garças e abutres… 06

la manĝo

6. A comida

    Geraldo sempre disse, sorrindo, após termos saído do pesadelo, que a comida era arroz com feijão no almoço e feijão com arroz no jantar. Depois, era fácil rir. Mas ele não mentia.
De manhã nos davam um prato de mingau de fubá. Não tenho idéia sobre nada além disto. Quantas vezes o mingau tinha um insuportável gosto de querosene! No começo, nauseante, mais tarde, horrível, depois, forte e, finalmente, apenas um gosto de querosene. Numa feita um aluno falou que o inspetor geral visitara a cozinha e deu com o cozinheiro babando na panela de mingau. Devia ser exagero. Tenho a impressão de que era exagero. Bastava o gosto de querosene. Pergunto agora: aquele gosto de querosene era imperícia ou malícia? Acontecia por acaso, ou era uma provocação para diminuir a capacidade de nossas resistências? Com certeza, houve algum acidente. O cozinheiro era um velhinho, lembro dele por causa dessa baba. Será que foi a lembrança do aluno acusando-o, que me fez imaginar que ele era um velhinho?
De segunda a sábado, no almoço e no jantar, arroz com feijão. No domingo aparecia nos pratos (eram pequenas bacias de alumínio, as dos grandes, limpas e brilhantes), aparecia nos domingos um pedaço de carne de carneiro do tamanho de um pequeno limão. Cada semana matavam um carneiro do padre, falava-se. Todo domingo, acho que inevitavelmente, lá estava o pedaço de carne do tamanho de um limãozinho. Pelo tamanho, daria para calcular o número de alunos? Muito complicado!
No meio do arroz sempre apareciam sementinhas redondas, nojentas e de gosto intragável.
Alguma vez, foi servida sopa de macarrão. Eram macarrões grossos, soltos na água e algum infeliz, um dos grandes, gritou alto que não comia aquilo porque, da última vez, tinha encontrado dentro de um pedaço de macarrão, um ovo de aranha. Como ele sabia que era de aranha?, pergunto, agora. Era preciso, com a colher, cortar o macarrão e procurar o ovo; não achando, mordia-se lentamente, temeroso de ouvir o estalo. Felizmente a sopa era rala e era rara. E veio um dia, em que alguém falou que a história do ovo de aranha era para que a gente não comesse a sopa, que os grandes comeriam.
Bem. Em algum dia de festas nos deram laranjas. Alguém gritava, apareciam bacias cheias de laranja, formava-se a fila. Cada um recebia sua laranja e todos se espalhavam, descascando com os dentes e machucando os lábios com o sumo ácido. As cascas davam muitas brincadeiras, fazíamos óculos, espremíamos nos olhos dos desavisados. Fazíamos com que a laranja durasse o máximo de tempo, ela era contemplada, era lambida, era amassada com a língua e os gomos eram finalmente engolidos, com gosto de dó. O resto do dia era luminoso e cheio de canções. O milagre ocorreu duas vezes, naqueles aproximados vinte meses. Uma laranja! Com certeza era dia santo. Quais teriam sido os dois santos milagreiros? Não foi, disso eu sei, o nascimento do deus. Não! Para esse nos reservaram um doce de leite, pro qual eu reservei um capítulo mais pro final, amargo e doloroso.
Lembro também das mangas. Não sei se muitas, não sei se poucas. Na verdade só lembro de uma. Tenho noção de que este fato se repetira, mas cena nítida mesmo, só me lembro de uma. Alguém ganhou uma manga. Fechou-se em torno dele um círculo de contempladores e o eleito lambia-se de prazer, lentamente, com os lábios e as mãos amarelos. O mais esperto gritou, quando for jogar fora dá pra mim e outro rapidamente e você me dá quando não quiser depois eu depois eu e depois eu e estava feita uma espécie de fila. Cansado de gozar sozinho, o dono da manga passava o fruto com fiapos ainda cheios de suco e o segundo sacerdote continuava o culto, babando-se no centro da missa, enquanto o sacerdote-mor se afastava para lamber longe os seus dedos manchados de ouro. O terceiro já pegava fiapos mais brancos, ainda molhados. Durava pouco para ele, porque os olhos do vizinho, o próximo da fila, se arregalavam diante de tanta traição. Ele passava o caroço esfiapado. Branco e já ressecado. Restaria ainda um caldinho? Certamente que sim, porque o seguinte sorria e sugava fundo a própria saliva.
Teria minha memória apagado alguma folha de alface ou um pedaço de batata? Não. Sei que nunca comi nada diferente enquanto estive lá. Se tivesse ocorrido o prodígio, ele se marcaria como letras de fogo na pedra do barbudo. Porque, assim como há as duas laranjas e as mangas, avulsas, há os pedaços de mandioca. Nunca comemos mandioca cozida; melhor dizendo, não me lembro de termos comido mandioca cozida. Mas me recordo que algum aluno, ajudante do cozinheiro, costumava levar para fora, pedaços estragados de mandioca crua. Era uma polpa branquinha, com pequenos veios roxos, ao longo da porção. Ganhei dessas mandiocas, vez ou outra. Parece que um da turma do Geraldo andou ajudando na cozinha. A gente comia a parte branca, com cuidado, era de um doce desagradável, e se, por acaso, mordia o roxo, sentia logo o amargo e azedo na língua. Quando a carne branca terminava, começava-se a mordiscar os pedaços menos estragados, acostumando-se aos poucos com a mudança de paladar, até que, finalmente, comia-se todo o resto, roxo e de gosto ruim, com cara de nojo.
Afora isto, havia o hábito das sacolas de comida. É muito complicado explicar. Vou tentar.
A gente tinha agulhas. Contarei daqui a pouco como elas eram feitas. Por ora, fica dito que se tinha agulhas. Costurava-se pequenos pedaços de pano (de onde surgiriam? deus meu!), usando-se fios desfiados dos macacões, e se fazia uma pequena sacola. Com requintes. Ela tinha uma bainha e por essa bainha passava-se um barbante que apertava a boca do saquinho e servia de alça. Nunca cheguei a fazer isto, porque o resultado era repugnante. A sacola ficava pendurada na cintura, dentro da roupa. Durante a refeição, era preenchida com sobras de comida. E assim ficava ela, até a hora de ir para o dormitório. Os movimentos do andar, misturavam tudo e transformavam o arroz e o feijão numa pasta marrom, de cheiro muito forte. Era isto que eles comiam quando escurecia. Tenho certeza que esta comida, ou a sacola que a continha, tinha, na gíria do colégio, um nome especial. Não me lembro da palavra.
Havia uma história a respeito disso. Um dos alunos enchera demais a sacola e após a refeição todos foram postos a marchar. O bolo ia e vinha, alguma coisa enorme saía e entrava entre as pernas, onde o aluno não deveria ter mais que as carnes naturais do local. O inspetor mandou-o sair de forma, tirar a calça e, após o vexame diante de todo mundo, teve que apresentar as mãos à palmatória. Aquela palmatória era cheia de furinhos, para doer mais. Ela funcionará muitas  vezes.
Na Roma antiga os alunos apanhavam com palmatória:
    Non laboras, vapulas.
Isto foi, no mínimo, há mil e novecentos e tantos anos da nossa civilização. Civilização…
Não fica, se não, um acontecimento, a registrar ainda. Falei da fila de torneiras onde se bebia água e se lavava os pés.
Houve uma ocasião sem água. Alguma coisa aconteceu e a água deixou de correr. Quem descobriu que as caixas de descarga tinham água? Era dificílimo trepar naquelas paredes dos sanitários. No começo a gente ainda se lembrava de recolocar a tampa. Depois, não mais. Bastava escalar a parede e beber com uma das mãos em concha enquanto com a outra se segurava para não perder o equilíbrio.
Era uma água quente, por causa do sol, amarela e com gosto de ferrugem. Ou, com cheiro de ferrugem.
Na guerra, também se deve beber daquelas águas.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 05

a casa

5. A casa

    O pátio era enorme. Tinha a impressão de que poderia me perder por ali com a maior facilidade. Era possível, por exemplo, desenvolverem-se simultaneamente duas ou mais peladas, as dos pequenos e a dos grandes. E, se eu os olhava correndo, eram como espalhadas estrelas perdidas no céu. O pátio era enorme.
O muro que cercava tudo me parecia muito alto, mas era facilmente escalado por alguns deles. Houve uma época em que em cada canto do muro ficava de plantão um dos alunos maiores, para evitar que alguém fugisse. Vigiavam orgulhosos, no desempenho do ofício muito infeliz.
Os dormitórios, parece que no alto. Tenho a impressão de escadas a subir. Então, em baixo deviam ser as salas de aula. Havia uma cozinha e um refeitório. Comia-se em pé ou sentado? Entrávamos em fila e eu imagino bancos compridos ao longo da mesa, estaria eu confundindo com o banco de minha casa em Manhuaçu?
Separado do casarão, havia um grupo de cômodos enfileirados, contendo cada um, um vaso sanitário. Sem tampo. E não havia porta. Nunca me ocorreu sentir vergonha, enquanto estava acocorado no vaso. Ao contrário, podia-se acompanhar o desenvolvimento das brincadeiras. Eu me pergunto agora, se todos os cômodos seriam sem porta.  Que posso saber? Muito provavelmente, alguns eram sem porta e, por causa da quantidade de alunos, acabavam sendo usados pelos pequeninos.
Não sei se era junto a esses cômodos, que se enfileiravam as torneiras. Ali se lavava o rosto, bebia-se água e se lavava os pés antes de subir para os dormitórios.
Havia um grande banheiro de chão de cimento bem liso e cercado de muitos chuveiros. Entrávamos na fila, do lado de fora, tirávamos o macacão de brim, entrávamos. Os macacões conservavam-se em fila, à espera. A água era fria, não me lembro de sabão, toalha não existia. Voltávamos, a fila de pano ganhava vida, se agitava, era rapidamente recheada por corpos molhados e risonhos
Não quero me esquecer de falar das colunas que iam ao longo do casarão e formavam uma varanda entre o pátio e a casa. E ao longo das colunas, unindo-as, uma mureta larga e muito baixa, que acabou virando banco. Sentávamo-nos sobre aqueles bancos de cimento e ali brincávamos muitas vezes. É, sobre tudo, por causa de minha dor de ouvido, de que falarei mais tarde, que me lembro daqueles murinhos.
Numa época qualquer, houve uma reforma em toda a construção. As salas de aula foram pintadas e sobre os portais foram escritos nomes de santos. Não sei se aumentaram o pátio, se mudaram o muro, se derrubaram alguma coisa, não sei, não sei, não sei. As salas foram pintadas e algo mais ocorreu, eis tudo.
Eu me lembro da reforma por causa dos nomes escritos sobre as portas e porque uma parede recém-pintada apareceu com a marca de u’a mão. Procurou-se o culpado e não foi difícil descobrir quem estava com a mão suja de tinta. Não falarei da pena. Não é justo fazer sofrer novamente, aos poucos, aquele corpinho de há muito desmanchado no abandono da morte. Ele há de sofrer muito nalgum capítulo; que sofra tudo e se dê ao seu eterno descanso, no mesmo capítulo.
Está na hora de levar esse meu povo a dormir.
Todos em fila. Lembro de orações berradas em uníssono. No final, o inspetor

    Louvado seja Nosso Senhor
e todos
    Para sempre seja louvado.
Louvado seja Nosso Senhor
Para sempre seja louvado.

Quantas vezes? cinco? dez?
    Louvá sê Nossinhô
Pra sem sê louvá.

Vinte vezes? trinta vezes?
    Louvá Nossinhô
Prasemselouvá…

Por que se corria tanto? Seria a mesma coisa todos os dias? Enfim, subíamos. No primeiro dia ganhei um cobertor. Na primeira noite, ele desapareceu. Um ruído, um jato de frio, acordei num relance. Uma alma benévola, penso naquele rapaz louro que será protagonista do fato mais marcante de lá, não, não era, estou baralhando tudo, alguém falou no escuro:
Levaram seu cobertor? Vou arranjar outro pra você.
Eu teria chorado? Estaria tremendo muito? Fiquei na expectativa, encolhido, uma voz levantou-se na escuridão:
Filho da puta! Meu cobertor! Filho da puta!
Eu senti que me cobriam e que o benfeitor se afastava, como um gato. Me agarrei ao novo cobertor, quentinho, me agarrei o mais que pude e, no dia seguinte, fiz como faziam os vizinhos: amarravam as quatro pontas nos paus dos beliches e se enfiavam embaixo. Ele chegou sorrindo, dizendo que roubara um cobertor para mim, tivesse cuidado e não o perdesse mais. Lembro de tudo, mas não consigo lembrar desse rosto dissolvido.
Eu ficava no dormitório dos pequenos, com camas mais velhas. Havia um outro, mais limpo, o dos maiores, que nunca cheirava mal. E um terceiro, para os mijões. O inspetor dormia com os grandes, contavam histórias até mais tarde; no nosso bastava soar o berro de silêncio e tudo silenciava.
Não sei de quem partiu a idéia de me levar pro dormitório dos grandes, para dormir junto com Geraldo. Isto ocorreu pouco tempo antes de minha partida. Eram beliches de dois andares. No primeiro beliche, embaixo, dormia Antonio, o inspetor, e em cima um desconhecido. No segundo, dormia Geraldo, em cima, e aí passei a dormir também. Em baixo era um negro magro e alto, lembro que gostava muito de mim. Ali ficava eu a ouvir a conversa dos grandes, até desaparecer no sono. Algumas vezes, o inspetor dava a palavra final:
Bom, já falamos demais, vamos dormir.
E tudo silenciava.
Certa noite, fui acordado por Geraldo e ouvi gritos:
Geraldo, Geraldo, seu irmão tá me mijando!
Levantei-me rápido, mortalmente envergonhado.
Na noite seguinte, tive medo de subir no beliche. Encafuei-me num canto e comecei a rezar, tentando não fazer barulho. Tinha vergonha de ouvir alguma zanga, tinha vergonha de me levarem pro outro dormitório, morria de vergonha e não fazia, por isso, o menor ruído. Foi uma espera atroz, as ave-marias se repetindo, tropeçantes e bêbadas.
Geraldo, cadê seu irmão?
Ué! Será que ele foi pro outro dormitório?
Está aqui do lado, encolhidinho.
Eu subi devagarinho, o preto me consolou sorrindo, Geraldo falou alguma coisa que inundou minha alma de luz, eu deixei cair a carga da inútil agonia e dormi extenuado.
Sucedeu, mais tarde, algo, para que tenha havido o desaparecimento de todos os cobertores? Algum castigo, será? Por que nos últimos meses não tínhamos cobertores. Quando isto aconteceu, eis que estou novamente dormindo sozinho. Todos passaram a adotar o mesmo expediente: os colchões eram então muito velhos, de seus buracos caía o pozinho do capim esmigalhado. Era só pegar a metade dos pés e trazê-la para cima do corpo bem encolhido. O braço ficava fazendo peso sobre o colchão. Não funcionava como o cobertor, mas era melhor do que deixar o corpo entregue aos calafrios e tremores. Difícil era com colchão novo. Lembro de uma vez em que eu o puxava e ele voltava como mola. Era gostoso o cheiro de capim fresco, era bom o cheiro do pano, mas ele não aderia ao corpo como aqueles velhos, esburacados, que nos enchiam aos poucos com um pozinho amarelado.
Difícil também era coçar as mordidas dos percevejos. Eles passeavam lentos, faziam cócegas, a gente conseguia acompanhar o trajeto e o formigar das patinhas pelo corpo. Então vinha um ardor e a mão ia até lá e o colchão voltava para baixo.
As noites demoravam a acabar.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 04

bucket and zé da silva

4. Ainda os habitantes

    Eu estava sentado no chão, no meio de pequeno grupo, devia ser meu primeiro ou segundo dia, alguém chamou:
Bojão!
Bojão chegou e começou a me olhar. O apelido era muito esquisito. Comecei a rir.
Bojão? perguntei.
É.
Bojão de merda? ainda sorrindo. Não sei que associação me levara a isto.
Bojão de merda é um soco no meio dos teus cornos.
Ele ficou zangado e eu me encolhi inteirinho, envergonhado e medroso. Era uma situação nova, não desejava enfrentá-la. Qualquer reação mais agressiva me enchia de pavor, detestaria ter que brigar. Por isso a vergonha e o medo. Também me senti arrependido, quando percebi que o tinha ofendido.
Nada aconteceu, todavia. Ele resmungou um pouco, olhando-me com raiva e mágoa, e a memória tropeça aqui. A partir de então, sempre fomos amigos, sempre participamos de tudo, qualquer lembrança apagada me mostra um pedaço dessa criatura.
Bojão. Viveria hoje o homem que, em dias perdidos de minha infância, suportou a carga desse apelido? Que doação magra, a do destino, que não lhe reservou sequer um nome! Não era Francisco nem Paulo nem José. Podia ao menos ser Chico, Zé, Mané! Não. Bojão. Bojão e nada mais. Há de ser Bojão até o fim de minhas lembranças.
Bojão era mulato, amulatado. A característica mais marcante de seu rosto era que seus maxilares se adiantavam muito, como se a dentadura tivesse que chegar primeiro. Não me lembro de nenhum traço de seu caráter. O único que me ocorre é a fidelidade da companhia. No córrego, nos campos, com o barro ou com a bola, Bojão está presente. Nem amargo nem suave, não ri nem chora, não é leve como Valdemar nem melancólico como Hermes. É o companheiro.
O último desses amiguinhos de desmanchada memória se chamou Zé da Silva. Nova ironia. O anterior não tinha nome, esse tem nome e sobrenome e, no entanto, nome e sobrenome que não pertencem a ninguém, por ser, no Brasil, o nome mais comum de todos. Tinha dentes demasiado brancos?, ou pareciam demasiado brancos pelo contraste violento com sua absoluta negrura! Ria todo o tempo?, ou era que a absoluta brancura de seus dentes legitimava ainda mais o seu riso! Não sei. Para mim, há de ter sempre os mais belos dentes do mundo, esse negrinho sorridente. Dono de uma energia fogosa, pula mais que todos, brinca mais que todos, mexe-se mais que todos, uma formiguinha elétrica. Não consigo imaginar tristeza nessa criaturinha, nem nesse agora relembrado nem em seu futuro apenas imaginado. Valdemar haveria de exibir, mais tarde, alguma fugidia dor nos olhos claros, Hermes choraria, Bojão parecia frágil, tremeria facilmente. Mas não Zé da Silva. O pretinho haveria de ter sempre aquele sorriso branco e enorme, eco gratuito da resposta que a argila africana deu à divindade negra, no dia da criação. É fácil imaginá-lo passista feliz em alguma escola-de-samba, no carnaval carioca. É possível pensá-lo amando a negra mais bela, mistura efêmera de duas noites eternas.
Precisaria fazer força para concebê-lo caído, de qualquer jeito, no meio da lama, ensangüentado, varado pelas balas da justiça. Aquele sorriso não iluminava esse caminho. Sei, porém, que é uma vereda possível.
Indiquei dois outros nomes, Gata Russa e Marquinhos.  Fato curioso, a presença dessas figuras dentro de mim. Ambos permaneceram graças a dois incidentes que ocorreram durante minha estada lá. Não existem nem no antes nem no depois, apenas nesses dois momentos rápidos e marcantes.
Gata Russa era um branquinho louro; branco como leite, louro como fios de uma espiga de milho. Falava fino e a cada frase despertava risos, porque era natural daquela região e o sotaque matuto fazia rir aos cariocas. Parece que tinha um irmão mais velho, tão branco como ele, ou mais ainda. Dois pedaços de papel branco, soltos no meio de pardos, cobres, bronzes, roxos, rosas e negros. Eram esquivos e amedrontados, me davam a impressão de animais em perigo.
Um dia briguei com Gata Russa. Não sei por quê. A mais remota lembrança começa com nossos corpos engalfinhados. Não sei se durou, não sei se foi rápido. Sei que ele me unhou o rosto inteirinho e as arranhadas me arderam durante muitos dias. Teria advindo daí o seu apelido? Ou ele já brigara antes com as unhas? Também não me lembro. Hei de repetir muito isto, não me lembro, não sei, não me recordo, o sol de minhas manhãs ainda não iluminava todos os confins de minha experiência e só aqueles momentos mais fortes deixaram marcas; mesmo estas, imprecisas e voláteis. Não vem ao caso.
A impressão que a briga me deixou foi mais forte que a própria briga. Para variar. Lembro da dor moral que sentia por tê-lo machucado. Não brigava nunca, foi a única vez naqueles vinte meses. Tinha medo, era humilde, era manso, era covarde, muita coisa. Mas, sobretudo, tinha pena de agredir, de machucar. Os arranhões no rosto me causavam uma espécie de consolo porque eu podia imaginar que não tinha sido apenas eu o ofensor, também fora ofendido.
Marquinhos era pequenino. Claro, louro, uma figura digna dos santinhos de papel. Lembro-me dele como menino muito antipático. Ao contrário de Bojão, tinha os dentes para dentro e falava com ceceio afetado. Aquilo me irritava muito. Deveria ser um tipo de ciúme instintivo e primário, porque ele também era protegido pelos maiores. Lembro que ele emagreceu muito e de repente sumiu do colégio. Estava na casa do padre, diziam, tuberculoso. Num dia qualquer, por sobre o muro, alguém disse tê-lo visto passeando a cavalo e a imagem me enchia de despeito. Comentávamos o tipo de comida gostosa que ele devia estar comendo. Em torno de sua lamentável ausência, tecíamos paraísos feitos de cobertores, doces, passeios e macarronadas. Algum tempo depois ele voltou. A cor voltara, engordara um pouco, não era mais aquele esqueletinho pálido que ameaçava tombar a cada vento mais rápido. Não sei de onde me vem a impressão de que, após a volta, ele parecia mais simpático, tinha um riso mais camarada, falava sem afetação. Apesar dessa imagem menos desagradável, ele nunca é lembrado nas brincadeiras, não pertence ao grupo, não volta mais.
Há outros nomes a ferir as cordas dessa minha harpa de recordações. Mas cansei um pouco de gente. Por enquanto. Voltarei depois. Estou precisando de ambiente, espaço, quero começar a viver novamente as lembranças daqueles dias. Principiarei a desfiar o rosário das passagens de que me lembro, quero chão, quero aula, quero noite para dormir, quero comida. Esse meu bando de fantasminhas suspira por tomar banho no riacho, por chutar bolas, escrever suas cartas, que sei eu? Vou, pois, descrever o cenário da tragédia, aquele campo de batalha de lutas tão injustas entre forças tão desiguais.

continua no próximo domingo.

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