garças e abutres… 16

the church

16. A Igreja

    Não devia ser muito grande nem muito rica. Mas forçosamente haveria algum dourado, alguma flor, alguma vela acesa ou luminária pendente de um longo fio, algum vidro colorido, ficava bonito. Tenho a impressão de uma fila de quadrinhos, representando a via sacra, que pinturas maravilhosas! pareciam fotografias! hoje seriam uma vulgar repetição acadêmica no estilo de David, talvez nem tanto.
O que mais me impressionava, todavia, era a estátua daquela mulher. Olhos brilhantes, molhados, cabelos de verdade e um punhal enfiado no peito. A carne do seio, do pequeno pedaço de seio que se mostrava, se abria numa chaga como dois lábios virginais, uma mancha de sangue e o punhal imenso. Nossa Senhora das Dores. Ninguém me explicou que aquele punhal era simbólico, entendi como realidade e talvez já tivesse feito a relação com o defloramento.
Aquela imagem me perseguia, a impressão de tê-la diante de mim é nítida demais e dá para avaliar o horror que me inspirava. Isto foi em 1949 e 1950. Em 1961, onze anos depois, sonhei com aquela estátua. Nua da cintura para cima, tendo no colo o Cristo morto, um tanto ou quanto na posição da Pietá de Michelangelo. Não havia punhal, mas os dois seios se apresentavam cortados horizontalmente. Em 1973, o sonho mudou. A mulher tem uma criança no colo, à semelhança das madonas de Rafael. Nua como a anterior, mas aqui é um quadro. Parado próximo à tela, a estátua muito bela de um sacerdote egípcio com um punhal na mão. A estátua avança para o quadro, eu esboço uma tentativa de impedimento, mas prefiro me deixar assistindo para ver o que vai acontecer. Ele perfura o seio da figura e escorre um filete de sangue vermelho.
Aquela igreja, como todas as outras, até durante algum tempo, me inspirava mais terror do que qualquer outra emoção. Os santos, vestidos de vermelho e com cabelos de gente, me semelhavam cadáveres ressurrectos, ainda verdes, ainda sem movimento. Mas o mais terrível eram aqueles olhos de verdade, brilhantes e penetrantes, olhando para um ponto à sua frente, parados, inflexíveis, ao mesmo tempo eternamente vivos e eternamente mortos.
Sentávamo-nos num banco comprido, balançando os pés empoeirados. Eu vigiava o ambiente, imitando o levantar-se, o ajoelhar-se, o sentar-se. Eu vigiava.
Acho que não íamos muito à igreja; felizmente, para meus sonhos. Desses passeios pesados, não tenho senão duas lembranças. Muito amargas, dois abutres lúgubres que vêm e vão eternamente dentro de mim. Param, me olham um tempo, estremecem e continuam o ir e vir. Teriam estes dois fatos acontecido no mesmo domingo? Tanto faz. A esta altura, tanto faz.
Íamos à missa comum, nenhuma era especialmente rezada para os alunos. Sentávamo-nos mais ou menos amontoados sobre alguns bancos e a cidade ocupava o resto.
Era Ele quem oficiava.
Que diferença faz?, se também existem as missas negras.
Descobri que o menininho da frente comia uma cocada. Estava com o pai, um homem que deixara a seu lado, sobre o banco, um chapéu. Existem, pois, encarcerados eternamente dentro de mim, numa célula-cela da memória, um pai que tem chapéu e um menino que come cocada. Ele comia devagar, pedacinho por pedacinho e a demora era angustiante. Desapareceu tudo ao redor e só passou a haver no universo um pedaço de doce que subia, descia, se escondia, voltava. Branco, irregular, esfarelante. Se ele a tivesse comido numa engolida, limpando as mãozinhas meladas nas calças, a cocada talvez já estivesse apagada dentro de mim e ele também e o pai, com mais motivo ainda. Mas não foi o que aconteceu. Ele, involuntariamente, prosseguia na tortura. Não sabia da salivação aflita. Não sabia da respiração suspensa. Não sabia da vigilância tão próxima.
O menino calçava sapatos e sua roupa era limpinha.
Aqui, minha fantasia me ilude, confunde a consumação do episódio. Ora eu vejo o menino sair com o pai, deixando no banco um pedaço de doce, que eu como. Ora eu vejo, na saída, o homem aproximar-se de mim com um doce na mão, presenteando-me.
Qual. Não deve ter sido nada disto. Quando Ele nos liberou, todos se levantaram, eu tive de sair no meio do tumulto e perdi a visão.
Mas minha fantasia insiste e me mostra também uns farelinhos de coco espalhados sobre o banco, esquecidos.

A outra lembrança, é a do dia da confissão. Estávamos maravilhosamente preparados. As professoras tinham contado de pessoas que não confessavam todos os seus pecados e as hóstias sangravam ou eram vomitadas com insuportável fedor. A mais estranha era a da menininha
inocente como ele
que queria comungar e não deixaram porque ela era pequena demais e na hora da comunhão a hóstia se desgarrou dos dedos do padre, voou pelo templo e pousou sobre a cabeça do pequenino anjo. Como um espírito santo.
Estávamos maravilhosamente preparados. Preferia que o chão se abrisse e que eu desaparecesse. Tinha horror em pensar que eu poderia esquecer algum pecado, eram tão complicados aqueles pecados…
os pecados mortais são tantos
os pecados capitais são tantos
os pecados veniais são tantos
e havia aquela eumênide silenciosa e grudada na minha alma, a quem chamavam pecado original.
Eu estava maravilhosamente preparado.
Veio a minha vez e eu tropecei até chegar lá. Gaguejei as primeiras palavras e, num relance, enumerei meus horrores
arrancar a cabeça dos grilos
brigar com os amiguinhos
fazer maldades.
Que maldade?
Batia num menino aleijado.
Só?
Rasgava as figurinhas dele, zangava com ele, xingava ele.
O que mais?
Aquela voz me encarcerava. Da voz eu me lembro. Era macia, meio rouca, mas não tinha dono. Era uma voz demoníaca que saía de trás das grades, eu dialogava com a grade.
Eu silenciei e ele perguntou novamente o que mais. O que mais ele queria? Algum pecado mortal? Que eu desonrasse pai e mãe? Que eu cobiçasse a mulher do Próximo?, aquele sujeito desconhecido e de nome tão engraçado!
Eu bato nele, estrago os brinquedos dele.
A grade se calou, mas não me despediu. Comecei a suar frio. O silêncio estava exigindo que eu continuasse, eu precisava de mais pecados!
Matei passarinhos! (Nunca tinha matado passarinhos!)
Xinguei a professora!
Ele continuou calado.
Depois…
Que coisas feias você pensa?
Eu perguntaria a ele hoje, que coisas feias pensa uma criança de sete-oito anos. Filho da puta! Terrorista! Filho da puta!
Terrorista filho da puta!

Os antigos gostavam muito de alegorias. Pintaram a Inocência, a Cólera… Botticelli tem uma Calúnia. Dürer tem uma muito expressiva Melancolia. Alguém teria pintado ou esculpido a Sancta Mater Igreja? Seria essa alegoria como aquela mulher das dores, com o seio-hímem, da forma mais sadomasoquista possível, trespassado por um punhal fálico?
Tento imaginar a alegoria que existiria na cabeça de um menino de 7-8 anos, em função de sua experiência num internato dirigido por um padre. Lembro do filme Roma, de Fellini. No meio da neblina surge uma puta. É uma enorme mulher, se veste de preto. Exibe as mamas imensas, que poderiam ser a redenção para todos os bebês famintos do mundo. Antes de desaparecer de cena, limpa as gengivas com a língua, numa careta… Não! Uma puta pobre? Basta pensar nos tesouros do Vaticano.
Há uma outra, mais ao final do filme. Esta, num bordel de luxo… Não, é melhor abandonar estas imagens, esta, de rosto belíssimo, e a outra, tão humana…
Prefiro imaginar uma bruxa com o seio perfurado, eis que aqui ela encarna a Grande Meretriz do Apocalipse. A que se acha sentada por sobre as águas. Com quem se prostituíram os reis da terra. A Igreja.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 15

jorge de souza felix

15. Jorge de Souza Félix

    É muito estranho lembrar.
Surgiram, no começo dessa minha tentativa de penetrar nos labirintos de minha memória, as imagens de garças e de abutres. Garças seriam pálidas lembranças de fatos agradáveis; abutres, qualquer cena mais assustadora. Nalguns momentos parece que eles se misturam.
Lembrar também pode ser como a imagem de uma paisagem cheia de ruínas. Aqui, um muro totalmente isolado, mas há nele afrescos muito coloridos de uma cena inteira, nítida e cheia de significado. Além, uma estátua decapitada, seria esta criatura uma boa divindade ou uma fúria terrível? Uma coluna solitária me fala de algum aprendizado. Uma coluna despedaçada no chão sugere algum motivo de vergonha.
Sei bem que houve um momento de minha vida em que todos estes detalhes arquitetônicos faziam parte de um todo coerente. Eram o meu tempo presente. Ali dentro, eu respirava meus medos e minhas esperanças. Ali dentro, meu coração ia aprendendo aos pouquinhos, muito aos pouquinhos, sobre o grande espanto que significa viver.
Anos e anos mais tarde, a gente só consegue lembrar que alguma coisa existiu, muito mais à semelhança de uma grande mentira. E, ao tentar refazer o passeio ao passado, descobrimos que aquela cidade está morta.
Meus passos se dirigem a um pequeno templo. Sei que vou encontrar algo terrível. Vejo murais destruídos, mostrando garras. Há cacos espalhados de uma escultura, mostrando olhos cheios de dor. Está quebrada a bacia onde deveria haver uma água abençoada; não posso ver, pois, o reflexo de meu rosto melancólico. É um templo pagão. Prefiro que seja um templo pagão.

Algum tempo depois que cheguei, apresentou-se nova turma. Foram colocados diante de todos nós e seus nomes foram lidos, para conhecimento geral. Num momento, eu estremeci. Meu nome fora gritado, meu nome tinha sido gritado na confusão. Era esquisito tudo aquilo, acerquei-me depois do Geraldo, cheio de espanto, e comuniquei meu medo. Ele falou com o Antonio. Não era Teles. Era Félis. Jorge de Souza Félis. Deveria ser Félix, teriam lido errado.
Curiosamente, ele também chegara acompanhado de um irmão mais velho. Geraldo procurou os dois. Não me lembro do outro nome. Ambos pardos, quase mulatos. Meu xará aproximou-se. Tinha os olhos fundos, a pele seca, manchada de branco, as orelhas enormes. Parecia a caveirinha de um macaco. Esquelético, subnutrido. Uma das mãos, viradas para trás, a paralisia o deformara. Também um pé virado para trás, o aleijadinho se torcia todo para andar, desequilibrado e bambo.
Que lástima! Que sofrimentos ele não deve ter padecido! Eu não consigo conciliar o ato da criação com aquele resultado. Qualquer deus haveria de se envergonhar com tanta crueldade. Pensar num acaso indiferente, numa natureza desapaixonada, num destino imprevisível… continuo achando uma crueldade.
O menino aos poucos foi se aproximando de meu grupo. Foi aceito, misturou-se, mas já os meus amigos se afastaram discretamente. Mas eu quase tenho certeza de que ninguém zombou dele.
Não sei por que motivo, nalgum dia, percebi que brincávamos juntos. Isolado de todos, segregado, não sei se exilado por pressão dos outros, por medo ou por decisão própria, o aleijadinho se agarrou à única tábua de salvação que encontrara: alguém com o nome quase igual ao dele. Era como se eu estivesse condenado a aceitá-lo, pelo fato de me chamar como me chamava.
Desconheço nossas primitivas brincadeiras. O que se marcou profundamente em mim, foi o susto ao perceber que as nossas relações não estavam iguais às dos outros. Eu mandava, ele obedecia. Ele perguntava o que fazer, humilde. Eu ordenava, zangado. Ele me olhava com os olhos cheios de horror e tenho a impressão de que eu batia nele. Não tenho certeza. Era um pequeno escravo, submisso, morbidamente dócil, desesperadamente obediente. Me afligia muito o fato dele não reagir, dele aceitar minhas injúrias, dele continuar farejando a minha companhia. Redobrei as maldades, rasgava suas figurinhas, destruía seus brinquedos.
Ele voltava como um cãozinho desagradável, olhando-me com aqueles olhos que só vi de novo nos documentos dos campos de concentração nazistas. Com certeza, eu exagero. Meu arrependimento cheio de terror deve estar, agora, acrescentando pinceladas expressionistas a esse farrapo de memória.
Não sei o que mais me afligia: se o fato dele ser aleijado, não me deixando a oportunidade de abandoná-lo; se o crescente remorso que minhas atitudes passaram a criar em mim.
Voltava a ele disposto a acabar com tudo, batia nele, ele ficava um pouco longe, de cabeça baixa e eu mesmo resolvia conversar com ele, cheio de pena. Não admitia, porém, nenhum deslize, ralhava, xingava, me sentia o dono dele.
Não me lembro de como tudo terminou. Acho que os outros voltaram e ele se foi de mansinho, não me lembro. Não o vejo mais brincando comigo, depois daquela fase escura. Talvez tenha se juntado a um grupo mais infeliz, o dos mijões, quem sabe?, sendo recebido como um igual. Que, ali, a felicidade tinha chegado ao limite mínimo. Naquele zero, não faria diferença um aleijão a mais ou a menos.
A última lembrança dessa infeliz criatura surge em mim como se eu estivesse a ver um pássaro ensangüentado sobre um mosaico cheio de fuligem.
Na véspera de minha partida, um dia, até então, como outro qualquer, fomos todos reunidos para a leitura dos nomes daqueles que seriam “desligados” do colégio. Geraldo foi chamado. Ao soar o seguinte, não entendi direito, tinha certeza de que leram Félix. Começaram a me empurrar para fora da fila, não sou eu, é ele, ele saiu desajeitado, puxaram-no, empurraram-no, voltei ao meu lugar, Geraldo me tirou da forma e ele parou sozinho, bambo, me olhando com seus olhos enormes no fundo dos buracos.
Não me lembro do resto.
Não… não me lembro do resto…
Acho que o sentimento intenso e complexo que se seguiu, apagou em mim aquele menino, dentro daquela cena. Muito tempo depois, lembrando do fato, é que sofri por ele.
Pobre menino, pobre aleijadinho, que, infelizmente, naquele momento, pelo menos, pobre daquele que não era eu.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 14

sereias, caminhões...

14. Sereias, caminhões, a felicidade da criança abrange mais de um capítulo

    É reconfortante perceber que minhas perdidas alegrias ultrapassam um capítulo. Pois, o que vier após as lembranças dessas manhãs de brincadeiras, mais parece uma noite de pesadelos.
Há lembranças daquele tempo que são tão iluminadas, tão quentes, tão mágicas, que penso, sem exagero, serem suficientes para toda uma vida. Talvez não representassem nada para qualquer outra criança. Para nós, ali, despidos de tudo que fosse considerado supérfluo, para nós, pequeninos Diógenes na marra, sem cuia para beber água e com um colchão esfarelado como tonel, para nós, bastava um pedaço de barro. Um pedacinho de pau. Um chão. Medalhas seriam surrupiadas e colocadas em fila em algum alfinete. Bolas de gude acabariam nas sacolinhas inchadas dos mirolhas. Papel para pipa e bola eram mistérios a que não tínhamos acesso, pertenciam, por uma desconhecida ordem natural das coisas, aos mais velhos. Não me lembro de ter jamais cogitado se eu teria ou não direito àquelas maravilhas. Havia de ser daquele jeito e isso era tudo.
Nós, menores, nos perdíamos esquecidos dentro de nós mesmos, desenhando no chão. Aos poucos iam sendo montados painéis primitivos, como é fácil, então, compreender a arte pré-histórica. Nada de sagrado, nada de tabu, nada de magia. Desenhávamos, porque, nalgum acaso, descobrimos que era possível desenhar. A única palavra que admito poder ser aplicada àquela situação é Identificação. De um modo ou de outro, cada uma daquelas manifestações indicava um objeto com o qual nos relacionávamos, emocional ou intelectualmente, consciente ou inconscientemente. Alguém conseguiria descobrir para que serviria aquilo?
Fala-se muito em função pragmática da arte, função naturalista, função social… Penso nos habitantes de Altamira, esfregando pozinhos coloridos nas paredes da gruta. E, agora, observando, do lado de cá do muro, aquele bando silencioso e distraído de crianças a desenhar no chão, me parece estar diante do nascimento de algo gratuito e lúdico, com intenções indefinidas e desconhecidas delas mesmas, escapando à finalidade consciente.
Desenhávamos sereias e carros. Mais sereias que carros. Primeiro, a areia era alisada, tiradas as pedrinhas, afastados os lixos. Depois, o dedo corria rápido e já se montava uma multidão de sereias. Sem cenário, sem proporção entre as figuras. Cada um daqueles desenhos era suficiente a si mesmo, não se ligava a outro e, se nalgum momento, a cauda de uma sereia esbarrasse no rosto de uma outra já terminada, passava-se por cima, havendo superposição das imagens. O que interessava era o desenho enquanto ia sendo desenhado. Terminada a figura, a ânsia de uma nova criação abandonava o filhote recém-nascido e principiava outra criatura.
O forte, porém, era a nossa cerâmica. Fazíamos figurinhas de barro. Bois, cavalos, lembro de um cachorro, lembro que algum dos amigos fez um cachorro sentado sobre as patas traseiras. Os cangurus tinham na bolsa as minúsculas carinhas dos canguruzinhos. Os elefantes tinham as trombas, ora caídas, ora levantadas sobre as cabeças. Muitos patos, sempre com as asas abertas. Patos, marrecos, gansos, cisnes, era uma ave que representava a todos.
As estatuetas eram moldadas e o barro rachava rápido. Molhava-se o dedo com cuspe, para alisar, e logo os dedos e os lábios se apresentavam marrons, pela sujeira do barro. Depois, as figuras iam para o sol, endurecer. Não me lembro de brincar com aquilo. Lembro de fazer as figuras, depois, esquecê-las.
Os nossos carrinhos, porém, transformavam todo o resto numa coisa distante e inútil. Ficávamos horas e horas moldando com capricho os nossos automóveis, ônibus e caminhões.
Com o tempo, fomos ficando mais sofisticados. Não me lembro de alguma idéia original que tenha partido de mim. Sempre imitei os outros, minha timidez tolhia completamente o impulso pessoal. A primeira marca de originalidade, foram as rodas com eixo de madeira. Fazíamos o carrinho, as rodas, e ligávamos as mesmas ao carro, através de um palito que se fixava ao chassis por meio de um pedacinho de barro. Depois de seco, era possível movimentar o veículo. Acho que Valdemar fez um ônibus oco, colocando vidros nas janelas. Seguiu-se uma série de ônibus ocos, com vidros multicores. O genial foi quando Hermes fez a frente do carro oca, colocando palitinhos enfileirados, imitando as grades de um radiador. Era um trabalho demorado e carente de precisão. Mas o resultado era capaz de encher de encantamento toda a semana.
Não restam se não dois detalhes dessas horas alegres. As pedras de fogo e o córrego.
De vez em quando toda a meninada guardava pedrinhas de fogo pra esfregar uma na outra, durante a noite. A faísca, rápida e fraca, tinha o valor de uma moeda de ouro. O barulho é que era chato. E como a mania pegava, antes de dormir era aquele martelar sem fim, aqui e ali, pirilampos sonoros, estalidos luminosos, pequenas luzes efêmeras e barulhentas. Cada um se comprazia na própria obra, aguardando com ansiedade o acaso feliz em que o esfregar produzisse uma faísca mais forte. Um berro, não sei de quem, silenciava aqueles sapos de pedra. No dia seguinte, eles tornariam ao concerto de luzes, até que o berro novamente silenciasse as pedrinhas. Dormia-se no meio de um cheiro que eu cismei em classificar como sendo o cheiro de enxofre do diabo.
E o córrego? Fosse domingo, houvesse sol, estivesse o Antonio de boa vontade, íamos ao córrego. Como ter raiva daquele homem?, que nos colocava em fila, sentido!, marcar passos!, descansar!, levando a seguir o cortejo em direção ao riacho. Assim que saíamos, eu me sentia totalmente perdido. Era um mundo imenso, casinhas avulsas, capões, montanhas lá longe. O chão seco ganhava vida, chutávamos a terra, levantávamos poeira e os mais velhos, lá atrás, ralhavam.
Numa curva do caminho havia um painel gigantesco, o maravilhoso desenho de um homem tomando uma xícara de café. Vote em Brigadeiro, todos liam alto. Que homem?, que portento?, que rei seria aquele?, que conseguira fazer um retrato tão grande e colocá-lo na beira do caminho.
O córrego era pequeno, raso e estreito. Terminava numa espécie de bacia, funda e larga. Na parte rasa brincávamos os pequenos. Na funda, o inspetor e os maiores. Nós, pelados. Eles, de calção.
A alegria era contagiante. Gritos e risos, mergulhos, pulos. Certa vez, levamos uma bola de pano e ela, para espanto nosso, não afundou. Jogamos durante muito tempo até que ela subitamente desapareceu. Em vão, procuramos aflitos. Anos e anos depois do episódio foi que me ocorreu que, com certeza, a água foi penetrando aos poucos, até que ela ficasse mais pesada e foi ao fundo, sendo levada a seguir.
Há uma lembrança ligada ao córrego que muito me marcou. De igual intensidade, só consigo lembrar de outros dois fatos: a noite na casa de Dona Leca e aquele estranhíssimo episódio a que chamarei O Acontecimento. O detalhe do córrego parece mais forte que todos, uma misteriosa garça, muito nítida, mas confusa. É possível que tenha acontecido mais de uma vez. Mas no meio de tanta neblina, minha memória só retém uma cena.
Antonio me chamou e me perguntou se eu queria mergulhar com ele. Nunca tive medo de água. Ele se agachou e pediu para eu montar nas suas costas. Tinha que segurar no seu peito, se fosse no pescoço ele não ia conseguir respirar. Me segurei firme, envolvendo-o como se fosse um filhotinho de coala. Ele era enorme, parecia uma estátua. Mandou que eu respirasse fundo. Pronto? Um estalo e eu me senti envolvido por todo um universo frio. Ruídos estranhos, seria este o canto da Iara? Eu ia soltando o ar aos poucos, era confuso e extraordinário ali. Apertei os braços, ele me dava a segurança máxima e eu sabia que não podia me soltar. Finalmente os sons desapareceram, aqueles zumbidos e melodias do outro mundo. Ele nadou comigo até a outra margem. Eu era um carrapatinho maravilhado e, mais que a sensação de atravessar a parte funda do córrego, me enchia de prazer estar ali, abraçado a ele, com meu corpo todo colado às suas costas, o sexo apertadinho, sentindo por inteiro suas carnes rijas e molhadas.
Nem é preciso que o Sr. Freud explique.

continua no próximo domingo.

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