garças e abutres… 22

the pissers

22. Os mijões

    Ou não teriam zombado, por ser aquele um espetáculo comum?
Todas as manhãs, um aluno maior era destacado para farejar os mijões. Aproximava-se da fila dos pequenos, colocava as costas da mão no alto das coxas e separava o coitado que estivesse molhado. Se tivesse alguma dúvida, encostava o nariz e cheirava. Aos poucos se formava um grupinho de mijões. Palmatória. Conforme o humor de Antonio ou Sinuca, a lisa. Conforme, a de furinhos. Num dia, duas cacetadas de mãe, a colher de pau descendo lenta e piedosa. Num outro, com violência de carrasco. Se a vítima encolhia o braço, de medo, os dedos estalavam. E, para cada retirada medrosa, um bolo mais furioso e insensível. As mãos inchavam, ficavam azuladas.
Aquele que fosse considerado mijão crônico, tendo sido pilhado diversas vezes com o macacão molhado, passava a dormir no dormitório dos mijões. Aquilo era a reconstituição de um pedaço do inferno, com tormentos escolhidos, mas não variados.
Todos os colchões tinham deixado de ser colchões há muito tempo. No centro deles, já quase sem recheio, havia um enorme buraco de pano apodrecido, e dali escapavam palhas mofadas e fétidas. Manjedouras para o Filho do Homem. Manjedouras ralas, tendo em baixo os arames das camas, os coitadinhos tentavam dormir na beirada do colchão, mas acabavam por ir para cima do buraco.
E o cheiro? A gente passava pela porta do dormitório deles, antes de entrar no nosso, e estremecia. Eu não sabia o que era acostumar-se. Por isso, não acredito no inferno. Todos os tormentos já imaginados, desde a pena de Sísifo, até os círculos de Dante e as quatro paredes de Sartre, no segundo dia doeriam menos, no terceiro menos ainda, e logo não passariam de rotina. E ainda querem que esta rotina se estenda até a eternidade? A não ser que, após a pena de hoje, o sofrimento se apagasse da memória. Aí, sim, no dia seguinte, seria uma novidade horrenda. A noção de que tudo se repetiria até a eternidade seria o único tormento para estas vítimas. Dou, de graça, esta idéia para os teólogos zelosos.
Vamos deixar o inferno dos teólogos e voltemos ao inferno do Urubu-rei, o papa dos carniceiros. Vi o tormento uma vez e todos comentavam sobre ele, de vez em quando. Todavia, para ser sempre honesto, preciso dizer que não sei com que freqüência isto se repetia.
Antes de dormir, ficavam de castigo. A imaginação não foi longe. Nem precisou. Um mijão mais importante era colocado de pé. Outros tinham que plantar bananeira ao seu redor, descansando o peso do corpo sobre o que estava no centro, apoiando os pés sobre ele. Formava-se um cone desencontrado. Precisavam manter-se assim, em equilíbrio, por um tempo determinado.
A variante, era, inverter tudo. O do meio de cabeça para baixo e os outros de pé, apoiados entre si.
O sono os fazia cambalear e, ao tremer um, toda a pirâmide ruía, fragorosa. A torre de Babel se espalhava pelo chão, nunca conseguiriam atingir o reino dos céus. E, no entanto, todos falavam a mesma linguagem muda do terror.
Era por isso, pelo colchão, pelo fedor e pela pirâmide, que ninguém desejava ser rebaixado a mijão. A rotina da manhã era um suplício.
Eu urinei na cama, verdade que com pouca freqüência, até dez anos. Por distração, ou não, ia-se deitar com a bexiga cheia e à noite acordava-se, corria-se ao banheiro, aquele banheiro tão esquisito, pequenino, úmido, escuro, mas suficiente. Soltava-se, então, a urina, que se espalhava quente sob o corpo. Daí a pouco eu acordava, para descobrir que tinha sonhado, que o banheiro era uma mentira amarga.
Duas coisas me permitiram escapar do dormitório dos horrores. A primeira é que minha bexiga explodia logo após o sono, muito antes da madrugada. Até a manhã seguinte, já estava seco, ou quase. A outra, é aquela proteção geral que me mantinha guardado dentro de uma muralha resistente. Lembro de algumas vezes em que minha roupa ainda estava um pouco úmida e o farejador parava, rápido, e continuava. Por que teria que ser Moisés?, de novo! Pode ter sido, pode ser confusão minha. Cada vez que ele passava direto, não me incluindo no grupo da palmatória, cada vez, um alívio me esfriava por inteiro.
Meus amigos adotavam um expediente estranho. Tentei uma vez, mas acordei temeroso, à noite, e fui ao banheiro, sem precisar levar a cabo a experiência medonha (talvez fosse no começo, porque não me perdi na escuridão).
Eles amarravam o prepúcio com um barbante, apertando bastante. Ficavam assim, toda a noite. Caso urinassem, o barbante impedia a saída da urina e eles acordavam com dor. Dava tempo de ir correndo ao banheiro, sem molhar colchão nem macacão.
Uma vez, Zé da Silva acordou tarde, abriu a braguilha e mostrou. Seu pintinho estava inchado, uma esfera enorme na ponta e a pele negra esticada e brilhante como uma bola de soprar. Ele foi ao banheiro e voltou sequinho, sorridente e vitorioso.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 21

mallumo kaj laksaĵo

21. Escuridão e diarréia

    Não tivesse nascido aquele deus e muita coisa desagradável não teria acontecido.
Acordei durante a noite com terrível dor de barriga. O sonho se transformava em pesadelo. Sabia que, se me levantasse, não encontraria novamente a cama. Não sei por que, estava novamente no dormitório dos pequenos. Tentei resistir às cólicas, segurar as águas que queriam escorrer com pressão de muitos vapores, não havia jeito. Levantei-me e comecei a cabecear paredes e camas, como um touro de olhos vazados. No desespero, a vontade diminuiu e alguém me devolveu ao leito. Não entendia como eles conseguiam se movimentar naquela escuridão. Não entendia também que a escuridão só existia ante meus olhos.
O sono ia e vinha, confusão, rumores, vozes e passos surdos. A cólica desapareceu e eu desapareci após ela. Acordei com muitas luzes e muitas vozes. Havia algo estranho comigo. Não entendia direito. Ao sentir o cheiro forte e horrível, foi que compreendi. Sentei-me na cama, encolhido e trêmulo e, ao sentar-me, senti que alguma coisa mole se espalhava pegajosa debaixo de mim. Todos conversavam muito alto, era um tumulto só.
Moisés, o negro simpático que mencionai nalgum capítulo anterior, brigava com um dos menores:
Você vai ver só, seu cagão duma figa. Vai ter que lavar o macacão e levar cacetada com a palmatória. É tudo uma cambada de cagão. Tive que acordar de madrugada, por causa do fedor!
Me encolhi ainda mais. Quis me deitar, desejei que o dia virasse pelo avesso e voltasse a noite e de novo o dia de ontem e eu não comeria aquele doce que fez uma revolução estúpida no meu organismo desacostumado. Aquele doce foi uma pena muito grande, imposta à força a um crente que não entendia nada de natal nem de divindade.
Seus cagões! Está todo mundo que é merda pura!
O pequenino: eu não caguei na cama…
E ainda é mentiroso! Vira de bunda! Vira de bunda!
O coitado se torceu desesperado, escondendo-se mais. Os privilegiados, que conseguiram passar pela terrível prova de comer um doce sem se borrar, os privilegiados foram se aproximando e fecharam um círculo.
Olhem só o fedor! E fica aí dizendo que não cagou nas calças! E este cheiro, e este cheiro?
Eu comecei a ficar apavorado. Sabia que, depois, alguma coisa aconteceria. Mas não interessava o depois. Interessava aquele terrível agora. A nova prova se resumia em confessar o crime àqueles farejadores de vítimas. Vigiava as zangas e as zombarias de todos, ao redor do infeliz agonizante, torto, olhos esbugalhados pelo medo. Eu carecia de coragem, se falasse a todos, se contasse que eu também estava com aquele cheiro, tudo ficaria mais fácil. O cheiro do doce do nascimento do deus.
O pequeno negava e todos insistiam. Havia já um grupo mais longe, todos peladinhos, com os macacões nas mãos, as pernas imundas da bosta que escorrera e secara. Acho que os chuveiros eram todos em baixo.
Minha voz sumida, meu suspiro, meu respirar choroso, chamou Moisés. Ele se aproximou de minha cama e se fez atento. Acho que compreendeu rápido, mas não falou nada.
Em toda a minha vida, não tenho lembrança de outra vez em que tenha sido tão humilde, tão amedrontado, para falar. A situação se marcou muito fundo na minha memória, um abutre nítido, não há neblina, um abutre ferido que sobrevoa um pântano, minha voz cheia de espanto e temor:
Eu também fiz cocô na cama.
Não sei se ouviram, de tão baixo que eu falara. O fato é que, segundos depois, já o círculo se transferira para o meu redor. O negro era grande, devia ter uns treze anos, acho, todos os outros, menores, entre sete e oito anos. Ficaram esperando a reação de Moisés, para desferir a zombaria impiedosa em cima do novo cagão. E ele foi rápido:
Assim que eu gosto! Cagou nas calças, avisa que cagou, diz que cagou! Pra que mentir?, porra! Que nem esse merda aqui, que se borrou inteiro e fica aí negando.
Voltou-se para o infeliz e todos o seguiram, me deixando entregue à minha perplexidade.
Não me lembro de quais foram os resultados da aventura desagradável. Muitos tiveram a mesma dor de barriga e, com seus seis-sete-oito anos, também não puderam impedir que o doce do Senhor virasse podridão e escorresse liquefeito durante o sono agitado. O dormitório estava um cheiro incrível. Alguém mandou que descessem todos e ficassem lá os cagões.
A cena seguinte, de que me lembro, foi termos que passar lentamente, nus e imundos, segurando os macacões nas mãos, diante de todo o colégio formado. Deveríamos ir ao chuveiro e, depois, lavar os macacões. Eu pretendia me esconder atrás de alguém, todos pretendiam se esconder atrás de um outro. Mas a fila era implacável. Caminhava com doloroso vagar, como se fosse gota após gota, nunca mais se acabava…
Tenho a impressão de que não riram de nós. É suposição minha, atual. Talvez baseado nalgum comportamento em oportunidade semelhante, talvez através de alguma reminiscência apagada e confusa. Eles deviam perceber que tinham escapado por pura sorte. A cegueira noturna, a cólica, o controle dos esfíncteres, que sabiam eles a respeito? Não. Bastava que se lembrassem da noite para perceber que tinham sido agraciados. Não deve ter havido um intestino que não tenha esconjurado aquele doce sagrado, perturbador da monotonia e da paz do arroz com feijão. Aquela deliciosa hóstia de Satanás.
Se não sentiram cólica, ainda assim acredito que não tivessem coragem para zombaria. Éramos todos dominados pelo mesmo medo, nós, o alvo da possível zombaria, e eles, os eventuais zombadores. Sabíamos todos que ali, com nossos dois inspetores, ninguém tinha vida própria.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 20

festas

20. Festas

    No final do ano, outubro ou novembro, chegou ao colégio um minúsculo grupo arisco e sorridente de menininhos de cinco anos. Sempiternas divindades! Cinco anos! De que orfanato teriam sobrado? Que freira teve que separá-los, escolhendo por este ou aquele critério, aqueles que deveriam alojar-se no meio daquela coleção da zoologia humana, ratos, cães, chacais? Que mãos de dedos magros e delicados não puderam mais embalar aquelas criaturinhas, acariciar seus rostinhos redondos, alisar a espuma do sabonete nas costas e nas coxas macias daqueles pedacinhos de gente? Cinco anos!
Alguns falavam errado, ainda. Não eram muitos, tenho idéia de uns cinco ou seis, mas deviam ser mais, porque, daqui a pouco, nas festas, eles apresentarão um teatrinho com as vogais e os sinais de pontuação.
Todos adotaram aqueles pequeninos sofredores. Era como se tivessem entrado num bando de grandes irmãos. Seus brinquedos eram respeitados, seus objetos resguardados de mãos raptoras. Acabamos por acostumarmo-nos com os pequeninos.
A partir daquele momento, eu deixei de ser um dos caçulas do colégio. Apesar disso, minha posição de protegido geral nunca foi abalada. Nunca senti ciúmes dos pequenos, como sentia de Marquinhos, por exemplo, tudo continuou como antes. Seria por causa das aulas? A geografia e as tabuadas…
É estranho que estas figurinhas de porcelana se tenham marcado dentro de mim apenas por um episódio curto, mas muito significativo. No natal, eles apresentaram um teatrinho para todos. A imagem deles permaneceu assim dentro de mim, fantasiados de letras e sinais de pontuação.
Fomos colocados em forma, cobrir, marcar passos, descansar… As professoras chegaram nervosas, alguém deu o sinal, começou o teatrinho.
O pequeno bando passarinho foi entrando. Eu estava extasiado. Eles tinham pendurado sobre o peito uma folha de cartolina muito branca. O primeiro era a letra “a”, avançou e falou um versinho. Seguiram-se o “e”, o “i”, todas as vogais falaram. Depois, foi a vez dos sinais de pontuação, a vírgula, o ponto… O ponto de interrogação me marcou muito, não lembro se pelo versinho, se pelo desenho certo, a curva bem feita, ou se pela criança que o representou.
Não sei como reagiram os outros. Eu ficara simplesmente maravilhado.
Era dia de Natal. Eu já sabia que papai-noel não existia. Se alguma coisa de mais brilhante ou luminoso estava no ar, eu não percebia. Não se ouvia canções diferentes, nenhum som além dos gritos cotidianos, além da rotina da gíria e dos palavrões. A única diferença que havia, era dizerem que o dia era dia de natal. Natal era o dia em que ele nasceu, aquele que morava na igreja, estendido dentro dum caixão de vidro, com um vestido roxo, cabelos de verdade e olhos – ainda bem – fechados.
Também sabia, mais ou menos, o que era morrer. Em Manhuaçu, aconteceu a mais remota passagem de minha vida, de que tenho lembrança: participei do enterro de um gatinho, organizado pela Zélia. E o mesmo tinha acontecido com aquele homem nascido no natal. E, todos os anos ele voltava para ser crucificado com pregos que arrebentariam a mão da gente.
À tarde, o sino tocou. Agora, sim, devia ser natal. Porque o ar estava cheio de um bonito som de bronze que demorava a sumir, ia baixando devagarinho, outro martelava forte e a música monotônica continuava. Aquele sino à tarde era muito triste. Deixou de machucar o coração, quando alguém gritou que iam distribuir doce de leite.
Doce de leite!
O doce de leite era um sorriso, era um sino sem tristeza, era um olhar de mãe-viúva do outro lado da vidraça do trem, sem lágrimas. Sei lá. Era doce, era gostoso, desmanchava-se lento, era inversamente proporcional àquela gosma grossa e fétida que tomávamos para as lombrigas. Enquanto que a gosma descia para ficar instalada dentro de cada um durante dias seguidos, o doce de leite, ainda inversamente, se diluía depressa e tudo não tinha passado de um sonho enfeitiçado.
Aquele doce era uma grande mentira.
Meu coração tropeça ao escrever.
O coração do Prometeu raquítico não resiste a todas as bicadas.
Só direi que, no resto da tarde e nos confusos sonhos da noite, as luzes e os sons pareciam de um mundo fantástico, onde habitariam as irmãs, as sereias, os carros coloridos, a mãe, a vó, os sabonetes, os cobertores…
Aquela mentira durou muito pouco.

continua no próximo domingo.

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