garças e abutres… 25

finale

25. Finale

    Foi numa das muitas tardes em que deveríamos rezar alto, se não me engano, após o hino nacional, devendo subir em seguida. Naquele crepúsculo de sonho, ameaçando mais um pesadelo de cegueira noturna, naquela tarde vermelho-fogo, disseram que iam ler a lista dos novos desligados. Os nomes voariam sobre o silêncio, como pássaros sagrados. Pousassem num dos morto-vivos, e ele seria ressuscitado.

    Et ressurrexit Rex!

com os solistas, o coro e toda a orquestra esplendorosa da Missa Solene de Beethoven. A missa negra chegaria ao fim para algumas daquelas vítimas que escapariam, assim, do eterno sacrifício.
Nunca me perguntei, naquela época, se merecia ou não estar ali. Para mim, bastava ser pobre, para merecê-lo, ainda sabendo que havia alunos em pior situação, pois eram órfãos marginais, além de pobres. Desconheciam a aritmética e a geografia de Minas Gerais. Tinham sido caçados como os cães vadios que a carrocinha leva para a fábrica de sabão. De fato, as ruas ficavam mais limpas, sem eles. Um sabão social.
Do mesmo modo, a idéia de sair não me atrapalhou nem me comoveu. Não sabia se merecia aquele ite missa est que me atiravam de supetão. Já falei antes, que a primeira emoção foi a de insegurança e pena por ter que me separar de meus amiguinhos. Penso que a alegria de abandonar tudo foi me conquistando e amamentou dentro de mim a fantasia de que, um dia, eles também sairiam de lá.
Depois daquela cena terrível, em que me puxaram para junto de meu irmão e empurraram para a fila o meu xará aleijadinho, de olhos apavorados, depois daquilo, nós subimos. Talvez a noite seja como outra qualquer, eu pensava.
A manhã é que seria como um morrer para trás.

Conversamos muito e eles me olhavam como se eu fosse um deus. Minha voz tropeçava e saía baixinho. Hermes chorou. Meu amiguinho de bronze ou de cobre, a pintura que El Greco se esqueceu de fazer, alta e magra e de enormes olhos transparentes, o pequeno bronze entrou em convulsão, estremecendo os ossos pontiagudos. Lembro também de Zé da Silva me olhando com um sorriso estranho, ele parecia estar feliz por mim, talvez. Tudo aquilo era muito confuso.
Soube, depois, que os grandes enfiavam papeizinhos com endereços dentro das bainhas das calças, escreviam nomes nas carteiras de cigarro, memorizavam ruas e números. Tinham a mais heróica missão que já pode ter havido em qualquer de todas as guerras da humanidade: levar a pais, mães, tios, padrinhos, vizinhos, que sei eu?, levar a notícia, não de que se vivia, mas de como era a vida que se vivia. A esperança, de fato, há de morrer exatamente no momento em que morrer o último homem.
Tudo inútil, a não ser os endereços memorizados. Na manhã da Aleluia, desnudaram-nos e nos deram macacões novinhos.
Destamparam a pedra do túmulo, uma rajada de ar fresco fez arder a alma. Já estou num trem. Lá ficaram os sudários macacões desfiados, alguns com cheiro de urina, guardando nas bainhas a aflição dos condenados. Lá ficaram os dois anjos negros, Antonio e Sinuca, a guardar a porta do túmulo. Minto. Antonio nos levou, acompanhado de Aluísio. Ficou apenas um anjo negro, guardando a entrada como um cérbero raquítico: Sinuca, o de pernas finas, o carrasco remendado. Guardaria em vão, porque as mulheres piedosas não iriam lá ter, com os seus perfumes.
Eis que as mulheres piedosas choravam à nossa espera. As mães e as tias e as irmãs e as madrinhas estariam aguardando o melancólico grupo. Um esquelético bando de cabeludos, naquele tempo era terrível ser cabeludo. Os lábios inchados e com lesões, os pés empoeirados e rachados, manchas brancas por todo o rosto.
Lembro de dois episódios, durante o transcurso da viagem.
Um senhor bondoso, chapéu à cabeça, sentou-se do meu lado e me fez perguntas, de onde eu vinha, de onde eu era, o nome do colégio, minha voz embargada murmurava baixo pedacinhos de cada resposta. Ele me deu uma moeda, antes de ir-se. Consegui uma caixinha de fósforo e a guardei com cuidado, não entendia nada. Era um tesouro que eu não devia merecer, alguma coisa devia estar errada, eu, livre, e com um dinheiro na mão.
O outro fato, foi a senhora gorda e clara, cabelos muito negros. O trem estava parado numa estação qualquer. Enfiou a cara na janela e, deparando comigo, ela entrou no vagão, falando muito alto. Levantou-me, alisou meus cabelos, saiu apressada e já voltou cheia de aflição, com um cacho de banana na mão, desaparecendo em seguida. Aquele monte de banana me aterrorizava.  Geraldo falou em distribuir e o terror dissipou-se porque a cruz parecia se fragmentar e me machucar menos.
Estivemos algum tempo no SAM, em São Cristóvão. Acho que algumas horas. O filme salta. Há cortes. De repente, surgem dois rostos. Neuza e Maria da Glória! Seriam Neuza e Zélia? Neuza e Ieda? Não me envergonho de não conseguir me lembrar. Era muita luz para um coraçãozinho mal iniciado em tão esplendorosos novos rituais secretos.
Existe resto? Não sei onde tudo termina. Agora?, ao transpor o portão do SAM e penetrar numa imensa cidade desconhecida. Ou na loja em que entramos a seguir?, onde elas nos compraram roupas novas, que vestimos na loja mesmo. Foi preciso, ainda, passar num barbeiro, para diminuir a selvageria de nossas figuras.
Antes de chegar no novo lar, um quarto de vila na Rua Conde de Bonfim, desabou um bendito, maravilhoso, violentíssimo temporal, que pretendeu, mas não conseguiu, levar a lama das brancas garças e lavar o sangue espirrado pelos abutres.
De mãos dadas, encharcados até a espinha, caminhamos os quatro, dois irmãozinhos carregando todo o peso do encantamento, duas irmãs mais velhas, responsáveis, protetoras, falam alto, estão felizes, carregam elas também um peso, o trabalho tem que ser suficiente para alimentar a todos.
E, nesse momento, a Imperatriz das Almas ordena que eu olhe para trás. Lá estão aquelas criaturas aterradoras, pararam no tempo e se quedaram a me olhar, cada vez estão mais longe, as garças brancas, lembranças de feiticeiros momentos de alegria infantil, os abutres ferozes e implacáveis, lembranças do espanto diante de sofrimentos não compreendidos.
Fecho os olhos num relance e digo adeus a eles, sei que sinto um misto de horror e felicidade.
Mas a Imperatriz das Almas me sussurra malévola que minha despedida é vã:
    Aquelas recordações estão ficando para trás, é verdade, mas, por decreto meu, você está condenado a permanecer algemado a elas. Eis toda a liberdade que eu te concedo. Para isto, você nasceu. Se pretender alguma outra liberdade, procure-a na ética de tuas futuras ações.

Não me lembro do sorriso de minha mãe. Ah!, sim!, ela não estava em casa! No domingo foi que vimos, foi no domingo que vimos, eu e Geraldo, através das grades de uma janela da enfermaria do Hospital Moncorvo Filho, foi no domingo que vimos, de muito longe, o seu sorriso tristíssimo e o seu apagado olhar de Níobe-Hécuba.

Curitiba, 06 de agosto de 1974.

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garças e abutres… 24

ribelo

24. Rebelião

    Após a morte de Pirueta, seguiu-se um período de silêncio e terror. Ali, sim, ninguém estava disposto a sorrir. Meus amiguinhos me contavam que ele tinha morrido de tanto apanhar. Falavam baixinho, medrosos de que um outro ouvisse e contasse. Alguém falou do enterro, falou de uma cruz de madeira enfiada sobre uma cova. Os brinquedos cessaram, os sorrisos passarinhos fugiram das gaiolas.
O Anjo da Morte pairava sobre tudo, como uma pipa negra, mas invisível. O Anjo da Morte tinha o aspecto de um cadáver de cera: branco, de pedra, olhar de santo de igreja, morto-vivo. Voava baixo, quase se podia ouvir o ruflar surdo e misterioso de suas asas de nuvem. Ele ia e vinha e, ao sentir sua presença, a gente se entreolhava sério, querendo entender o que ia acontecer depois. Os olhos baixavam, o coração se agitava, como um animalzinho selvagem enclausurado, que se atira contra as grades até morrer.
Nossos coraçõezinhos cheios de espanto.
À noite, ele também chegava para vigiar. Agora, suas asas são de água gelada. A gente tentava sonhar com a mãe e as irmãs e as madrinhas e de repente percebia a cara dele diante da nossa, toda negra, com dois buracos no lugar dos olhos e seu respirar era quente e com cheiro de podre em terra molhada. Num pulo, a gente acordava. Ele tinha escapado. Estaria bafejando a cara de algum outro. Puxava-se mais o colchão, tentando cobrir também a cabeça, mas as pernas, muito encolhidas, começavam a doer e o colchão descia. A cabeça voltava a se oferecer ao bafo maldito.
Aos poucos nosso terror se aquietou, afundou como areia numa água que principiava a cantarolar novamente. A taça da vida voltava à quietude, às sereias, aos carrinhos de barro, joaninhas, quem sabe?
De repente, tudo se turva e meu coração dispara.

Trepados no muro, eu vejo os grandes, gritando, xingando, não entendo nada. Me agarro com Valdemar, temerosos chegamos junto ao tumulto. Estão trepados no muro, quase todos, sem exceção. Atiram pedras e palavrões em direção à casa do padre. Mas o que berram, é sempre a mesma coisa:
Estou com fome!
Estou com fome. Não era isto que eles sentiam, deviam estar com medo de morrer de porrada.
Parecia uma guerra, uma catástrofe, era barulho e horror demais para minha alma apavorada.
Padre filho da puta! Estou com fome!
Não era uma voz solitária e órfã. Não, não! Era um bando enlouquecido de chacais, estou com fome, que escancaravam a goela para o sol quente, estou com fome, um enxame de abelhas, padre filho da puta, que alguém tivesse assanhado com um bastão de fogo, estou com fome, um formigueiro debaixo de água fervente, filho da puta filho da puta, marimbondos dispostos a matar Aquiles com ferozes ferroadas no calcanhar mortal.
Estou com fome!
Nós, pequeninos, encolhidos num canto, ouvíamos com atenção covarde, pensávamos no que viria depois.
Sinuca chegou no pátio, berrou, esbravejou, apitou, os maiores avançaram com pedaços de pau nas mãos, uivando como matilha de lobos que achassem a presa.
Um bando enfurecido de gorilas selvagens. O inspetor entrou, trancou-se.
As pedradas e os gritos foram esmorecendo. Nessa altura, criamos coragem e, uns ajudando os outros, subimos no muro para ver, lá fora, toda a cidade em círculo, observando atenta.

Quando serenou a rebelião, o Anjo da Morte voltou. Com o olhar em chamas, não mais era o Anjo da Morte, era a deusa da Vingança. O medo soprou do norte e do sul e do leste e do oeste e o sudário do silêncio cobriu o bando de chacais, abafou o zumbido das abelhas, principiou a sufocar as formigas aflitas e asfixiou os marimbondos rebeldes. O sudário do terror.
Há uma falha em minha memória. Como se, o próximo pedaço que vivi, tivesse sido tirado de dentro de mim. Não há encaixe entre a cena anterior e a que se segue.
Por que já estou na fila fatal.
A fila percorre todo um corredor, sobe a escada e desemboca na saleta que dava para os dormitórios. Há um rumor lá em cima, algo como uma catarata de voz fina, não, não, algo como cantos de lavadeiras loucas bem ao longe. Aos poucos, à medida que avançamos, o rumor se transforma. São agora as almas penadas que, alucinadas, uivam. São condenados que lamentam com gemidos longos. Já dá para ouvir o barulho da palmatória, entremeado com os gritos de horror. Tanto choro, e a palmatória pode ser ouvida. É um estalo atrás do outro.
Seria isto, o bíblico choro e o ranger de dentes?
    “Sairão os anjos e separarão os maus dos justos. E os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes”,
brada o enorme homem que parece um gigante de pedra, vitorioso, no centro do altar da Capela Sistina.
Vamos subindo a escada do matadouro, para o sangramento. Alguém me descobre. É um dos maiores, já chorou e rangeu os dentes, agora forma um grupo de grandes, que presencia.
Jorge, não tenha medo. Estenda a mão, a outra, repete sem medo. Não tenha medo. Se você tirar a mão, ele dá com mais força em cima dos dedos. Se você estender a mão com coragem, ele bate devagar. Não chore, não tenha medo.
E já ele e outros repetem para os pequenos: Não tenham medo, apresentem a mão rapidamente, uma atrás da outra, não tenham medo, ele bate poucas vezes e passa adiante. Não tenham medo!
O juízo final se aproxima, a terra estremece, o trovão do Senhor estala implacável, um, dois, três, quatro, quantas seriam?, só não dava para ouvir as trombetas dos anjos, porque o choro aumentava.
O único consolador, o único alívio, o único bálsamo era aquela mão firme que segurava meu ombro e me carregava, me guiava os passos, me puxava com delicada segurança, enquanto a voz que eu já não conseguia ouvir
não tenha medo.
Seus olhos me iluminaram intensamente, não senti medo. Diante do deus, ele me empurrou, eu estendi a mão, o madeiro baixou, minha alma pegou fogo, estendi a outra, meu corpo carbonizou-se, continuei estendendo a mão e senti que fora contemplado com a graça divina porque a fúria do juízo diminuíra sensivelmente. Com as mãos ardentes, comecei a chorar e Zeus gritou, tonitruante,
o próximo!,
que estendeu as mãozinhas aflitas, não vi, ouvi os raios despencarem pelo espaço e ele principiou a berrar desesperadamente com sua vozinha de criança de seis ou sete ou oito anos, magros e desnutridos.
O dormitório era a morada da dor e sempre me lembrava daquela cena negra, quando era obrigado a rezar um salve-rainha:
    gemendo e chorando neste vale de lágrimas.
Meus amiguinhos me mostravam as mãos, chorando. Tínhamos vergonha uns dos outros. Todos tinham, no lugar das mãos, duas bolas infladas, com os dedos tortos, vermelho-azulados.
Encolhemo-nos nas camas, fetos desengonçados, soluçantes, cheios de horror, há momentos em que a alma não consegue pensar em nada.
Todos os soluços foram afogados pelo sono, como filhotinhos de cães não desejados.

No dia seguinte, ao cair da tarde, fomos colocados em forma. O Padre! Ele escorregou de mansinho, o vulto negro, caminhou à nossa frente, para cá, para lá, para cá, para lá. Por fim, parou diante de todos e vomitou uma canção melíflua, suave, delicada, harmoniosa. A voz parecia a pele de um animalzinho, felpuda, macia, quentinha. O abutre negro ia e vinha e falava e ia e vinha e falava. Eu não entendia nada. Entendia que era mentira. Era tudo muito lindo, mas era mentira. Aquele silêncio de medo, a lembrança do desespero da véspera, aquilo existia. Era verdade. Não aquela voz que escorregava para cá, para lá, aqueles olhinhos faiscantes, aquela serpente que passeava espichando a língua bifurcada como a calda da quimera.

    Vós sois o sal da terra.

De fato, todas as lágrimas da véspera tinham sido salgadas.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 23

chump

23. Pirueta

    No Pátio dos Milagres não havia um rei dos mendigos?
No dormitório do Diabo, a apertada e mal-cheirosa extensão do reino da agonia, elegeram o Rei dos Mijões.
Não lhe foi dado o nome Rei, não foi mencionada a promoção, ele não foi coroado, nem com ouro, nem com espinho. Não recebeu, tampouco, cetro de pedrarias ou uma haste de cana. No lugar da púrpura, o macacão, de onde, noite e dia, escapuliam os anjozinhos da fedentina.
Foi eleito Rei por acaso, no silêncio, pela tradição. Descobriu-se, de repente, que ele mijava mais que todos, que ele vinha apanhando mais que todos, que ele cheirava pior do que qualquer um. A partir dessa trágica constatação, Pirueta passou a ser alvo de toda a atenção concentrada e neurótica dos inspetores. A palmatória o procurava sôfrega, se dez apanhassem, e ele estivesse entre os dez, e por que não haveria de?, ele apanhava em dobro.
Lembro de alguém sendo esmurrado diante dos alunos formados. Um silêncio gelado apertava a respiração de todos. Esse alguém foi, finalmente, atirado para o ar e recebido com a ponta da chuteira. Terei imaginado isto? Seria verdade que se apanhasse desse jeito? Minha cabeça mistura tudo. Quase tenho certeza de que é verdade, isto de que me lembro. E quase tenho convicção de que era ele, Pirueta, que tombava com o estômago sobre a chuteira, ou com a boca ou com os testículos ou com a espinha, faz diferença?
Lembro dele no centro da pirâmide de mijões e, para agonia de minhas recordações, eu presenciei o desmoronamento do templo. Um murmúrio, uma espécie de uivo descontrolado, uma perna quebrando a simetria, alguém rolando sobre os outros, braços e pernas emaranhados, um polvo agonizante ou em cópula aflita e a correia de Sinuca voando rápida e sibilante, serpente com língua de ferro a morder feito louca. Eles se encolhiam desesperados, refaziam a construção, mas a fivela ameaçava os olhos e tombavam novamente, misturados.
Me pergunto se é verdade tudo isto.
Meus olhos se molham, meu coração ameaça explodir e eu quero parar de lembrar.
Mas no mais profundo de minha alma, um abutre gargalha e sussurra malvado: eu estava lá. E uma garça em agonia morre, emitindo, em seu estertor, o gemido mais doloroso: ninguém tem o direito de esquecer estas coisas!
Tenho a sensação de ver o Sinuca parar de repente e lançar para a porta um olhar brilhante e cheio de sangue; o olhar do Arcanjo, no dia da expulsão do Paraíso. E nós, os pequenos, que ali estávamos por alguma sádica curiosidade, fugimos em desabalada carreira em direção às camas, onde, durante muito tempo, o coração, disparado pela corrida de vida ou morte, pulava dentro do peito, aquecendo ou distraindo do frio.
Que tipo de sonho colorido, seria possível depois daquilo?
Já falei da mão que tirou a tinta fresca da parede. Pirueta era retardado, não reparou que haviam pintado tudo de novo. Ou teria sido o medo que o acompanhava sempre?, fazendo-o tropeçar em tudo, engasgar com qualquer palavra ou urinar-se inteirinho, ainda que acordado. Aquilo era mais que medo, já criaram a palavra apropriada? Me pergunto também se ele seria, de fato, retardado. Seu comportamento poderia ter sido o resultado da constante vigilância e do constante espancamento. Penso que fosse retardado, porque tinha a cabeça enorme, o crânio se estendia para trás, como o das princesas egípcias, filhas de Akenaton. E penso mais, que foi esse aleijão que o transformou em jesuscristo, contra a vontade. Era mulato e feio. Havia muitos. Mijava na cama. Quantos! Mas aquela cabeça enorme, desequilibrada, pesada e monstruosa…
Não deviam suportar a presença daquela estranha criatura. Houve uma vez em que ele ficou longo tempo conversando com o meu grupinho e tenho a nítida recordação de que, no fundo do seu olhar, havia uma grande mansidão e sua voz era meiga. Mas aquela cabeçorra mostrenga, e ele fedia, era um pedaço de mijo ambulante, mijo seco ao sol, acumulado por muitos dias, um macacão esburacado e podre.
Como seria mijão, em latim?
    Jesus Pirueta, Rex dos Mijões!
Se o deus antigo me aparecesse, eu lhe pediria de volta o meu passado. E, diante de Pirueta, eu lhe jogaria na cara a senha sagrada:
    ECCE HOMO!

Ainda não acabei!
Quem deu ao mundo o direito de espancá-lo? Quem deu aos inspetores o direito de matá-lo? A mãe dessa infeliz criatura, que fez ao mundo?, para ter o filho chutado e sangrento até o último suspiro.
Que deus teria o descaramento de pedir perdão a esta mulher?

Não sei se foi por causa do doce de leite, o pandemônio coletivo dos intestinos e a descarga de merda, não sei se foi por isso que ele mereceu a pancadaria. Não sei se foi pela mão suja de tinta e nem sei exatamente quando o fato ocorreu. Foi malhado ferozmente. Na neblina dessa terrível paisagem de minha memória, eu ouço gemidos de cavalo, de lobo, de gato, de rato, até um último chiadinho ensangüentado. Depois, ele desapareceu. Meus amiguinhos me cochicharam baixinho que Pirueta está muito mal, na casa do padre, a hiena teria finalmente o seu festim, o urubu-rei abriria as asas e passearia contente.
Não lembro do enterro, embora exista uma imagem apagada dentro de mim. Uma garça decapitada, um abutre com o bico estraçalhado, pernas e asas esquartejadas. Há um caixão leve e vagabundo. Há passos silenciosos sobre o chão empoeirado. Há mãos trêmulas de alunos mais velhos que sustentam o leve peso daquele aviso fatal. Há um padre cabisbaixo, caminhando com o olhar cheio de bondade.
Com certeza, há também o som de um sino, tentando dizer que natalidade e funeral têm a mesma música de uma só ressonância.
Isto aconteceu em 1950. Mil, novecentos e cinqüenta anos de uma época que se diz ser civilizada. Alguns mil anos de história escrita. Não sei quantos milênios, desde o aparecimento do homo sapiens.
Homo sapiens.
Homo dementissimus.

continua no próximo domingo.

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