garças e abutres… 13

ladybugs...

13. Joaninhas, brincadeiras, diversões, raios de luz nunca apagados

    Dalton Trevisan, no conto O Espião, escreve que aquelas meninas nunca sorriam. Mentira! Acho que é mentira! A alma da criança não é uma corda eternamente esticada. Há de haver, aqui e ali, longe da palmatória e logo depois da comida, momentos fugazes em que a canção suba, o sorriso brote, o brinquedo distraia.
Porque, se me lembro daqueles dias perdidos, vejo que são as garças pálidas das lembranças suaves que flutuam no azul vazio. Não as garras, não os bicos envenenados de padres e palmatórias e mijões. São os brinquedos que mais demoradamente algemam minha alma a minhas recordações. E nós sorríamos. Naquelas planícies, entre o abismo de um terror e outro, nós sorríamos. Tínhamos muitos e longos momentos de paz. E estes momentos, nessa hora de agora, se agitam dentro de mim, como areias vivas de um bosque encantado. As areias levantam-se, adquirem vida. Entre um agora e um depois, nós éramos felizes. Não há por que mentir. Eu era feliz.
Eis que eles se chegam de mansinho, meus fantasminhas brancos e definhados, pedindo para que recomeçamos os nossos folguedos. Eu mesmo, eu não tenho condições de brincar. Eles, fantasminhas, vivem dentro de mim. Mas o fantasminha que devia ser eu, aquele menino dissolvido na neblina de um tempo quase de todo esquecido, com o olhar sempre triste e o rosto sempre voltado para o chão, sinto que aquele menininho morreu para sempre. Seu pecado foi estar inteiramente acorrentado a mim, ele foi dando lugar a um homem que o destruiu. Hoje, o muito que ele consegue fazer, é me ditar, de tão longe, as coisas que ele viveu lá, como as viveu.
Os outros pararam de crescer dentro de mim. São eternamente pequenos, eternamente meninos. Se hoje eu os encontrasse, não seriam mais os meus amigos. Seriam, também, adultos que mataram meus amiguinhos. Estaríamos, os de hoje e os de ontem, separados por um muro: de um lado, aquilo que eles são agora; e do outro, os pequeninos habitantes que conheci no internato.
Este muro tem frestas. Sim, o muro tem frestas e nós, os de hoje, podemos observá-los, enquanto brincam do lado de lá. Eles não se dão conta de que nós, adultos de hoje, os estamos vigiando. Não viviam para o nosso hoje, viviam o momento deles.

Uma brincadeira que era sempre repetida a intervalos curtos era a das grutas para as joaninhas. Nalguma parte do pátio, o chão era barrento. Não sei que milagre fazia aparecer no pátio pedaços de vidro colorido. Nós os guardávamos com um cuidado tremendo. Eram valiosíssimos haveres. Quando conseguíamos um caquinho, lavávamos até a total transparência e corríamos à cata de joaninhas. Elas eram de um vermelho marronzado, redondas e pintadas de preto. Havia também algumas compridinhas, verdes e vermelhas, mas estas eram muito ariscas, fugiam fácil. Apanhada a presa, fechávamos a coitadinha numa caixa de fósforo, outro milagre. Então, se começava a confecção da gruta, um buraquinho no barro. Depois de bem alisada, colocávamos lá dentro a joaninha e cobríamos com o vidro. No fechar, o vidro se turvava mas, com cuspe, nós o deixávamos novamente brilhante.
O inseto andava de cá para lá e nós o vigiávamos naquela quase escuridão.
O curioso é que nunca encontrei a joaninha no dia seguinte. Ora a gruta aparecia sem o vidro, ora desaparecia por completo, ora estava igualzinha, mas vazia.
Também pegávamos grilos. Pretinhos, miúdos. Alguém falou certa vez que, se enterrássemos a cabeça de um grilo, daí a alguns dias ela viraria uma caveirinha. Decapitávamos o coitado, arrancando rudemente sua cabeça, com os dedos. O corpo era jogado fora e a cabecinha enterrada. Nunca, também, consegui chegar ao fim da experiência. Perdíamos a cova, esquecíamos de procurá-la, sei lá.
Às vezes, jogávamos bola. As bolas eram resultado de uma paciente manifestação de artesanato primitivo. Primeiro, arranjavam trapos de pano. Os fios vinham dos macacões. As agulhas, das tardes vazias. Depois de feito um bolinho de trapos imprestáveis, começava-se a costurar pedaços pequenos de pano mais resistente ao redor. Era uma sucessiva costura de pedacinhos de pano e a bola ia engordando. Aqui e ali, um reforço para respeitar a esfera afundada. Com pouco, ela estava inteirinha, redonda e pesada. É claro que esta tarefa sempre cabia a algum dos grandes.
Alguns deles tinham bola de tênis e uma garça, mais pálida que todas, me fala de bolas maiores, de borracha. Com efeito, eu consigo vê-los lá longe, jogando com uma bola que parece bem maior do que a nossa.
Certa feita, numa pelada, instalou-se uma tal confusão diante do gol, juntou-se tanta gente em torno da bola, que esta permaneceu quase que parada, no pequeno espaço entre dezenas de pés que se chutavam. A bola ameaçava ir para um lado, já um pé a devolvia, outro mudava a sua direção, começamos todos a rir alto, chutando a esmo, a coitada da bola numa total indecisão, pisada, chutada, até que os corpos começaram a se desequilibrar e formou-se uma pirâmide de suor e corpos aflitos a gargalhar e ninguém mais conseguia respirar…
Os deuses de Homero eram peritos em gargalhadas homéricas. Mas nunca riram aquele nosso riso.
Também, que vantagem? Bastava um qualquer pedir para entrar no meio da partida e o regulamento perdia a sua sacralidade e vinha mais um e mais outro e quantos quisessem. Havia muitas confusões daquelas, aquela foi a mais espantosa.
Também íamos ao campo de futebol da cidade. Havia torneios entre os habitantes da região. Será que alguns dos nossos participavam? O que sei eu! Eles jogavam, os alunos maiores assistiam e nós, os fantasminhas, estamos correndo atrás dos gafanhotos e dos grilos. As caixinhas voltariam abarrotadas e ao abrirmos, na volta, deparávamos com um punhado de bichinhos mortos. Mas não queríamos que eles morressem!
Num desses passeios, houve um fato que muito me marcou. Sinuca narrava o jogo, proeza que exigia alta eficiência. Ele não parava de gritar, entusiasmado, exibindo-se feliz. Todos paramos, para ouvi-lo. Então, pediu a um dos grandes para continuar. O jovem começou, as palavras não apareciam, ele gaguejava, tropeçava, Sinuca repreendeu-o, era preciso vibrar, esquentar-se, estava sem vida. E deu, a seguir, uma demonstração de narração, alta, rápida, contagiante.
Nunca me esqueci de como fiquei triste naquele momento. Tive a nítida impressão de que, para se fazer alguma coisa, era absolutamente necessário ser livre.
Os grandes tinham outro tipo de brinquedos. Jogavam com um estoque, com bolas de gude e soltavam pipas.
Para jogar com estoque, era necessário ter um, o que era uma raridade, talvez por se constituir numa arma perigosa. Alisava-se bem o chão de barro (este brinquedo acontecia sempre depois de chuva), fazia-se um desenho para cada jogador. Eram as “casas” de cada um. O primeiro atirava o estoque, que devia enfiar-se no chão e ficar de pé. Da casa até o ponto feito pela queda do estoque, traçava-se uma reta. E ele continuava. O objetivo era envolver e fechar a casa do inimigo. Errando a queda, o outro começava. Duas espirais iam sendo feitas, em torno das duas casas. Ganhava o que, tendo envolvido o inimigo, acertava na própria linha, fechando o seu território.
As bolas de gude acabavam por pertencer todas a um restrito número de craques. Estes, só queriam jogar para valer. Sempre me maravilhou a pontaria daqueles semi-deuses. Eram os “mirolhas”. Eu, além de não saber pegar na bola, nunca acertava. Eu era “dedeiro”. Não me lembro de todas as regras. Um dos jogos tinha um arco com as bolas a serem acertadas. Um outro, tinha três buracos, era preciso entrar em cada um, depois de acertar alguém. Búlica. Um último tinha apenas um pequeno buraco no chão, não lembro absolutamente de regras. O nome desse último era “cuzinho”.
As pipas eram um privilégio de poucos. Santos eternos! De onde vinham aquelas linhas, aqueles papéis, aquelas varetas, aquelas giletes, aquela cola? O privilegiado ficava horas trabalhando com as varetas de bambu. Depois, fazia a armação. Uns, mais sofisticados, se davam ao luxo de usar duas cores. Montada a pipa, que eu teimava em chamar de papagaio, esticavam fios de linha ao longo do pátio e começavam a moer vidro. O vidro moído era misturado à cola e passavam tudo ao longo do fio. O objetivo era, num cruzamento entre pipas, cortar a linha do inimigo, para que a pipa desaparecesse do céu. A cauda era feita com tiras de trapos. Uma gilete era amarrada na cauda da pipa e isto a tornava, ao mesmo tempo, muito perigosa e muito vulnerável. Ela, mais facilmente cortaria a linha do inimigo. Por outro lado, exigia uma perícia maior, porque poderia cortar a própria linha.
O levantamento da pipa era um ritual. Se houvesse pipa no alto e, principalmente, se ela fosse de algum menino “de fora”, era uma verdadeira festa. O nosso herói soltava a linha aos poucos, tinha incrível destreza para enrolar o fio num pedaço de pau, dava braçadas, dava de bico, dava mais linha…
Pairava, contra o azul muito azul, um pedacinho de papel colorido. Flutuava majestoso como um anjo atento sobre a população de Sodoma. Vigiava. Era bonito demais.
Nenhum padre seria suficiente para diminuir aquela alegria.

continua no próximo domingo.

Visitas: 327

garças e abutres… 12

du inspektoroj kaj unu pastro

12. Dois inspetores e um padre

    É preciso dar entrada em cena a algumas figuras importantes nesta tapeçaria quase uma renda. Parece que os fios ficam soltos, sem eles. Ou é como se, a partir de agora, eu enfiasse agulhas em pontos abertos, alinhavando brechas, remendando buracos. Porque, ao mesmo tempo em que são agulhas, ativas e importantes, eles também são linhas, fios, pontos, nós, laços que apertam para dar forma, aumentar a trama do tecido.
Ou laços que são apertados.
Se penso agora nos inspetores e no padre, como marionetistas donos de nossas vontades desarmadas, procuro, para aliviá-los, imaginá-los como bonecos movidos por mãos superiores. No caso, mãos balofas de uma velha prostituta imensa e feia como algumas putas de Fellini, essa puta gorda e imunda a que chamam sociedade humana.
Nunca consegui dissolver o mistério que se armou dentro de mim a respeito dos inspetores. Eram dois. Certo. Antonio e Sinuca. Tenho recordações nítidas em que ambos participam. Mas, sempre isolados, à exceção da hora dos purgantes. Mas o mistério que se plantou dentro de mim é: qual dos dois veio antes, qual veio depois? Penso que no início era o Antonio, depois veio o Sinuca. Mas me confundo ao lembrar de coisas do final, pouco antes de partir, ao perceber que é Antonio que está lá, novamente. Como na Noite das Palmatórias, por exemplo. É muito provável que ambos trabalhassem juntos, revezando-se.
Não sei se isto vem ao caso. Não sei o quê vem ao caso. É tudo muito difuso, muito apagado, muito branco. Valeria a pena tentar decifrar tudo?
Bem, bem, bem…
Foi Antonio que nos acompanhou na nossa ida. Ele estava no trem, acompanhado do Aluísio. Antonio era mulato, enorme, muito forte. Cabelo curto, sarará. Era odiado por todos, mas se tento me lembrar de um momento em que tenha nutrido por ele qualquer sentimento negativo, não consigo. É evidente que eu partilhava do medo geral, aquele medo de gamo entregue a leões. Mas não o silencioso ódio dos outros, a surda revolta de todos os alunos.
Na verdade, meu sentimento era dúbio, como o de um filho em relação ao pai. Ele gostava muito de mim, me protegia abertamente, como faziam todos os grandes. Por isso, eu gostava dele. Mas também o temia. O conflito devia ser pior para os demais. Apanhavam, no duro, e, no entanto, ele tinha, muitas vezes, uma atitude qualquer, extremamente simpática. Havia, por exemplo, muita camaradagem no dormitório dos mais velhos. Ele dormia no leito debaixo de um beliche e conversavam até tarde. Me pergunto, porém: ele dormia de fato ali? ou apenas ficavam conversando até que o sono chegasse? Lembro de suas conversas, contavam casos de assombração. Outro problema: ele tinha lençóis? cobertor? Por que, no final, quando os colchões finos e esburacados eram usados para cobrir, nem os grandes tinham coberta. Eu e Geraldo precisávamos dormir no mesmo lado da cama, encolhidos e apertados, para poder puxar a parte inferior do colchão sobre nossos corpos. Quem sabe se Antonio dormia nalgum outro alojamento? Ou seria, ele mesmo, outra vítima da miséria geral?
Não sei, não sei, não sei, não.
Não me lembro

O destino foi cruel com Sinuca. Era o outro inspetor. Nunca me encostou a mão, creio. Mas não sinto por essa criatura nada de agradável, nada de edificante, senão um sentimento misto de ódio engaiolado e uma piedade incapaz. Era nordestino. Lábios finos, olhos maliciosos, cabelos encaracolados e grudados no crânio. Pequenino e magro como um rato faminto. Talvez, por isso, fosse tão agressivo. Antonio era enorme. Chegava e pronto. Sinuca vinha bamboleante, equilibrando-se, de calção, em cima de suas duas pernas finas e cabeludas, era preciso gritar mais alto e dar pontapés. Ele sabia ser antipático, não consigo me lembrar de nada menos desagradável em torno de sua pessoa. Seria tão só por que ele nunca me deu a mínima atenção? Ou por que ele, simplesmente, era visto por todos como um animal feroz e o medo e o ódio de todos me tivessem contaminado? Talvez, tudo isto junto. Ele era odiado mortalmente. Algum tempo antes de minha saída, ele fora espancado com violência por alguns dos alunos maiores. O ódio subira como pressão, a revolta aumentou, o desespero desesperou aqueles corações confusos e eles o apanharam desprevenido, encurralaram-no num canto escuro e se lançaram sobre ele, descarregando no carrasco a fúria de mil vítimas, transformando-se, cada um dos agressores, em procurador da cólera coletiva.
Acho que é por esta passagem que me contive, assustado, e repeti cheio de aflição a leitura do trecho em que Jerônimo e alguns negros assassinam, com pauladas, o Firmo, do Cortiço, de Aluísio de Azevedo. Uma palavra não me saía da cabeça: o embrulho ensangüentado.
Sinuca sumiu de circulação e voltou macio como pena, brando, delicado. Mancava. Estava remendado como o Jaboti da fábula, que tentou viajar para a festa do céu. O Jaboti entrou no violão do Urubu e divertiu-se na festa. Na volta, o Urubu percebeu, virou o violão e o Jaboti caiu. Por isso, ele tem fissuras no casco. Assim estava Sinuca, o remendado.
Viagens ao céu podem se transformar em subida para a queda. Observação tola, desajeitada e desnecessária.
Navegando entre os alunos e os deuses do Olimpo, que eram os inspetores, flutuavam alunos especiais, com alguma descarada regalia. Seriam mensageiros entre os vermes e a autoridade?, como Mercúrio. Ou copeiros de cama?, como Ganímedes. Não sei se eram muitos, estes purgatórios vivos, que nem eram só o ranger de dentes do frio das noites sem fim, nem conseguiam ser a beatitude efêmera do poder absoluto. No alto, eram usados às escondidas, para evitar a desonra mais que conhecida. No baixo, eram desdenhados como a gralha que se enfeitou com as penas do pavão. É verdade que só me lembro de uma dessas lastimáveis criaturas, não mais gralha e ainda não pavão: Aluísio. Digo lastimáveis, pelo que ele tinha de mal visto entre os alunos; por nada mais. Eu era muito pequeno, para entender destas complexidades.

Chega de fábulas e mitologia. Não quero literatura em torno DELE. Vou tentar me restringir ao bisturi de minha memória. Talvez minha mão estremeça, enquanto escrevo. Não pretendo ser cruel, não posso ser brando.
Próximo ao colégio, morava o padre que nos dirigia.
De onde me vem a impressão tão nauseante que a memória daquele padre faz vir à tona das perdidas águas de minha alma? Ele era o dono, o senhor absoluto. Todos nós sabíamos disto. Se a palmatória feria, era ele quem dava a ordem. Se a comida piorava, algum sapo ou lagartixa havia de ter sido vomitado invisível de sua boca, junto com as instruções covardes. Todos nós sabíamos que ele era o marionetista-mor que segurava os fios que dirigiam os movimentos de Antonio e Sinuca. Todos nós sabíamos. Tanto que, na terrível Tarde da Rebelião, foi para a direção de sua casa que os brados voaram, corajosos e decididos.
Bojão não tinha nome. Amigos não precisam de nome. Aquele homem também não tinha nome. Era apenas O Padre. Para mim, uma espécie de Urubu-Rei, uma mancha negra que aparecia quando queria. Na minha memória, ele nunca anda com os pés no chão, apenas vai e vem, flutuando como um fantasma.
Parece que, durante a minha estadia no seu círculo infernal, aquele pobre mefisto fora mencionado numa das revistas cariocas ou algum jornal. Não sei das proporções do escândalo. Minha avó falava que ele recebia os presentes dos familiares, mas não os repassava aos alunos. Minha mãe mencionou pares de sapatos e roupas que nunca vimos. Foi esta reportagem que provocou o desespero de meus familiares e os levou a se empenharem em conseguir o dinheiro para a nossa volta.
A não ser um apagado vulto deslizando de negro (oh! aquele monge teutônico do filme Aleksander Niévskii), esta criatura não marcou minha alma, felizmente. Não me lembro de seu rosto, não sei de seus olhos. É apenas um abutre de asas cortadas que passeia eternamente dentro de mim. Um mosquito inoportuno que volta se eu o enxoto.
Para mosquitos da memória, não existe inseticida.
Felizmente, também, ele nos visitava pouco. Ele poderia ter aparecido mancando, arremendado, ou com uma ruga de preocupação, ou com alguma tristeza no olhar, e qualquer uma dessas pequeninas misérias humanas, poderia ter sido suficiente para me marcar para o resto da vida. Eu haveria de ter pena dele, sofrer com ele, querer achar uma desculpa, pretender perdoar seu único grande crime, que é, segundo Espinoza, o da ignorância. Quem concorda com Espinoza, é levado a perdoar facilmente.
Anos depois, eu pensarei: a culpa do pecado humano, Senhor Espinoza, não advém da ignorância, mas da imaturidade neurótica da alma humana. Só um viver social decente tornará possível o amadurecimento das relações humanas.
Mas eu não conhecia Espinoza, eu tinha sete-oito anos, pouco mais, pouco menos. Minha cabeça de hoje não tem o direito de filosofar em nome de meu destino anterior. Tinha sete-oito anos, mas não era Incapaz Existencialmente. Se eu podia sofrer, eu podia odiar. O sofrimento passou, sim, mas não se transformou num zero dentro de mim.
Não dou a ninguém o direito de perdoar em meu nome. Não dou a isto que sou hoje, o direito de agir em nome do que eu fui.
Hoje, sei que não posso condená-lo. Mas o menino que fui, já o entregou à danação.
Não apago o que pensei na época.
Nada reitero.
Estou apenas lembrando de coisas desagradáveis que já se acabaram.

Não gostaria de voltar a ver aquele homem.

continua no próximo domingo.

Visitas: 376

garças e abutres… 11

dona leca e dona clotilde

11. Dona Leca e Dona Clotilde

    Tive, no decorrer de minha estada naquele Colégio, duas professoras. Qual veio antes e qual veio depois? Mistério. Neblina dentro de mim. Às vezes me parece que primeiro foi dona Clotilde, depois, Dona Leca.
Dona Clotilde era, para mim, uma encarnação de Nossa Senhora. Tinha os dentes enormes, era corpulenta, talvez uns trinta e cinco, quarenta anos. Os olhos muito grandes, castanhos claros, e cabelos também castanhos claros. Ela me adorava.
Aliás, todos os adultos e os alunos maiores me mimavam. Não sei se por minha timidez, minha idade, minha aparência frágil de menino magro e indefeso. Ou se pela inteligência que eles diziam que eu tinha. Eu freqüentara uma escola em Manhuaçu, mas a idade não me permitira seguir no segundo ano. Já lia e escrevia. Contava até não sei quanto, de dois em dois, de cinco em cinco, de dez em dez… E havia a tabuada! Era injusto me comparar com os outros, meninos enormes e ignorantes, favelados coletados nos porões e nas lixeiras do Rio de Janeiro. Era injusto, mas eu não tinha culpa.
Eu decorara uma frase de ouro dessas aulas. O Rio São Francisco nasce na Serra da Canastra, município de Guia-Lopes. Nunca me serviu para nada, a não ser para ser mais amado e admirado, quando eu vomitava a resposta correta, para espanto de todos.
Sobre dona Clotilde, tenho uma dúvida nebulosa. Quando as salas foram pintadas, escreveram sobre o portal de cada uma, o nome de um santo. A nossa sala era Santa Clotilde. A sala teria sido assim chamada numa homenagem rústica à professora que ensinava ali? Eu vejo nítido o nome sobre a porta que se desenha dentro de mim, vejo nítida a professora que me sorri e passa a mão nos meus cabelos. Mas não tenho certeza de que ela se chamasse realmente Clotilde.
Além da lembrança de que ela era uma espécie de Nossa Senhora ali, lembro de uma lição de religião. Ela mostrava um livro enorme, com figuras em preto e branco e um texto. Eram desenhos tão belos que pareciam figuras vivas. Ela lia uma frase sagrada e apontava com o dedo a prodigiosa imagem que ilustrava a situação. Então, ela leu:

   Melhor seria que amarrasse enorme pedra no pescoço e se atirasse no fundo do mar, do que maltratar um inocente.

Alguém perguntou o que é inocente.
Inocente é uma criança pura como um anjo. Inocente é uma criança como ele.
Todos me olharam e eu senti a terra estremecer debaixo de mim, morto de vergonha, desejando que fosse de verdade o tremor e que eu fosse tragado pelo buraco.
Não contente, ela foi de carteira em carteira, mostrando o desenho, até que chegou a minha vez. A presença dela era como um sorriso enorme, aquele perfume doce de sabonete e a pele limpa como a das imagens da igreja. Me mostrou o desenho, bico de pena no estilo de Gustave Doré. E eu vi, duas criancinhas, menino ou menina?, cabelos louros e crescidos, encaracolados, dois santinhos de túnica grega. À frente do desenho, à beira de um precipício, dois ou três homens horríveis, grotescos até, com enormes pedras de moinho amarradas ao pescoço e uma multidão furiosa em torno deles, disposta a arremessá-los para dentro das águas.
Como não sentir um arrepio por toda a espinha?, quando, anos e anos depois, folheando um livro sobre a Galeria Uffizi, encontro um Altdorfer cheio de belas cores, onde um santo chamado Floriano tem ao pescoço a mesma pedra de moinho e está prestes a ser arremessado às águas. Aqui, a vítima é o suposto inocente.
Voltando à dona Clotilde… Ela repetiu a explicação para mim, mas eu nada ouvia. Me apavorava a possibilidade de ser uma daquelas crianças, ao mesmo tempo que me orgulhava por ser inocente, devia ser coisa muito especial. A idéia de que aqueles homens morreriam afogados como ratos, por minha causa, me enchia de horror. Alguma coisa devia estar errada.
Certa vez ela explicou que, quando arranjássemos namorada, devíamos levá-la à igreja. Ela podia ser o diabo e estouraria na porta. Contou um caso em que o jovem foi salvo, exatamente na porta do templo, tendo escapulido do estouro um cheiro forte de enxofre.
Dona Leca era magrinha e feia. Estava sempre à espera de que ela entrasse na sala de aula com um leque na mão. O leque nunca apareceu. De suas aulas, tenho muito a recordar.
Estou sentado diante do livro, estudando as palavras da lição que seria lida dentro em pouco. De repente meus olhos esbarram em algo confuso. Eu não conhecia aquela estranha palavra. Tento decifrá-la, mas é inútil. Vou até o fim do texto e tudo vai se esclarecendo, com exceção daquela palavra perturbadora. Soletro a primeira sílaba, CRI, cri, depois vinha um “a”, então é cria, e a seguir aparecia um “n”, sem vogal, mas seguido de um maldito “c” cedilha. Cri… cri… não, não, era um mostrengo que se recusava a dar-se por conhecido. Comecei a ficar aflito, sem coragem para perguntar nada, o suor me esfriava e eu me sentia dominado pelo medo. Tinha a responsabilidade de não errar. Era difícil carregar aquela carga, por que, numa situação como aquela, minha timidez abalaria toda a minha segurança. A muito custo me levantei, fui até dona Leca e perguntei que palavra era aquela. Criança. Sentei-me, o mundo parou de girar em torno de mim, conferi, sim, com certeza, tão simples e tão fácil, e eu fui errar.
E a tabuada? A tabuada era, para mim, a glória, e, para todo o resto, o desespero. O pior é que eu me achava desonesto, por que sentia que, o que eu fazia, não devia ser o correto. Ela perguntava, tanto vezes tanto, ninguém acertava. Para mal de seus pecados eles não descobriram que a professora sempre começava do UM. E eu descobri que, se seis vezes um é igual a seis e seis vezes dois é igual a doze, bastava continuar contando de seis em seis, sem errar. E ela perguntava: seis vezes três? Eu, rápido, em pensamento: treze, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete… DEZOITO! Seis vezes quatro? Dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três, VINTE E QUATRO! E assim íamos subindo, de seis em seis, e quando chegava o SESSENTA! eu respirava cheio de alívio e a professora me elogiava. Todos me olhavam como se eu fosse um bicho diferente, portador de algum dom mágico.
Acho que era por causa da tabuada que todos me protegiam. Na certa, as professoras contavam minhas façanhas e eu surgia como um pequeno prodígio.
Repito que era uma concorrência muito injusta, mas eu não era desleal. Eu muito me preocupava em pensar que não devia contar de tanto em tanto e sim decorar as respostas, como todos tentavam fazer.
Lembro de mais. Certa vez, todos fizeram bagunça e ela parou a aula. Estava um deus-nos-acuda. Ela saiu da sala e já voltou, sentando-se tranqüila. Nós continuamos conversando e rindo e ela me chamou. Cochichou rápido para que eu ficasse quieto, por que o inspetor chegaria daí a pouco. Eu me sentei envergonhado, feliz, tudo junto. Do mesmo modo como me reconfortava a proteção, sentia que era desagradável a situação de exceção criada em torno de mim.
De outra feita, ela gritou com um menino dos maiores, ele reagiu, ela esbofeteou-o e começou a sair sangue do nariz dele. Ela se apavorou e começou a chorar. Um silêncio doído nos dominou.
Pobres professoras! Residentes na roça, com um possivelmente péssimo curso, sem a mínima noção de psicologia infantil, de didática, de nada, serem colocadas diante daquelas feras. Feras à revelia de suas próprias vontades, feras por um acaso torturante, feras feitas feras e não nascidas feras. Agiam como feras. Nada se podia esperar daqueles negrinhos surrados pela vida, que, da vida, só receberam a própria vida, o sopro, o respirar, o existir. Nada mais, nada mais.
Nada mais.
Uma vez Dona Leca pediu ao inspetor que me deixasse dormir na casa dela. Foi um acontecimento tão importante que nunca consegui esquecer detalhes dourados dessa minha odisséia invertida, carregada de triunfos. Ela me deu a mão e saímos. Era tarde, daí a pouco viria o crepúsculo. Passeamos num caminho empoeirado. Eu, trêmulo com um pardal comovido, agarrado com medo à mão da fada madrinha. O mundo se cobria de um significado desconhecido, eu nada entendia.
Entramos. A mãe de Dona Leca era uma senhora gorda, bonachã, de olhos muito miúdos e tenho a impressão de que usava um xale. Elas me lavaram numa bacia, água morna, era como se as mãos de minha mãe tivessem voado até onde eu estava. Em Manhuaçu, os banhos também eram de água morna, numa bacia equilibrada sobre um banco comprido.
Jantei. Eu não tinha coragem para falar nada. Existe, nas minhas perdidas recordações, um mingau de couve quentinho, bem temperado, que flutua perdido num mar de névoas esquecidas. Deve ter sido o mingau de couve da casa da Dona Leca. Aquilo descia e me dava forças existenciais, me dava a impressão de que havia alguma coisa, deveria haver alguma coisa, que valia a pena. Não, eu não pensava isto, evidente, mas a impressão hoje traduziria algo mais ou menos semelhante. Elas ficaram conversando e me olhavam todo o tempo e me sorriam. Aquela velha mulher nunca me saiu da cabeça. Não era pelos cuidados, não era pela comida ou pela cama macia onde me tinham colocado, cheio de cobertores. Era o seu modo de me olhar. Pareciam dois olhos de água, duas eternidades, duas espadas que me enchiam de segurança, mas me davam, ao mesmo tempo, uma imensa vontade de chorar.
Ela ficava sentada, talvez numa cadeira de balanço, talvez fazendo crochê, não sei. Se Dona Clotilde era uma Nossa Senhora na terra, aquela mulher era muito mais, alguma divindade mais antiga e protetora.
A noite pesou nos meus olhos e meu corpo medroso gozou da plenitude de um lençol e cobertores macios como o pelo dos animais mais mansos. De manhã, tomei café com biscoitos. Novamente aquela maravilhosa sensação de que eu vivia.
Sócrates fala de um pão, seco e duro, que ele comeu, durante a guerra do Peloponeso, e que achou o mais delicioso do mundo, tamanha era a sua fome. Onde? diabos! eu li isto. O pão dele não valia metade do meu mingau de couve ou daquele café com biscoitos. Não valia, não.
Ele não tinha apenas sete-oito anos, pouco mais, pouco menos.

continua no próximo domingo.

Visitas: 389