Alma desdobrada, cap. 23, 24, 25, 26, 27 e 28.

Alma desdobrada, capítulos 23, 24, 25, 26, 27 e 28. 

 

 023.

          depois da minha descomunal crise por causa da rejeição inesperada de Y…, ele veio a mim e temos nos encontrado de vez em quando. às vezes ele me evita os convites e às vezes ele mesmo me convida e me seduz. ele sabe que eu, sempre, estou disposto a transar com ele. não me parece que para ele seja uma transa desagradável. me parece porém que ele não se sente bem inteiramente, quando dorme comigo. ficou claro isto, no nosso papo de antes de ontem. ele se desnuda de corpo e alma e se me entrega cheio de carinho e amor. sinto muito um bebê dentro dele, necessitando de um grande abraço protetor. ele ressoa com cada toque, estremece com cada mordida, freme ante cada demorado beijo e no momento do gozo levanta gemidos que comovem. mas, passado o grande momento, não imediatamente a seguir, mas passado todo o vestígio do prazer, seu corpo se aquieta dentro de uma melancolia enrolada em silêncio. e no nosso papo, ele falou que não se sente atraído de alma para o sexo, apenas de corpo. sei, de mim, que sempre que o tenho próximo, me sobe um desejo de repeti-lo nos braços, no corpo, por dentro e por fora. fica claro, porém, também, que é um desejo sem paixão. a paixão, alucinada e embriagadora, acabou. gosto do corpo dele, amo-o com o amor do prazer, não o amor do tudo: prazer e dor, vida e morte, passado e futuro colados a cada agora.

 

024.

          assim desse jeito é que amo a Z….

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alma desdobrada, cap. 0,1, 2, 3, 4, 5 e 6.

Alma desdobrada, capítulos 0, 1, 2, 3, 4, 5 e 6.

 

ALMA DESDOBRADA

(história de uma terapia)

 

Nota: Este livro foi escrito em 1982. Eu tinha, então, 40 anos. Durante estes últimos trinta e dois anos eu sempre o reli nos dias de meu aniversário. E sempre cortava e cortava textos, por um ou outro motivo. Achava, então, que ao final, nada sobraria. Muitas vezes eu pretendi destruir o material remanescente, mas nunca tive coragem. Agora, 2014, no meio de algum tumulto interior e alguma inesperada felicidade, eu decido que ele é publicável por tão somente um motivo: há de ajudar a alguém que, como eu, sofreu ou sofre injustamente de uma culpa imposta, por força de sua sexualidade.

 

000.

 

quando eu era menino

e pensava no que vinha a ser alma,

imaginava que alma era alma penada:

alma feita de pena

e dor

por viver solta num espaço sem dono,

sem corpo,

à procura de sangue e intestinos

e nariz

e olhos de onde brotem choros.

 

alma não era além

de um branco lençol flutuante,

com dois terrores enormes e negros e sem

no lugar de olhos que não olhavam.

 

alma era aquele véu à espera

de um coração sem existir.

 

alma era o vôo

do branco

no nada.

 

depois cresci e deduzi que alma

era o mais profundo dentro do mais eu

e era e é aquilo que me existe

e que me torna

e que me faz intransferível

e que não me permite ser cancelado

nem de deixa adiável

e é o meu agora feito de depois.

muitos e muitos depois.

 

alma era e é tudo que está

dentro do lençol de pele;

o que quer fugir para qualquer futuro,

qualquer futuro que só meu;

e que quer entrar em todas as voragens

de luz

do que sou, do que sonho ser, do que temo ser,

do que tudo meu,

e até do contacto que for todo o resto.

 

e agora,

hoje,

onde,

menino de novo,

a chorar e a tremer,

menino de novo,

resolvo adotar minha velha alma;

alma penada,

um lençol de pele solto no espaço

do mundo.

eu não sou um conteúdo,

uma substância

envolta ou presa ou protegida num corpo.

 

sou meu limite,

sou minha superfície,

sou meu lençol de pele.

sou aquilo que toca o mundo

e é tocado pelo mundo;

sou o até onde posso ir.

o que está dentro de mim

não passa de um conjunto organizado

para manter intacto e perfeito e bonito

o meu de fora.

 

quando eu era menino

e pensava em alma,

tinha medo.

 

alma era coisa de ir deste mundo

para outros mundos insanos e não provados.

 

agora, menino de novo,

alma não me faz medo.

 

alma não passa de um lençol branco

cheio de dobras.

alma sou,

não tenho medo de mim.

  

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apolo e jacinto, 19

apolo e jacinto, 19.

o quê? o que você disse?
não houve resposta imediata. apenas a respiração que se acelerou, o corpo que amoleceu, o soluço que começou a abrir caminho, violentando a coragem de teófilo. sentiu-se aflito, nervoso, lutando angustiado contra algum inseto invisível de ferrão profundo e mortal.
não sei. não sei, alio. está tudo confuso… não sei o que se passa. eu… eu não quero me arrepender. não quero chorar mais. não entendo o que sinto.
vamos sair daqui. eu também tenho medo. alio moveu-se.
alio! não me abandone. eu preciso de você. meu corpo estremece, meu coração se abala, sinto a ameaça de um desencadear de horrores, mas eu vou resistir. eu quero resistir. eu preciso.
sentou-se na cama de repente e segurou alio pelos ombros, com violência. alio assustou-se, tentou acariciá-lo nas mãos…
eu não vou me arrepender. eu não vou me arrepender! tenho que me acostumar, tenho que entender isto. acontece! acontece!
ao perceber que os olhos de alio se perturbavam, que sua luz agonizava, teófilo sentiu algo rebentar dentro dele.
desculpe, alio. você também sofre. desculpe. 
não sei como vai entender o que direi. mas vou dizer. não estou bem, sinto algum aperto, algum esmagamento. mas eu estou feliz.
alio, eu preciso de você. você me assegurou uma conquista imensa.
alio tentou não sorrir. não conseguiu. o sorriso veio, como um passarinho que pousasse em seus lábios, para entoar a canção da felicidade daquelas três últimas noites.
quero que me entenda direito. não é uma conquista da sua pessoa. não é você que eu conquistei. é minha própria covardia! é minha covardia, que eu domei, aprisionei e destruí. não quero ter mais medo. é uma vitória, isto, você entende?
alio baixou os olhos.
não vou mais ter medo. está confuso agora; depois, acho que passa. acho que sei, por que está tudo tão confuso.
alio levantou o rosto. teófilo o fitou, cheio de desolação. os lábios de alio reexplodiram o balão:
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