garças e abutres… 23

chump

23. Pirueta

    No Pátio dos Milagres não havia um rei dos mendigos?
No dormitório do Diabo, a apertada e mal-cheirosa extensão do reino da agonia, elegeram o Rei dos Mijões.
Não lhe foi dado o nome Rei, não foi mencionada a promoção, ele não foi coroado, nem com ouro, nem com espinho. Não recebeu, tampouco, cetro de pedrarias ou uma haste de cana. No lugar da púrpura, o macacão, de onde, noite e dia, escapuliam os anjozinhos da fedentina.
Foi eleito Rei por acaso, no silêncio, pela tradição. Descobriu-se, de repente, que ele mijava mais que todos, que ele vinha apanhando mais que todos, que ele cheirava pior do que qualquer um. A partir dessa trágica constatação, Pirueta passou a ser alvo de toda a atenção concentrada e neurótica dos inspetores. A palmatória o procurava sôfrega, se dez apanhassem, e ele estivesse entre os dez, e por que não haveria de?, ele apanhava em dobro.
Lembro de alguém sendo esmurrado diante dos alunos formados. Um silêncio gelado apertava a respiração de todos. Esse alguém foi, finalmente, atirado para o ar e recebido com a ponta da chuteira. Terei imaginado isto? Seria verdade que se apanhasse desse jeito? Minha cabeça mistura tudo. Quase tenho certeza de que é verdade, isto de que me lembro. E quase tenho convicção de que era ele, Pirueta, que tombava com o estômago sobre a chuteira, ou com a boca ou com os testículos ou com a espinha, faz diferença?
Lembro dele no centro da pirâmide de mijões e, para agonia de minhas recordações, eu presenciei o desmoronamento do templo. Um murmúrio, uma espécie de uivo descontrolado, uma perna quebrando a simetria, alguém rolando sobre os outros, braços e pernas emaranhados, um polvo agonizante ou em cópula aflita e a correia de Sinuca voando rápida e sibilante, serpente com língua de ferro a morder feito louca. Eles se encolhiam desesperados, refaziam a construção, mas a fivela ameaçava os olhos e tombavam novamente, misturados.
Me pergunto se é verdade tudo isto.
Meus olhos se molham, meu coração ameaça explodir e eu quero parar de lembrar.
Mas no mais profundo de minha alma, um abutre gargalha e sussurra malvado: eu estava lá. E uma garça em agonia morre, emitindo, em seu estertor, o gemido mais doloroso: ninguém tem o direito de esquecer estas coisas!
Tenho a sensação de ver o Sinuca parar de repente e lançar para a porta um olhar brilhante e cheio de sangue; o olhar do Arcanjo, no dia da expulsão do Paraíso. E nós, os pequenos, que ali estávamos por alguma sádica curiosidade, fugimos em desabalada carreira em direção às camas, onde, durante muito tempo, o coração, disparado pela corrida de vida ou morte, pulava dentro do peito, aquecendo ou distraindo do frio.
Que tipo de sonho colorido, seria possível depois daquilo?
Já falei da mão que tirou a tinta fresca da parede. Pirueta era retardado, não reparou que haviam pintado tudo de novo. Ou teria sido o medo que o acompanhava sempre?, fazendo-o tropeçar em tudo, engasgar com qualquer palavra ou urinar-se inteirinho, ainda que acordado. Aquilo era mais que medo, já criaram a palavra apropriada? Me pergunto também se ele seria, de fato, retardado. Seu comportamento poderia ter sido o resultado da constante vigilância e do constante espancamento. Penso que fosse retardado, porque tinha a cabeça enorme, o crânio se estendia para trás, como o das princesas egípcias, filhas de Akenaton. E penso mais, que foi esse aleijão que o transformou em jesuscristo, contra a vontade. Era mulato e feio. Havia muitos. Mijava na cama. Quantos! Mas aquela cabeça enorme, desequilibrada, pesada e monstruosa…
Não deviam suportar a presença daquela estranha criatura. Houve uma vez em que ele ficou longo tempo conversando com o meu grupinho e tenho a nítida recordação de que, no fundo do seu olhar, havia uma grande mansidão e sua voz era meiga. Mas aquela cabeçorra mostrenga, e ele fedia, era um pedaço de mijo ambulante, mijo seco ao sol, acumulado por muitos dias, um macacão esburacado e podre.
Como seria mijão, em latim?
    Jesus Pirueta, Rex dos Mijões!
Se o deus antigo me aparecesse, eu lhe pediria de volta o meu passado. E, diante de Pirueta, eu lhe jogaria na cara a senha sagrada:
    ECCE HOMO!

Ainda não acabei!
Quem deu ao mundo o direito de espancá-lo? Quem deu aos inspetores o direito de matá-lo? A mãe dessa infeliz criatura, que fez ao mundo?, para ter o filho chutado e sangrento até o último suspiro.
Que deus teria o descaramento de pedir perdão a esta mulher?

Não sei se foi por causa do doce de leite, o pandemônio coletivo dos intestinos e a descarga de merda, não sei se foi por isso que ele mereceu a pancadaria. Não sei se foi pela mão suja de tinta e nem sei exatamente quando o fato ocorreu. Foi malhado ferozmente. Na neblina dessa terrível paisagem de minha memória, eu ouço gemidos de cavalo, de lobo, de gato, de rato, até um último chiadinho ensangüentado. Depois, ele desapareceu. Meus amiguinhos me cochicharam baixinho que Pirueta está muito mal, na casa do padre, a hiena teria finalmente o seu festim, o urubu-rei abriria as asas e passearia contente.
Não lembro do enterro, embora exista uma imagem apagada dentro de mim. Uma garça decapitada, um abutre com o bico estraçalhado, pernas e asas esquartejadas. Há um caixão leve e vagabundo. Há passos silenciosos sobre o chão empoeirado. Há mãos trêmulas de alunos mais velhos que sustentam o leve peso daquele aviso fatal. Há um padre cabisbaixo, caminhando com o olhar cheio de bondade.
Com certeza, há também o som de um sino, tentando dizer que natalidade e funeral têm a mesma música de uma só ressonância.
Isto aconteceu em 1950. Mil, novecentos e cinqüenta anos de uma época que se diz ser civilizada. Alguns mil anos de história escrita. Não sei quantos milênios, desde o aparecimento do homo sapiens.
Homo sapiens.
Homo dementissimus.

continua no próximo domingo.

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