, fala de si mesmo: casou-se contra a vontade dos pais e foi deserdado. Há então uma interessante referência ao próprio Autor: é mesmo Gil Vicente, que agora anda sem dinheiro, quem pediu para que ele anunciasse um Auto de Natal. Entram aos poucos seis pastores com seus amores entrecruzados: Joane gosta de Caterina que gosta de Fernando que gosta de Madanela que gosta de Afonso que gosta de Inês que gosta de Joane. Discutem em torno de suas declarações de amor e suas recusas. Vem uma última pastora, Margarida, com um feixe de lenha. Diz ter visto a Virgem, o menino e seis ou sete donzelas. A Virgem mandou que ela fizesse uma advertência ao cura e ao prior. E lhe deu uma imagem sua. Margariga sai e volta com quatro clérigos. Estes entoam um hino à Virgem. E ao final cantam todos uma delicada canção natalina.

GV075. Catherina

Tirae os olhos de mim,
Minha vida e meu descanso,
Que me estais namorando.

Os vossos olhos, senhora,
Senhora da formosura,
Por cada momento de hora
Dão mil annos de tristura:
Temo de não ter ventura.
Vida, não m’ esteis olhando,
Que me estais namorando.

(canta Kátia Santos)

GV076. Clérigos

Ó gloriosa Senhora do mundo,
Excelsa princeza do ceo e da terra,
Fermosa batalha de paz e de guerra,
Da sancta Trindade secreto profundo!
Sancta esperança, ó madre d’amor,
Ama discreta do filho de Deos,
Filha e madre do Senhor dos Ceos,
Alva do dia com mais resplandor!

Fermosa barreira, ó alvo e fito
A quem os profetas direito atiravão!
A ti, gloriosa, os Ceos esperavão,
E as tres pessoas hum Deos infinito.
Ó cedro nos campos, estrella no mar,
Na serra ave phenix, hua so amada,
Hua so sem mácula e so preservada,
Hua so nascida, sem conto e sem par!

Do que Eva triste ao mundo tirou
Foi o teu fructo restituidor;
Dizendo-te ave o embaixador,
O nome de Eva te significou.
Ó porta dos paços do mui alto Rei,
Camera cheia do Spírito Sancto,
Janella radiosa de resplandor tanto,
E tanto zelosa da divina lei!

Ó mar de sciencia, a tua humildade,
Que foi senão porta do ceo estrellado?
Ó fonte dos anjos, ó horto cerrado,
Estrada do mundo para a divindade,
Quando os anjos cantão a glória de Deos,
Não são esquecidos da glória tua;
Que as glórias do filho são da madre sua,
Pois reinas com elle na corte dos Ceos.

Pois que faremos os salvos por ella,
Nascendo em miseria, tristes peccadores,
Senão tanger palmas e dar mil louvores
Ao Padre, ao Filho e Esprito, e a ella!

(cantam Geovani Dallagrana, Gerson Marchiori, Graciano Santos e Rubem Ferreira Jr.)

GV077. Todos

Quem he a desposada?
A Virgem sagrada.
Quem he a que paria?
A Virgem Maria.
Em Bethlem, cidade
Muito pequenina.
Vi hua desposada
E Virgem parida.
Em Bethlem, cidade
Muito pequenina,
Vi hua desposada
E Virgem parida.

Quem, he a desposada?
A Virgem sagrada.
Quem he a que paria?
A Virgem Maria.
Hua pobre casa
Toda reluzia,
Os anjos cantavão,
O mundo dizia:
Quem he a desposada?
A Virgem sagrada.
Quem é a que paria?
A Virgem Maria.

(canta Kátia Santos)

 

Comentário:

Um Auto natalino muito singelo. O texto do hino à Virgem é tradução parafraseada de laudes em latim. E Gil Vicente aproveita novamente para criticar ferozmente os religiosos. Quando Margarida fala do cura e do prior, os outros pastores zombam do hábito que estes têm, de desrespeitarem as moças do lugar.
Num Auto posterior, o da Serra da Estrela, muito semelhante a este, volta o autor a brincar com amores desencontrados de pastores. Só que, naquele, um Ermitão, ao final, juntará os pares e todos acabarão por aceitar com alegria seus parceiros. Outros são os nomes dos pastores, mas há também um Fernando, que ficará com sua Madanela.

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GIL VICENTE 22. COMÉDIA DE RUBENA (1521)

feiticeira

Resumo:

Cena primeira: Um prólogo, como no teatro latino, anuncia a narrativa. Rubena foi engravidada por um jóvem clérigo. Ela apresenta um triste monólogo sobre a sua situação (“mais dói o arrependimento que a dor do parto”). Sua criada traz uma parteira que nos brinda com sortilégios facilitadores do parto (“Dizei tres vezes passinho: o verbo caro fato he: dou-vos a San Sadorninho…” A parteira faz vir uma Feiticeira para que cuide dela, escondendo assim o parto do pai de Rubena. Diabos, a mando da Feiticeira, levam Rubena à montanha. Ali ela dá à luz uma menininha, Cismena.

Cena segunda: A Feiticeira e os Diabos cuidam da menina. Duas fadas devem zelar por ela. A seguir vê-se a pequena Cismena com pastorezinhos. As fadas predizem uma boa fortuna para a menina.

Cena terceira: Já jovem, as Fadas encaminham Cismena a Creta. É adotada por uma nobre que morre e lhe deixa a fortuna. Cismena é cortejada por muitos mas acaba se casando com o príncipe da Síria.

GV060. Benita

Tiempo era caballero,
Que se me acorta el vestir.

(canta Carmen Ziege)

GV061. Feiticeira

Ru ru, menina, ru, ru,
Mourão as velhas e fiques tu
C’o a tranca no cu.

(canta Jorge Teles)

GV062. Ama

Llevantéme un dia
Lunes de mañana.

(canta Kátia Santos)

GV063. Feiticeira

De las mas lindas que yo vi.

(canta Jorge Teles)

GV064. Cismena

Grandes bandos andão na côrte,
Traga-me Deos o meu bonamore.

(canta Carmen Ziege)

GV065. Lavrandeiras

Halcon que se atreve
Con garza guerrera
Peligros espera.

Halcon que se vuela
Con garza á porfía,
Cazar la queria
Y no la recela:
Mas quien no se vela
De garza guerrera
Peligros espera.

La caza de amor
Es de altanaría;
Trabajos de dia,
De noche dolor:
Halcon cazador
Con garza tan fiera
Peligros espera.

(cantam Carmen Ziege e Kátia Santos)

GV066. Dario

D’amores jaço,
Quando as torço d’amores dormo.

(canta Geovani Dallagrana)

GV067. Dario

Consuelo véte con Dios;
Pues ves la vida que sigo,
No pierdas tiempo conmigo.
Consuelo mal empleado,
No consueles mi tristura;
Véte á quien tiene ventura,
Y deja el desventurado.
No quiero ser consolado,
Antes me pesa contigo:
No pierdas tiempo conmigo.

(canta Geovani Dallagrana)

GV68. Lavrandeiras

Bien quiere el viejo,
Ay madre mia,
Bien quiere el viejo
A la niña.

(canta Kátia Santos)

 

Comentário:

Uma comédia bem cuidada, cheia de referências ao cancioneiro popular. Mas não mantém uma unidade, é fragmentada. Pela primeira vez em seu teatro, Gil Vicente apresenta um prólogo e divide a narrativa em cenas, como já era costume no teatro espanhol. Em algumas peças futuras, o prólogo aparecerá outras vezes, mas não mais se verá a divisão em cenas, mesmo em peças com mais de um cenário.

Na primeira cena e em parte da segunda, a atuação entre os diabos, a feiticeira e as duas fadas dá uma nota cômica e fantástica à tragédia da moça engravidada pelo clérigo irresponsável. Ao final da segunda cena surge um clima do que poderíamos chamar de pastoral infantil. Só a terceira cena apresenta-se como comédia romântica, na verdade um drama romântico, com todos aqueles ingredientes emocionais característicos, como a disputa dos pretendentes, o enamorado que morre por amor e o Príncipe disfarçado por amor. Este mantém, em quadrinhas, um longo e lírico diálogo com o eco.

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