10. As cartas
Campo do Meio, tanto de tanto.
Mamãe, ou
Titia, ou
Queridos pais:
Saudações.
Em primeiro lugar, desejo-lhes saúde e felicidade.
Em segundo lugar, gostaria que me remetessem como presente:
um pente;
uma escova de dentes;
pasta de dentes;
sabonete, se possível Eucalol;
uma bola de tênis;
um par de sapatos;
um suéter;
um calção de banho;
latas de leite condensado;
latas de doce;
e isso e aquilo
e isso e aquilo.
Toda a nossa correspondência era irremediavelmente igual. A mesma introdução, Saudações, em primeiro lugar, et coetera, e a conseqüente lista de pedidos. Aqui, havia pequenas variações no tamanho. Os pródigos esticavam a cobra e pediam sem parar, realizando-se antes da festa, gozando dos prazeres que a evocação das palavras escritas trazia a seu paladar e a seu corpo. Outros, mais tímidos, se limitavam ao estritamente essencial.
As cartas eram escritas nas salas de aula. Primeiro em papel de rascunho. Tenho a sensação de que se ficava uma semana em torno das cartas. A letra era analisada, o conteúdo era criticado. Voltava-se à carteira e se refazia aqui e ali, recopiando tudo noutro rascunho. Alguém teria dito que era proibido reclamar? Ou o silêncio unânime e covarde era dessas atitudes típicas dos fracos?, isolados pela autoridade. Quem ousaria rebelar-se contra aquele Olimpo tirânico, nós indefesos, nós famintos, nós debilitados pela carência de vitaminas, tolhidos pelo frio e, sobretudo, embebidos e impregnados do medo mais mortal. Não haveria Prometeu suficiente para prestar ajuda àquele bando nostálgico de vítimas peregrinas.
Nos campos de concentração nazistas, russos e ingleses, e em todo o resto, há de ter sido e ser pior do que ali. Mas aqueles filhotes do bode expiatório ainda não tinham, em sua maioria, entrado na pré-puberdade. Pagávamos o pecado de viver.
Não tenho noção, hoje, da grandeza do meu sofrimento. Fico a avaliá-lo, através de pedaços de minha memória, tentando entender lembranças melancólicas, recordações doloridas. Apesar disso, eu não dou, nem a mim nem a ninguém, o direito de perdoar.
Desviei da proposta do capítulo. Falava do assunto das cartas. Saudações, queria que me mandassem, a lista, e algum final bonito e agradável, onde cada Pangloss, bastardo da palmatória, repetia, sem convicção, que estávamos no melhor dos mundos possíveis.
Aprovado o rascunho, recebia-se uma maravilhosa folha de papel branco, branco e branco, como leite, como lírio, não havia nada mais puro no universo. No alto, um desenho do prédio e escrito por alguma fada ou um anjo: Instituto Profissional e Agrícola São José. A letrinha medrosa escorregava, então, transformando o papel num organismo vivo, num recado para longe, num pedido camuflado de socorro, desejando-se, ao entregar a carta para a remessa, que o recado verdadeiro fosse entendido, que se desconfiasse, que se compreendesse o que não estava escrito, que se adivinhasse de algo!
Continue lendo “garças e abutres… 10”