o dia sem nome, 8

    O dia sem nome, 8.

O que está acontecendo com Toicinho?, perguntou a avozinha ao ouvir aquele ganido longo e terrível. Correu ao quarto de Julek e viu o cão tremendo, com os olhos parados, agora uivando baixinho. Foi então que ela percebeu o assobio, aquele zumbir penetrante e agudo. Julek abriu os olhinhos, franziu a testa, a avozinha surgiu diante dele, curva, diminuindo, ele sentiu afundar-se dentro do cachorro, Toicinho esticou uma patinha que derreteu, o corpo da avó já era uma gelatina perdida no meio das roupas, Julek e Toicinho se fundiram num emaranhado de panos e pelos.
O sudário da morte cobriu Varsóvia e todas as outras cidades do mundo. A tela da tevê mostrou a olhos que se desmanchavam a simultânea e lenta diluição dos dançarinos. As luzes continuaram acesas, o programa continuou no ar, um programa vazio, roupas coloridas amontoadas, formando um grande círculo. A tela não se moveu mais, até quando, muito tempo depois, a luz foi cortada por se ter incendiado uma das centrais de energia.
A água corria, alguma chama lambia pedaços isolados de um grande sepulcro.
Varsóvia finalmente se apagou, depois que os últimos fogos acabaram. As noites voltaram a ser escuras, voltaram a ser escuras as noites. E caladas.
Igual, exatamente igual, em todas as cidades daquele espaço a que tínhamos chamado Polônia. Igual no resto. Onde só o vento e o frio e a chuva e a neve e o sol imenso… iluminando um grande nada…
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o dia sem nome, 7

    O dia sem nome, 7.

Tóquio, dia 15 de abril, uma hora da madrugada.

Mieco, quarenta e dois anos, separada do marido, num apertado quitineti em movimentada rua de Tóquio, Mieco entra, tranca à chave sua porta, passa o trinco sobressalente, olha as horas, uma hora da madrugada, pega com cuidado a pesada barra de ferro com que sela a segurança do seu apartamento, coloca-a nos dois ganchos e respira aliviada. Mieco é lenta. Olha novamente o relógio. Pensou que o filme terminasse mais cedo, não gostava de caminhar naquela rua àquela hora, mas não tivesse saído e não teria sono e mesmo tendo saído talvez demorasse a dormir. Abriu a bolsa e tirou um embrulhinho com um vidro de comprimidos para dormir, a venda só era permitida mediante receituário médico, mas o farmacêutico já a conhecia de longa data, era amigo de seu filho. Colocou o vidro junto de outro fechado, aquele ainda ia demorar a acabar mas gostava de ser prevenida, sempre fora muito prevenida e muito raramente a vida a tinha apanhado de surpresa nalguma cilada, porque Mieco, quarenta e dois anos, separada do marido e mãe de um casal de filhos, sempre fora muito previdente.
Mieco sabia que ia demorar a dormir. Era assim desde muito tempo, ela dedilharia conta por conta todo o rosário de sua vida, seria, como há tantas noites, menina, moça, mulher, até chegar aos dias de hoje, solitária e insone, consciência viva das noites de Tóquio, e, aí, já seria de manhã e quando ela sentisse o doce esquecimento do sono havia de acordar para esperar soar a campainha do seu despertador que imitava uma preciosidade do barroco ocidental mas que mostrava pequenino, em caracteres romanos, a inscrição tão repetida made in Japan.
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o dia sem nome, 5.

O dia sem nome, 5.

Varsóvia, dia 14 de abril, 17 horas

Julek, quatro anos, trepado nos ombros do pai, observa o cortejo. Homens e mulheres vestidos com roupas coloridas, desfilam dançando e rindo. Julek não sabe o porquê da festa. Não entendeu o que disse o tio, ao falar de vinte anos de independência. As crianças ganharam uma bandeirinha branca com letrinhas vermelhas mas Julek esqueceu o que estava escrito na sua e pergunta à sua mãe o que está desenhado aqui mas ela faz psiu e continua olhando e rindo.
Os homens e as mulheres continuam passando e Julek não entende de onde eles saem porque olha em volta e só vê cabeças, louras, morenas, toucas, flores, bonés. No princípio eles tinham roupas diferentes, pareciam ursos de tão peludos. Depois, passaram muitos homens e mulheres amarrados com correntes, com enormes pesos, Julek perguntou e o pai falou você pergunta demais e ele ficou triste mas o tio falou eles representam o tempo da escravidão e Julek perguntou o que é escravidão e a mãe fez psiu fica quieto ou vamos para casa. Então o tio o pegou no colo e o beijou e disse escravidão é quando homens maus e cheios de espingardas obrigam todo mundo a trabalhar para eles. Aí uma música bem forte começou a tocar e Julek percebe que não está vendo mais os dançarinos e começa a trepar nos ombros do tio e o tio o levanta lá no alto mas sua bandeirinha cai e ele começa a chorar. A mãe se abaixa, o pai fala alguma coisa, o tio diz que não conseguimos mais achar porque está muito apertado mas a velha que está do lado diz fica com esta aqui e dá um beijo na testa de Julek. A bandeirinha nova não está amassada e Julek pergunta à velhinha o quê que está desenhado aqui e ela diz com os olhos brilhando
paz e liberdade.
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