garças e abutres… 21

mallumo kaj laksaĵo

21. Escuridão e diarréia

    Não tivesse nascido aquele deus e muita coisa desagradável não teria acontecido.
Acordei durante a noite com terrível dor de barriga. O sonho se transformava em pesadelo. Sabia que, se me levantasse, não encontraria novamente a cama. Não sei por que, estava novamente no dormitório dos pequenos. Tentei resistir às cólicas, segurar as águas que queriam escorrer com pressão de muitos vapores, não havia jeito. Levantei-me e comecei a cabecear paredes e camas, como um touro de olhos vazados. No desespero, a vontade diminuiu e alguém me devolveu ao leito. Não entendia como eles conseguiam se movimentar naquela escuridão. Não entendia também que a escuridão só existia ante meus olhos.
O sono ia e vinha, confusão, rumores, vozes e passos surdos. A cólica desapareceu e eu desapareci após ela. Acordei com muitas luzes e muitas vozes. Havia algo estranho comigo. Não entendia direito. Ao sentir o cheiro forte e horrível, foi que compreendi. Sentei-me na cama, encolhido e trêmulo e, ao sentar-me, senti que alguma coisa mole se espalhava pegajosa debaixo de mim. Todos conversavam muito alto, era um tumulto só.
Moisés, o negro simpático que mencionai nalgum capítulo anterior, brigava com um dos menores:
Você vai ver só, seu cagão duma figa. Vai ter que lavar o macacão e levar cacetada com a palmatória. É tudo uma cambada de cagão. Tive que acordar de madrugada, por causa do fedor!
Me encolhi ainda mais. Quis me deitar, desejei que o dia virasse pelo avesso e voltasse a noite e de novo o dia de ontem e eu não comeria aquele doce que fez uma revolução estúpida no meu organismo desacostumado. Aquele doce foi uma pena muito grande, imposta à força a um crente que não entendia nada de natal nem de divindade.
Seus cagões! Está todo mundo que é merda pura!
O pequenino: eu não caguei na cama…
E ainda é mentiroso! Vira de bunda! Vira de bunda!
O coitado se torceu desesperado, escondendo-se mais. Os privilegiados, que conseguiram passar pela terrível prova de comer um doce sem se borrar, os privilegiados foram se aproximando e fecharam um círculo.
Olhem só o fedor! E fica aí dizendo que não cagou nas calças! E este cheiro, e este cheiro?
Eu comecei a ficar apavorado. Sabia que, depois, alguma coisa aconteceria. Mas não interessava o depois. Interessava aquele terrível agora. A nova prova se resumia em confessar o crime àqueles farejadores de vítimas. Vigiava as zangas e as zombarias de todos, ao redor do infeliz agonizante, torto, olhos esbugalhados pelo medo. Eu carecia de coragem, se falasse a todos, se contasse que eu também estava com aquele cheiro, tudo ficaria mais fácil. O cheiro do doce do nascimento do deus.
O pequeno negava e todos insistiam. Havia já um grupo mais longe, todos peladinhos, com os macacões nas mãos, as pernas imundas da bosta que escorrera e secara. Acho que os chuveiros eram todos em baixo.
Minha voz sumida, meu suspiro, meu respirar choroso, chamou Moisés. Ele se aproximou de minha cama e se fez atento. Acho que compreendeu rápido, mas não falou nada.
Em toda a minha vida, não tenho lembrança de outra vez em que tenha sido tão humilde, tão amedrontado, para falar. A situação se marcou muito fundo na minha memória, um abutre nítido, não há neblina, um abutre ferido que sobrevoa um pântano, minha voz cheia de espanto e temor:
Eu também fiz cocô na cama.
Não sei se ouviram, de tão baixo que eu falara. O fato é que, segundos depois, já o círculo se transferira para o meu redor. O negro era grande, devia ter uns treze anos, acho, todos os outros, menores, entre sete e oito anos. Ficaram esperando a reação de Moisés, para desferir a zombaria impiedosa em cima do novo cagão. E ele foi rápido:
Assim que eu gosto! Cagou nas calças, avisa que cagou, diz que cagou! Pra que mentir?, porra! Que nem esse merda aqui, que se borrou inteiro e fica aí negando.
Voltou-se para o infeliz e todos o seguiram, me deixando entregue à minha perplexidade.
Não me lembro de quais foram os resultados da aventura desagradável. Muitos tiveram a mesma dor de barriga e, com seus seis-sete-oito anos, também não puderam impedir que o doce do Senhor virasse podridão e escorresse liquefeito durante o sono agitado. O dormitório estava um cheiro incrível. Alguém mandou que descessem todos e ficassem lá os cagões.
A cena seguinte, de que me lembro, foi termos que passar lentamente, nus e imundos, segurando os macacões nas mãos, diante de todo o colégio formado. Deveríamos ir ao chuveiro e, depois, lavar os macacões. Eu pretendia me esconder atrás de alguém, todos pretendiam se esconder atrás de um outro. Mas a fila era implacável. Caminhava com doloroso vagar, como se fosse gota após gota, nunca mais se acabava…
Tenho a impressão de que não riram de nós. É suposição minha, atual. Talvez baseado nalgum comportamento em oportunidade semelhante, talvez através de alguma reminiscência apagada e confusa. Eles deviam perceber que tinham escapado por pura sorte. A cegueira noturna, a cólica, o controle dos esfíncteres, que sabiam eles a respeito? Não. Bastava que se lembrassem da noite para perceber que tinham sido agraciados. Não deve ter havido um intestino que não tenha esconjurado aquele doce sagrado, perturbador da monotonia e da paz do arroz com feijão. Aquela deliciosa hóstia de Satanás.
Se não sentiram cólica, ainda assim acredito que não tivessem coragem para zombaria. Éramos todos dominados pelo mesmo medo, nós, o alvo da possível zombaria, e eles, os eventuais zombadores. Sabíamos todos que ali, com nossos dois inspetores, ninguém tinha vida própria.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 20

festas

20. Festas

    No final do ano, outubro ou novembro, chegou ao colégio um minúsculo grupo arisco e sorridente de menininhos de cinco anos. Sempiternas divindades! Cinco anos! De que orfanato teriam sobrado? Que freira teve que separá-los, escolhendo por este ou aquele critério, aqueles que deveriam alojar-se no meio daquela coleção da zoologia humana, ratos, cães, chacais? Que mãos de dedos magros e delicados não puderam mais embalar aquelas criaturinhas, acariciar seus rostinhos redondos, alisar a espuma do sabonete nas costas e nas coxas macias daqueles pedacinhos de gente? Cinco anos!
Alguns falavam errado, ainda. Não eram muitos, tenho idéia de uns cinco ou seis, mas deviam ser mais, porque, daqui a pouco, nas festas, eles apresentarão um teatrinho com as vogais e os sinais de pontuação.
Todos adotaram aqueles pequeninos sofredores. Era como se tivessem entrado num bando de grandes irmãos. Seus brinquedos eram respeitados, seus objetos resguardados de mãos raptoras. Acabamos por acostumarmo-nos com os pequeninos.
A partir daquele momento, eu deixei de ser um dos caçulas do colégio. Apesar disso, minha posição de protegido geral nunca foi abalada. Nunca senti ciúmes dos pequenos, como sentia de Marquinhos, por exemplo, tudo continuou como antes. Seria por causa das aulas? A geografia e as tabuadas…
É estranho que estas figurinhas de porcelana se tenham marcado dentro de mim apenas por um episódio curto, mas muito significativo. No natal, eles apresentaram um teatrinho para todos. A imagem deles permaneceu assim dentro de mim, fantasiados de letras e sinais de pontuação.
Fomos colocados em forma, cobrir, marcar passos, descansar… As professoras chegaram nervosas, alguém deu o sinal, começou o teatrinho.
O pequeno bando passarinho foi entrando. Eu estava extasiado. Eles tinham pendurado sobre o peito uma folha de cartolina muito branca. O primeiro era a letra “a”, avançou e falou um versinho. Seguiram-se o “e”, o “i”, todas as vogais falaram. Depois, foi a vez dos sinais de pontuação, a vírgula, o ponto… O ponto de interrogação me marcou muito, não lembro se pelo versinho, se pelo desenho certo, a curva bem feita, ou se pela criança que o representou.
Não sei como reagiram os outros. Eu ficara simplesmente maravilhado.
Era dia de Natal. Eu já sabia que papai-noel não existia. Se alguma coisa de mais brilhante ou luminoso estava no ar, eu não percebia. Não se ouvia canções diferentes, nenhum som além dos gritos cotidianos, além da rotina da gíria e dos palavrões. A única diferença que havia, era dizerem que o dia era dia de natal. Natal era o dia em que ele nasceu, aquele que morava na igreja, estendido dentro dum caixão de vidro, com um vestido roxo, cabelos de verdade e olhos – ainda bem – fechados.
Também sabia, mais ou menos, o que era morrer. Em Manhuaçu, aconteceu a mais remota passagem de minha vida, de que tenho lembrança: participei do enterro de um gatinho, organizado pela Zélia. E o mesmo tinha acontecido com aquele homem nascido no natal. E, todos os anos ele voltava para ser crucificado com pregos que arrebentariam a mão da gente.
À tarde, o sino tocou. Agora, sim, devia ser natal. Porque o ar estava cheio de um bonito som de bronze que demorava a sumir, ia baixando devagarinho, outro martelava forte e a música monotônica continuava. Aquele sino à tarde era muito triste. Deixou de machucar o coração, quando alguém gritou que iam distribuir doce de leite.
Doce de leite!
O doce de leite era um sorriso, era um sino sem tristeza, era um olhar de mãe-viúva do outro lado da vidraça do trem, sem lágrimas. Sei lá. Era doce, era gostoso, desmanchava-se lento, era inversamente proporcional àquela gosma grossa e fétida que tomávamos para as lombrigas. Enquanto que a gosma descia para ficar instalada dentro de cada um durante dias seguidos, o doce de leite, ainda inversamente, se diluía depressa e tudo não tinha passado de um sonho enfeitiçado.
Aquele doce era uma grande mentira.
Meu coração tropeça ao escrever.
O coração do Prometeu raquítico não resiste a todas as bicadas.
Só direi que, no resto da tarde e nos confusos sonhos da noite, as luzes e os sons pareciam de um mundo fantástico, onde habitariam as irmãs, as sereias, os carros coloridos, a mãe, a vó, os sabonetes, os cobertores…
Aquela mentira durou muito pouco.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 19

patchwork

19. Retalhos

    Há um bando aflito de pequenas lembranças me incomodando, exigindo registro. São pequeninas garças inquietas, inofensivas, apagadas. Batem-se dentro da gaiola da minha memória e, se eu as solto, elas partem numa vertigem.
Ou partem, simplesmente.
Será como uma colcha de retalhos; pedacinhos de um momento qualquer, por um motivo ou outro, inesquecível.
Lembro de um sonho apenas. Estou no meio de toda a família, caminhando no alto dum morro, cuidando para não escorregar. Sei que minha mãe está ali, não a vejo, porém. Sinto grande alegria por que estou em Manhuaçu, isto significa, então, que saí do colégio. De todos os presentes, só consigo ver a Zélia, que sorri e me dá a mão. Ela tem franja e veste um vestido curto, como numa das pouquíssimas fotos da família, o pai, a mãe e dez dos onze filhos; o mais velho já tinha casado. De repente, encontramos, no declive, um pé de tomate. Rodeamos a planta, de mãos dadas, como se brincássemos de roda ao seu redor.  Mas tudo começa a se apagar. Lembro do desespero enorme que senti, ao acordar. Aquele dia foi de uma lenta agonia. Fiquei esquecido de tudo, perdido por ali, sentindo alfinetadas confusas no coração, um aperto na alma, tanta coisa…
Um dia um marimbondo me mordeu na nuca. Foi um desespero. Senti que havia algo grudado, passei a mão e o bicho saiu voando, amarelo e preto, tinha tantos!, me deixando com o pescoço em brasa. Passava água para esfriar, o ardor durou todo um dia.
Uma vez, eu estava brincando e chegaram Geraldo e um amigo negro. Esse negro é alto e magro, ah, já sei, ele ficava no beliche de baixo e foi sobre ele que eu urinei, enquanto dormia. Eles me disseram para eu rezar pra gente sair de lá. Eles já tinham pecado, não adiantava muito, mas eu era inocente,
    e se alguém quiser molestar um inocente…
e se rezasse com fé, conseguiríamos sair. Eu tinha, sim, um tipo de inocência, pois perguntei se era para rezar como nos santinhos, de mãos postas e olhar perdido para o alto. Disseram que eu rezasse como quisesse, o importante era ter fé. Eles se foram cheios de esperança e eu me perguntei, perplexo, o que seria necessário fazer, para ser pecador. Comecei a rezar todas as noites, para constatar um horror: eu não tinha fé. Tinha medo. Se eu tivesse fé, rezaria a oração até o fim. E eu sempre me distraía, olhando para os lados e ouvindo as conversas.
E o que dizer das marchas? Atenção! Em forma! Cobrir! Marcar passo! Mar… char! Alguém tocava um bumbo e todo mundo começava a marchar. Não havia um aluno de apelido Passarinho? Não era um pouco retardado? Não era ele que marchava fora do padrão?, ambos os braços para a frente, para trás, para a frente…
De uma feita, descendo do dormitório, aquele bando, senti algo caindo na minha cabeça. Passei a mão e cuspi enojado. Alguém escarrara para o alto e caíra em cima de mim. Faziam muito isto, mas eu nunca fora premiado. Passei muito tempo debaixo da torneira, demorou para descolar-se a brancura gosmenta e esverdeada.
Não falei das tentativas de fuga. Às vezes, desapareciam para sempre. No mais freqüente, eles eram capturados, apanhavam “pra burro”. Uns, foram encontrados com enxada na mão, chapéu de palha, mas não tinham trocado o uniforme. Alguém comentou:
São uns patetas! O principal, eles não trocaram.
Mas, quando sumiam para sempre, viravam heróis.
Não é verdade que um deles foi encontrado muito e muito longe? Tinha pegado um trem, tinha conseguido roupas, tanta coisa difícil! E lá estava ele, de volta, rodeado de ouvintes, todo machucado e de mãos inchadas, explicando os sucessivos detalhes de sua aventura frustrada. Um velho índio, contando aos curumins inexperientes e medrosos, como ele quase conseguira chegar aos domínios da mãe-lua.
Certa vez, eu, Valdemar, Bojão, Zé da Silva e Hermes, falávamos de assombração. O dia terminava e já começava a escurecer. Tinham dito de garfos e facas que dançavam no refeitório, alguém tinha visto. Ou um saci, enrolando fumo. Um de nós observou que, no muro, à nossa frente, havia o desenho grande de um diabo, uma carranca feia com chifres e cavanhaque. Quem falou, primeiro, que o desenho parecia olhar pra gente? Quem continuou, dizendo que ele ria? De quem partiu a idéia de que ele se mexia na parede? E eu juro, que ele começou a se mexer. Nossos pobres corações entraram a pular, ficamos brancos e, após um ruído qualquer, o desespero nos fez correr covardemente até um grupo de grandes. Um de nós falou que a máscara do diabo estava se mexendo. Sinuca liderou, seguimos atrás, cheios de espanto, e mostramos o desenho imóvel e idiota. A zombaria foi feia. Eu morria de vergonha e já não sabia se o diabo tinha ou não rido para mim, mexendo a carranca.
Falei das redes que faziam? Com fios de carretel, uma espécie de filé, era preciso uma varinha. Teciam aquela renda aberta, com a qual faziam uma rede para prender o cabelo para trás. Eram obras de arte. Aprendi a tecê-las, mas esqueci.
Estas lembranças são estranhas. São esfarrapadas demais. Arrebentadas. Cacos de vidro…
E não quero me esquecer de falar de música. Cantávamos muito pouco, algumas canções infantis, pouquíssimas. Mas, sempre havia os hinos pátrios. Mais tarde, eu os aprendi de verdade, participando de corais escolares. Daquela época, fica na minha lembrança apenas a idéia de que todas as músicas do mundo eram muito tristes. Machucavam por dentro. E me tatuaram com uma dúvida que carregarei para sempre no coração: será que toda a música, pra ser bonita, precisa mesmo ser triste?

continua no próximo domingo.

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