o dia sem nome, 11

O dia sem nome, 11.

Sidney, dia 15 de abril, 2 horas da madrugada.

John Caldwell abriu a porta do quarto e entraram os quatro companheiros.
você fica de serviço hoje?
vou, mas vocês podem ficar aqui. o aparelho está arrumado, podem ouvir música.
estamos mesmo é a fim de ver aqueles filmes. já devolveu?
não. o sargento disse que só vai devolver pro dono na quinta feira. vocês dois ainda não viram?
acho que vi todos. faço confusão.
só não vale tocar punheta. Foi até o banheiro.
vocês leram o depoimento do Fred?
eu li na semana passada. falava mais da música dele do que da situação política…
não, esse é outro. a entrevista é curta. mas ele deixou bem claro que não quer ser herói, não é herói de nenhum grupo nem de revolução nenhuma.
porra, esse cara está traindo os interesses do povo.
por que traindo? ele diz que se falar demais acaba entrando numa fria.
se ele quisesse, podia mandar uma mensagem pra toda a Austrália. ele tem cobertura pra isso, é conhecido de todos.
eu não concordo. se ele faz isto, no dia seguinte é preso, quê que adiantou?
minha mãe diz que a Austrália é o único país do mundo em que o povo escolheu uma ditadura.
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o dia sem nome, 10

O dia sem nome, 10.

O que foi que acordou Mieco?, que estranho pressentimento a fez abrir os olhos tão antes de soar a campainha do despertador? Procurou o vidro de champu, colocou-o na cabeceira, ficou olhando o jovem que continuava à espera, que continuaria à espera, sem entender que assovio era aquele que começara a soar. O jovem foi ficando curvo, de repente, Mieco assustou-se, sentindo que seus olhos se desmanchavam, quis levar a mão ao rosto mas a mão colara nos panos, ela colara nos panos, Mieco não sentia mais seu corpo que afundava, se desfazia, não ouvia mais o ruído lá fora, que mãos misteriosas estavam abafando, fez-se o silêncio de um sepulcro no seu apartamento e em todos os outros e também lá fora e pela primeira vez, em milhares de anos, Tóquio mergulhou numa quietude que duraria uma eternidade.
Nas praças, nas igrejas, nos edifícios, nas prisões, nos hospitais e nas escolas, nas repartições públicas e nas enormes mansões, nos casebres humildes, nos estúdios de cinema, nas imensas estações e nos aeroportos, era tudo silêncio.
Mas houve alguns desastres, sim, panelas ao fogo que derreteram, aquecedores ligados até que se romperam os circuitos, aparelhos que fundiram ao calor, incêndios isolados que cresciam e se transformavam num só incêndio, explosões que derrubaram algumas construções, contrabalançadas por águas de torneiras que não foram fechadas, derramadas e espalhadas enquanto houve energia a encher as caixas. 
Nalgum lugar uma janela bateu durante dois dias, até que o vento parou. Noutro lugar um incêndio irrompeu durante sete horas e um tanto mais longe um outro incêndio devorara alguns quarteirões silenciosos, durante três dias. Nada se movia, a não ser os escombros e o fogo e a água e a poeira, sobre a farinha do que tinha sido um formigueiro humano.
Mas não houve pânico. Não havia viv’alma para temer desabamentos, inundações, explosões ou incêndios. Os homens estavam mortos, os cães e os gatos e os ratos, as baratas e as moscas, caracóis, vermes, formigas, bactérias, o ciclo tinha sido interrompido.
Durante quantos milênios, depois, só os elementos da natureza incansável, que desmanchavam sem pressa aquele amontoado de pretensão, transformando-o num árido deserto?
Tóquio, como todo o resto, estava morta.
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o dia sem nome, 9

O dia sem nome, 9.

Getsêmani, à mesma hora.

É verdade, é verdade que esta é a noite da minha agonia; pensou o homem triste, enchendo o segundo copo de vinho. Esta e a noite em que não impedirei no coração a abertura da chaga de sangue, porque eis que a taça transborda; continuou, enquanto fazia descer a amarga tinta da vinha machucada. Não tenho mais nada a padecer, não tenho mais destino a suportar, não tenho mais fado a sofrer. Pensarei tudo e apagarei a chama. É a hora, é a minha hora, aquela que eu escolhi como sendo a hora da minha liberdade.
Quero cuspir fora este meu tormento e esta minha angústia. Sofrerei apenas o que determinei para sofrer, nem um minuto a mais. O limite é o terceiro copo de vinho dessa ceia mística de meu eu lúcido com meu eu louco.
O homem triste, trinta e três anos, conhecedor do homem e da sua miséria e da sua glória, não estava resistindo mais. Chegava no limiar de seu ministério. A seguir, pretendia entregar-se ao efeito de uma droga mortífera.
Mas ainda tinha tempo, queria antes escrever alguma coisa. Que seria, talvez, o seu último clamor de desesperança.
O homem triste sentiu tonteira, as coisas começaram a ficar coloridas, destacadas, suficientes, importantes. Ligou a música, Prelúdio e Morte de Amor, do Tristão e Isolda. As notas prolongadas começaram a flutuar no espaço, ele teve a sensação de que poderia caminhar apoiando-se nos agudos punhais de esmeralda que eram aqueles sons.
Isso é uma loucura, dois copos de vinho e eu já estou enfeitiçado como um deus antigo. Não quero ter pressa de ir embora.
Foi ao banheiro e lavou o rosto. O barulho da água e aquele frio transfiguravam. Enxugou lentamente o rosto, prestando atenção no desvario que era aquela música, um desvario que era o dele, inebriado, além das fronteiras do suportável, mas seguro, contido, mantido numa prisão controlada e garantida. Depois, sim, na morte de amor, seria a libertação total e apocalíptica.
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