o dia sem nome, 9

O dia sem nome, 9.

Getsêmani, à mesma hora.

É verdade, é verdade que esta é a noite da minha agonia; pensou o homem triste, enchendo o segundo copo de vinho. Esta e a noite em que não impedirei no coração a abertura da chaga de sangue, porque eis que a taça transborda; continuou, enquanto fazia descer a amarga tinta da vinha machucada. Não tenho mais nada a padecer, não tenho mais destino a suportar, não tenho mais fado a sofrer. Pensarei tudo e apagarei a chama. É a hora, é a minha hora, aquela que eu escolhi como sendo a hora da minha liberdade.
Quero cuspir fora este meu tormento e esta minha angústia. Sofrerei apenas o que determinei para sofrer, nem um minuto a mais. O limite é o terceiro copo de vinho dessa ceia mística de meu eu lúcido com meu eu louco.
O homem triste, trinta e três anos, conhecedor do homem e da sua miséria e da sua glória, não estava resistindo mais. Chegava no limiar de seu ministério. A seguir, pretendia entregar-se ao efeito de uma droga mortífera.
Mas ainda tinha tempo, queria antes escrever alguma coisa. Que seria, talvez, o seu último clamor de desesperança.
O homem triste sentiu tonteira, as coisas começaram a ficar coloridas, destacadas, suficientes, importantes. Ligou a música, Prelúdio e Morte de Amor, do Tristão e Isolda. As notas prolongadas começaram a flutuar no espaço, ele teve a sensação de que poderia caminhar apoiando-se nos agudos punhais de esmeralda que eram aqueles sons.
Isso é uma loucura, dois copos de vinho e eu já estou enfeitiçado como um deus antigo. Não quero ter pressa de ir embora.
Foi ao banheiro e lavou o rosto. O barulho da água e aquele frio transfiguravam. Enxugou lentamente o rosto, prestando atenção no desvario que era aquela música, um desvario que era o dele, inebriado, além das fronteiras do suportável, mas seguro, contido, mantido numa prisão controlada e garantida. Depois, sim, na morte de amor, seria a libertação total e apocalíptica.
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o dia sem nome, 8

    O dia sem nome, 8.

O que está acontecendo com Toicinho?, perguntou a avozinha ao ouvir aquele ganido longo e terrível. Correu ao quarto de Julek e viu o cão tremendo, com os olhos parados, agora uivando baixinho. Foi então que ela percebeu o assobio, aquele zumbir penetrante e agudo. Julek abriu os olhinhos, franziu a testa, a avozinha surgiu diante dele, curva, diminuindo, ele sentiu afundar-se dentro do cachorro, Toicinho esticou uma patinha que derreteu, o corpo da avó já era uma gelatina perdida no meio das roupas, Julek e Toicinho se fundiram num emaranhado de panos e pelos.
O sudário da morte cobriu Varsóvia e todas as outras cidades do mundo. A tela da tevê mostrou a olhos que se desmanchavam a simultânea e lenta diluição dos dançarinos. As luzes continuaram acesas, o programa continuou no ar, um programa vazio, roupas coloridas amontoadas, formando um grande círculo. A tela não se moveu mais, até quando, muito tempo depois, a luz foi cortada por se ter incendiado uma das centrais de energia.
A água corria, alguma chama lambia pedaços isolados de um grande sepulcro.
Varsóvia finalmente se apagou, depois que os últimos fogos acabaram. As noites voltaram a ser escuras, voltaram a ser escuras as noites. E caladas.
Igual, exatamente igual, em todas as cidades daquele espaço a que tínhamos chamado Polônia. Igual no resto. Onde só o vento e o frio e a chuva e a neve e o sol imenso… iluminando um grande nada…
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o dia sem nome, 7

    O dia sem nome, 7.

Tóquio, dia 15 de abril, uma hora da madrugada.

Mieco, quarenta e dois anos, separada do marido, num apertado quitineti em movimentada rua de Tóquio, Mieco entra, tranca à chave sua porta, passa o trinco sobressalente, olha as horas, uma hora da madrugada, pega com cuidado a pesada barra de ferro com que sela a segurança do seu apartamento, coloca-a nos dois ganchos e respira aliviada. Mieco é lenta. Olha novamente o relógio. Pensou que o filme terminasse mais cedo, não gostava de caminhar naquela rua àquela hora, mas não tivesse saído e não teria sono e mesmo tendo saído talvez demorasse a dormir. Abriu a bolsa e tirou um embrulhinho com um vidro de comprimidos para dormir, a venda só era permitida mediante receituário médico, mas o farmacêutico já a conhecia de longa data, era amigo de seu filho. Colocou o vidro junto de outro fechado, aquele ainda ia demorar a acabar mas gostava de ser prevenida, sempre fora muito prevenida e muito raramente a vida a tinha apanhado de surpresa nalguma cilada, porque Mieco, quarenta e dois anos, separada do marido e mãe de um casal de filhos, sempre fora muito previdente.
Mieco sabia que ia demorar a dormir. Era assim desde muito tempo, ela dedilharia conta por conta todo o rosário de sua vida, seria, como há tantas noites, menina, moça, mulher, até chegar aos dias de hoje, solitária e insone, consciência viva das noites de Tóquio, e, aí, já seria de manhã e quando ela sentisse o doce esquecimento do sono havia de acordar para esperar soar a campainha do seu despertador que imitava uma preciosidade do barroco ocidental mas que mostrava pequenino, em caracteres romanos, a inscrição tão repetida made in Japan.
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