garças e abutres… 09

la kontraŭvermaĵoj

9. Os purgantes

    Há um aluno, negro e esbelto como estátua africana, chamado Abraim. Abraim ficou na minha memória por dois motivos. Recebia muitos bagulhos. Em qualquer remessa, ouvia-se o nome dele e ele abria o pacote diante da assistência admirada, príncipe do Congo exibindo despojos de guerra após uma vitória. O segundo motivo pelo qual me lembro dele, era trágico o suficiente para anular a quantidade de presentes. Seu nome era o primeiro a ser berrado para tomar o purgante.
Lembro de dois purgantes, é possível que tenha havido outros.
Abraim iniciava a fila que relutava em seguir, como um bando de bois no matadouro, conscientes de seu destino, medrosos e lentos, para que o sacrifício demorasse o mais possível. Ah! uma espetada no bulbo, a não ser pelo fato de terminar com a existência, transformar num zero, não haveria de ser tão horrível. Lembro do filme sobre os Irmãos Naves (Luís Sérgio Person), goela escancarada à força e o mel denso e negativo adentrando e envenenando a vontade de viver. E lembro também de uma frase de Tagore
“O homem, quando animal, é o mais terrível dentre os animais”.
Aquela peçonha não precisava ser tão horrível. Era, na certa, só podia ser, uma medida de reforço de autoridade, para anular-nos, para dizer-nos durante muito tempo, quem é que mandava e quem devia obedecer. Por que, por dias seguidos, ficava-se à mercê de moscas e de náuseas.
Eram algumas garrafas e um copinho. Dois inspetores, nunca me lembro dos dois juntos, outra vez. Um deles entornava no copinho o óleo grosso e fedorento e esticava a mão pra vítima; no caso, o Abraim era o primeiro. Se houvesse indecisão, um passo atrás, atropelando a fila às avessas, ou se houvesse lentidão em pegar o copinho, o outro inspetor soltava a palmatória para bater onde batesse. Por isso, ninguém titubeava. O pior, que viesse depois, era preciso coragem pro ato. O espartano tapava o nariz, ainda o pobre do Abraim, e tragava rápido o medonho néctar. O corpo se torcia, recusava a doação, comprimia-se e se arrepiava, mas o filho da puta do líquido escorregava lento, arruinando todo o interior do pobre Abraim, de olhos esbugalhados e lábios cheios de gordura. O óleo chegava ao estômago e se acomodava, era como um inferno líquido, um pecado derretido.
Coitado do Abraim! Parecia que a carga dele era maior. Mesmo sabendo que ele já tinha suportado o suplício, que ele estava livre, que a fila continuava a andar e que a vez do sacrifício estava chegando, ainda assim, tinha-se pena dele. Ele era o primeiro daquela fila desesperada, devia ser terrível ser o primeiro daquela fila.
Os bois iam andando lentos, o matadouro que não matava mas dava uma idéia do que seria a eterna danação, se danação eterna existisse. As náuseas, parece que se misturavam, e já era uma só náusea, um só desejo de vômito, um só arroto que subia e arruinava com a chama eterna que alguns teimam em colocar acesa dentro do ser humano. Pode ser. Pode ser. Mas naquele momento horrível, a chama se apagava, com certeza. Tudo era apenas um fedor insuportável dentro da gente.
O desespero continuava, muito tempo. A noite era de ruídos terríveis, não se dormia. No dia seguinte o veneno começava o efeito, transformando em água podre o que devia ser intestinos e vísceras. Não havia lugar a que o cheiro não chegasse. Os vasos não descansavam e alguns entupiam, transbordando de merda rala, milhões de cadáveres putrefatos, concentrados num pedaço de louça.
Quem, pelo menos, não cheirou aquilo, não precisa deixá-lo escorregar goela adentro, não, quem não cheirou aquela mistura de desespero e morte…
não sabe do que estou falando.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 08

medalhas, agulhas...

8. Medalhas, agulhas e outras preciosidades

    Uma vez, cavoucando o barro, encontrei uma medalha de Nossa Senhora. Alguém falou para mostrar pro fulano, nem me lembro de nome, nem de cara. Num repente, eu estava diante dele, e ele mostrou um alfinete com medalhas enfiadas. Achei-as lindas. Ele simplesmente pendurou a minha e disse que era dele, tinha perdido. Evidente que não acreditei na mentira. Não pude fazer nada.
De onde surgiam aquelas medalhas que apareciam? Quem conseguia alguma, guardava-a com o maior cuidado mas elas acabavam todas, inevitavelmente, no alfinete dele. Ele era grande, criou a fama de ser o dono das medalhas e, às vezes, exibia a coleção.
Nunca mais achei uma medalha, nem que fosse de um santo inferior. Pensava em areá-la e escondê-la, resguardando-a da depreciação que acarretaria aquele fatídico alfinete.
Assim como medalhas, tinha-se pequeninas prendas, guardadas com um vigor inexcedível. Mesmo assim, os objetos passavam de dono a dono.
Sei que alguns tinham dinheiro. Era um mistério o aparecimento de dinheiro, como era um mistério a presença de objetos que não fossem mandados de presente pelos familiares de alguns. Tenho, apagada, a lembrança de algum grande falando que pediu, através de um buraco do muro, a um guri da cidade, para comprar cigarro.
Bem. As prendas valiosas consistiam de pentes, escovas, alfinetes, barbantes, pedaços de pano. Os panos eram desfiados para que se usasse os fios em costuras. Uma vez, um felizardo conseguiu uma toalha de banho, um pedaço pequeno, e nos mostrava que puxando um fio do tecido felpudo, ele saía e saía e saía e ficava uma linha enorme. Parecia mágica. Era, de fato, uma posse valiosa.
Durante um período, alguns deles tiveram estampas do sabonete Eucalol. Dentro do pacote de sabonete, vinha uma gravura num papel encorpado. Que coisa mais maravilhosa! Geraldo me chamava para ver, eu entrava no grupo dos grandes e o dono as exibia em sua própria mão, ninguém tinha o direito de tocá-las. Lembro de veleiros, lembro de soldados de todas as épocas, havia até espadachins! Maravilha, maravilha! Vinham em séries, não me lembro de detalhes, lembro de cores. Cores sublimes, visões inesquecíveis.
Nós, os pequenos, nunca possuíamos nada, pois o objeto acabava por desaparecer. Quando, mais tarde, fosse encontrado na mão de algum grandão, já era tão tarde, fazia tanto tempo, que o direito de reclamar já tinha esmorecido. Se reclamasse, também, acabava levando porrada.
O único que conseguíamos ter, eram as agulhas. Ah, as agulhas! Que paciência, que precisão, que artesanato! Tentei fazer uma, mais tarde, para mostrar para a Ângela como é que as fazíamos, já morando em Vila Isabel; só pude constatar minha imperícia.
O mais importante, para a confecção da agulha, era o tempo. Tínhamos tempo de sobra. Fiz mais de uma agulha. O arame aparecia por um daqueles milagres. Conseguido o arame, de grossura variável, após dobra e redobra, ele era cortado no tamanho desejado. A seguir, amolava-se sua ponta numa pedra lisa. O passo seguinte era arranjar um preguinho e eu brado, Senhor! Senhor! dizei de onde vinham aqueles preguinhos! Uma vez conseguido o preguinho, começava-se a amassar o outro lado da agulha. Era preciso ficar bem chata. A pedra tinha que ser especial, sem pontas, para não destruir o metal. Bom. Depois de amassada, dava-se uma batida de leve com o preguinho, na parte achatada. Virava-se e se fazia o mesmo do outro lado. Assim, o preguinho era batido de um lado e do outro com precisão, com paciência, com calma. Geralmente ele entortava a cabeça da agulha e era necessário bater novamente com a pedra arredondada. Até que, finalmente, o furinho aparecia. Então, era só limar a cabeça da agulha numa pedra, para tirar a aspereza.
Era uma jóia preciosa. A gente a enfiava na alça do macacão ou sobre o peito, exibindo a arminha frágil.
Restam santinhos de papel, cacos coloridos de vidro, caixinhas de fósforo vazias, ah! estas eram indispensáveis para a coleta de gafanhotos.
Davam o nome de bagulho ao pacote com presentes que alguns pais mandavam. Eu disse que recebemos um, certa vez. Minha mãe mandou diversos, recebemos apenas um. Os bagulhos enchiam de poder aquele que fosse premiado com a remessa. Os pedidos eram os mesmos: pente, escova, pasta, sabonete, perfume, leite condensado e bola de tênis. As bolas de tênis me deixavam encantado, porque descobrira que elas tinham dois desenhos iguais que se encaixavam um dentro do outro, era um milagre!
Lembro que alguém, um dia, me deixou dar uma chupada no furo da lata de leite condensado, Ganímedes jamais serviu a verdadeira ambrosia. Lembro, também, que um dos grandes me mandou fazer a mão em concha. Estávamos num círculo de contempladores e todos me olhavam com atenção, era um privilégio digno do favorito do imperador. Geraldo me vigiava sério, o Creso despejou na minha mão um pouco de loção para cabelo. Tudo silenciou ao redor. Eu sabia que era para passar no cabelo. Queria primeiro cheirar. Ao aproximar a mão do nariz, porém, levantou-se uma agitação em uníssono e alguém gritou bem alto:
Não é pra beber, é pra passar no cabelo!
Levei um susto, estremeci por inteiro, cheio de vergonha, e molhei rapidamente os cabelos. Todos riram, invejosos, mas maravilhados. Detestei lembrar do acontecido durante muito tempo.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 07

overalls

7. Macacões e pés no chão
    Não sei se minha recordação me trai, não tive mais que dois macacões naquele período. Não, não, agora lembro, eles eram trocados e iam para serem lavados. Parece, aliás, que não tinham dono. Após o banho, acho que semanalmente, recebia-se um bolo de pano e vestia-se. Ora curto, ora apertado, ora farto como roupa de astronauta. Algumas vezes a gente trocava a roupa com um outro qualquer. Um, mal podia respirar, com a roupa desabotoada, e o outro valsava dentro do enorme saco de pano que o envolvia. Uma troca rápida e estabelecia-se simultaneamente o conforto e a fachada.
Alguns macacões estavam cheios de faixas escuras que eram, na verdade, falhas de fio. Isto acontecia porque a gente puxava fios das roupas, para usar nas nossas costuras cotidianas.
Falei de banhos e esqueci de um detalhe gostoso de lembrar. Estávamos todos nus, o piso era enorme, de cimento liso, os chuveiros rodeavam aquela área inteiramente molhada. A gente mergulhava no chão, escorregando alguns metros. Batia-se em pés, derrubava-se gente, era um trânsito louco. Volta e meia, vinha um corpinho molhado, escorregando no cimento. Descobrimos, apenas os pequenos fazíamos isto, descobrimos que em diagonal o trajeto era maior, o corpo deslizava por mais tempo. Mergulhávamos de frente, imitando os gestos de um nado de braçadas.
Os banhos no inverno, ao contrário, eram dolorosos. Entrava-se na água gelada, escorregava-se para fora, mas o inspetor nos mandava de volta, examinando a tortura de um por um.
Eu tinha, como muitos, sete-oito anos, pouco mais, pouco menos.
Que me lembro eu, ainda, a respeito de macacões? Houve um dia em que, formados, ouvimos o comunicado de que, a partir de então, os macacões seriam marcados, não mudariam de dono. O meu era novo e azulzinho, de um maravilhoso azul todo novo. Bordei as iniciais nalgum lugar. Havia gente que bordava bonito, letras certinhas e caprichadas. Outros alinhavavam algo parecido com letra, bastava um puxão e tudo desaparecia. O meu ficava no meio termo.
A glória durou uma semana. No banho seguinte, ao voltar à fila de macacões, o meu não estava lá. Procurei inutilmente. Apanhei algum que sobrara, esbranquiçado, cheio de falhas nos fios, havia de se ter costurado muita sacola com aquelas linhas. Muito tempo depois, encontrei alguém com minhas iniciais. Um dos amigos percebeu meu nome e me chamou e nós cercamos o ladrãozinho. Ele se desculpou, dizendo que tinha vestido aquilo naquela semana, por terem sumido com sua roupa. Talvez nem tivesse sido ele mesmo. Nem adiantava mais querer fazer a troca. O pano não era mais tão azul, já devia haver marcas de fio, tirado para as costuras e os bordados necessários.
Durante todo aquele tempo, não calcei um par de sapatos. Lembro que, ao me enfiarem um par de sapatos pretos, na volta, já no Rio, sentia dores incríveis.
Na verdade, não tenho certeza se durante todo o período estivemos descalços. Acho que sim. Talvez tamancos, quero me lembrar de tamancos e não consigo. Não, não havia tamancos. Indo pro córrego, lembro, levantávamos poeira com os pés e os maiores ralhavam.
Que interesse teria lembrar se ficávamos descalços ou não durante todo o tempo? É que um episódio me lembra dos pés no chão.
Estamos em fila para ir para o dormitório. Um negro, que eu insisto em chamar de Moisés, confundindo tudo e misturando com um negro Moisés que me protegia, um negro começou a gritar para os companheiros, olhando para mim e para alguns amigos.
Estes branco azedo! É branco, mas é porco! Vão pra cama sem lavar os pé. Depois vem falar dos preto. Sou preto mas lavo os pé todo dia. Essa leitaiada azeda…
Envergonhados, fomos tirar a terra que grudara nos pés, naquelas bicas de beber água.
A lembrança do fato criou em mim a noção de que, antes de subir, lavávamos os pés. Era verdade que, após a lavação, subíamos descalços. A sujeira se agarrava à sola, novamente. Mas a parte de cima ficava limpa.
Pergunto: qual teria sido a temperatura mínima que suportamos nos dois invernos que passei lá?
Cueca, camiseta, chinelo, toalha de banho ou de rosto, lençol, travesseiros e, nalguma ocasião, cobertor, que luxos distantes e inatingíveis! Só Marquinhos, com a tuberculose. Só eu, numa única noite redentora, quando dormirei na casa de Dona Leca.
Às vezes, recebíamos dos parentes, pasta de dente e sabonete. Aliás, lembro que recebi uma vez apenas, mas eles alegaram algumas remessas. Lembro da pasta nova, comida com carinho, do sabonete perfumado e da escova que pendurei no pescoço para não ser roubada. Depois de um tempo ela apodreceu com cheiro de urina, acho que o barbante era comprido demais.

continua no próximo domingo.

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