Os músicos de Bremen

OS MÚSICOS DE BREMEN

Nota: Esta pecinha se baseia no famoso conto recolhido pelos irmãos Grimm (1785/1863 e 1786/1859). Foi apresentada com fantoches em outubro de 1976. No mesmo ano Bardotti e Enriquez tinham feito uma versão italiana para teatro profissional, I Musicanti. Em 1977 Chico Buarque traduziu I Musicanti para o português, com adaptações: Os Saltimbancos. Coincidências! Para os curiosos, fiz há dias uma tradução fiel do original, que apresento ao final do meu texto.

BURRO:
Ai, que vida triste.
Tô ficando velho
cansado e doente.
Meu pelo caiu,
não tenho mais dente.
Estou tão fraquinho
que as cargas que levo
caem no caminho.
Estou chateado.
Agora que estou
fraco, acabado,
meu patrão me trata
como um enjeitado.
Não me dá comida,
não me dá abrigo.
Danada de vida!
Pensei cá comigo:
Morrendo de fome
não quero ficar!
De manhã bem cedo,
pra outro lugar
eu vou me mandar.
Vou fugir daqui!
Quero viajar.
Quando eu era novo
bem forte e matreiro
aprendi a tocar
tambor e pandeiro.
Pois vou para Bremen.
Lá, numa orquestra,
eu quero tocar.
É nisto que dá
a gente ficar
sem se aposentar.
Muito trabalhei
mas INPS
eu nunca paguei.
Eu fui reclamar
no Fundo Rural
mas lá me pediram
tanto documento!
Nem mesmo animal,
nem mesmo um jumento
pra aguentar aquilo.
Pois vou para Bremen.
Lá numa orquestra
eu quero tocar.
Está resolvido.
Amanhã bem cedo
eu vou me arrancar!
(sai)

CÃO:
Uh uh uh uh uuuuh!
Que fome que eu sinto.
Eu falo e não minto:
hoje não comi.
Desde que estou velho
que o patrão daqui
não me dá comida.
Ficou intratável.
Me xinga, me bate,
e fica dizendo
que estou imprestável.
Porque antigamente,
quando ia pra caça,
eu ia na frente.
Isto, de pirraça,
ele hoje não diz.
Marreco, narceja,
galinha ou perdiz,
nada me escapava!
Eu parava o corpo
e já apontava
com o rabo em pé.
E ele atirava
e eu disparava
e voltava urgente
com o bicho no dente.
Pois é, minha gente.
Agora, estou fraco.
Não tenho mais faro.
O patrão é ingrato.
Eu banquei o pato
porque das caçadas
só ganhava o osso!
O lucro era dele.
Agora, estou velho,
faminto, e ele
Não quer nem saber.
Pra me consolar
eu fico a uivar.
Uh uh uh uh uuuuh!

BURRO:
Que é isto, compadre?
Quê que aconteceu?

CÃO:
Quê que aconteceu?
Fiquei velho e fraco
e o patrão, ingrato,
tirou o meu osso,
tirou meu almoço.
E eu tenho comigo
que, se aqui ficar,
até meu pescoço
ele, de castigo,
vai querer cortar
pra eu não mais uivar.

BURRO:
Pois não seja bobo,
saia já daqui.

CÃO:
Que posso fazer?
Pra onde correr?

BURRO:
Quer mesmo saber?
Eu vou para Bremen.
Lá, numa orquestra,
eu vou me inscrever.
Porque a minha história
parece com a sua.
Patrão é assim mesmo.
A gente trabalha
e quando se cansa,
é o olho da rua.
Pois venha comigo,
seja meu amigo.
Algum instrumento
saberá tocar?

CÃO:
Não aprendi nada.
O que eu sei é uivar.

BURRO:
É mesmo maçada.
Deixa-me pensar!
Quando está uivando
é capaz de uivar
como se estivesse,
assim, a cantar?

CÃO:
Você quer dizer,
se eu consigo uivar
como se uma música
eu fosse entoar?

BURRO:
É bem isto mesmo.

CÃO:
Eu posso tentar.

BURRO:
Então, vamos indo.
E enquanto andamos
dó re mi fa sol
eu vou te ensinar.

AMBOS: (canto)
Dó                Uh
Dó Ré            Uh uh
Dó Ré Mi        Uh uh uh
Dó Ré Mi Fa        Uh uh uh uh
Sol.            Uh.
(saem)

GATO:
A a a atchim!
Ai ai ai de mim!
Que vida ruim!
Por que fui nascer
aqui nesta terra?
Tivesse eu nascido
no Egito antigo…
Ficaria velho
com honras divinas.
E dez bailarinas
Iam me embalar
Até que eu dormisse.
Mas neste país!
Que mal foi que eu fiz?
Só fiquei doente
e velho e fraco.
Não caço mais rato
e o patrão, ingrato,
me tirou da casa.
Lá dentro, na brasa
daquele fogão,
dormia quentinho.
Aqui fora, não!
Minha asma, acredite,
já virou bronquite.
A bronquite, gripe,
e a gripe, ai de mim,
não quer ir embora.
E eu, toda hora,
fazendo atchim.
A a a atchim!
Como sinto frio.
Só chio e não mio.
É nisso que dá
a gente ser pobre.
Eu fui trabalhar
pro patrão, que é nobre,
e hoje, cansado,
vim aqui parar.
Ele, rico e feito.
Eu, doente e desfeito,
cansado, ai de mim.
A a a atchim.
Fui bom operário,
cumpria o horário,
fazia ordinário
e extraordinário
com pouco salário.
Cacei tanto rato
e o patrão, ingrato,
não quis nem saber.
Me chutou pra fora.
Só resta morrer.

BURRO:
Que é isto?, amigo.
Falando em morrer…
o que houve contigo?

GATO:
O que houve comigo?
Banquei o bobão!
Trabalhei de mais
e agora o patrão
de mim se desfaz.
Fui mesmo um palhaço.
Não sei o que faço.

BURRO:
Pois venha com a gente!
Nós vamos pra Bremen.
Vai ser diferente
de agora pra frente.

GATO:
E o que vão fazer?

CÃO:
Artistas de orquestra
havemos de ser.
E vamos ganhar
o nosso sustento.

BURRO:
Você quer tocar
algum instrumento?

GATO:
Quando eu era novo
toquei violão.
Agora… sei não.
Faz já tanto tempo…
A luta danada,
a vida apertada,
já desaprendi.
Não toco mais nada.

BURRO:
Pois bem me dizia
a jumenta, minha tia,
que filosofava:
tudo o que se aprende
jamais se esquece.
Assim, me parece,
é só se lembrar
de alguma teoria…
mais dia, menos dia,
vai brotar canção
do seu violão.
Não quer vir com a gente?

GATO:
Gostei de vocês.
E, chegando em Bremen,
já seremos três.
Se não nos quiserem
na orquestra local,
cantaremos nós,
formando um coral.

BURRO:
Pois vamos andando
e a partitura
vamos ensaiando.

OS TRÊS: (o Burro e o Gato cantam a letra da canção; o Cão uiva, modulando a melodia)
É sempre assim:
A gente trabalha feito um burro,
puxando carroça, dando murro.
Dinheiro, que é bom, não vê não.
Vai tudo pra mão
do patrão.

É sempre assim:
A gente trabalha qual cachorro,
roendo osso, no alto do morro.
O atrasado vem sem correção.
Vai tudo pra mão
do patrão.

É sempre assim:
A gente trabalha feito um gato,
e fazem da gente gato e sapato.
Não recebe gratificação,
vai tudo pra mão
do patrão.
(saem)

GALO: (entoando, subindo o tom, como se estivesse estudando canto)
Qui qui qui ri qui qui qui ri qui.
Qui qui qui ri qui qui qui ri qui.
Ai!
Quem foi que jogou
o sapato em mim?

VOZ:
Fui eu! Quer saber?
Se continuar
berrando assim
vou aí cortar
o teu pescocim.
Galinho atrevido!
Comigo é assim.
É na ditadura!
Essa carne dura
não serve pra nada.
Mesmo assim te mato!
É bom ir parando
com essa cantoria!

GALO:
Ouviram bem isto?
É assim todo o dia.
Que vida malquista!
Ninguém nesta terra
respeita o artista!
Eu fico treinando
minha voz de tenor
E vão me matar.
Que país! Que horror!
Que terra simplista
é esta, que teme
o canto do artista?
Eu vou me exilar.
Vou abandonar
meu torrão natal.
Em outro país
eu vou procurar
gente liberal
que queira escutar
a arte que eu fiz.
Se não, é capaz
de amanhã bem cedo,
algum capataz
de algum delegado
vir me procurar.
Que aflição, que medo!

BURRO:
Que tristeza é essa?
Por que está a gritar?
Pra que tanta pressa?

GALO:
Resolvi partir.
Ainda não sei
bem pra onde ir.
Mas sei que me vou.
Aqui, no país,
seguro não estou.
Eu corro perigo.

CÃO:
Anime-se, amigo!
Pois venha com a gente.
Nós vamos pra Bremen
formar um conjunto.

GATO:
Se você quiser
pode vir também.
Você canta bem!
Será o solista.
Todo mundo sabe
que o galo é mesmo
um grande artista.

GALO:
Amigos… eu vou!
Pois, como eu dizia,
aqui nesta terra
seguro não estou.
Mas, antes de ir,
farei meu aparte:
Que triste o país
que vive sem Arte.

TODOS: (canto)
Vamos indo para Bremen
à procura de outra sorte!
Tudo aqui conspira contra
e nos ameaça o forte.
(saem cantando e voltam em silêncio)

GALO:
Estou ficando cansado,
já não posso caminhar!
Tenho fome, tenho sede.
Nós não podemos parar?

GATO:
Eu também já não aguento.
Andamos um dia inteiro.
Bremen fica muito longe?
Me responda, companheiro.

CÃO:
Falta ainda um bom pedaço.
Uma floresta, asseguro.
E o pior é que anoitece.
Já está ficando escuro!

BURRO:
Precisamos descansar.
É melhor dormir aqui.
Amanhã cedo, partimos.
Eu vou me ajeitar ali.

CÃO:
Eu fico aqui no cantinho
vigiando o caminho.

GATO:
Vou deitar perto do atalho.

GALO:
Eu preciso de um poleiro.
Vou me empoleirar num galho.

BURRO:
Boa noite para todos.
Qualquer barulho, zumzum,
E seremos um por todos
e também todos por um.

GALO:
Amigos, que coisa boa!
Imaginem o que vejo!
Uma luz lá muito longe!

CÃO:
Deve ser um lugarejo.

GALO:
É uma casa solitária
bem no meio da floresta.
Parece que ouço um canto.
Deve haver alguma festa.

BURRO:
Vamos fazer o seguinte:
nós iremos para lá
e pediremos abrigo.
Pois, se for um povo amigo,
eles hão de ajudar.

GATO:
Eu também acho melhor
irmos lá pedir pousada
em vez de dormir aqui
nesta grama tão molhada.

TODOS: (canto)
Nós somos os músicos de Bremen
Bonitos, valentes, corajosos.
Depois que tocarmos na orquestra,    )
Nós quatro, nós quatro,                   ) bis
nós quatro ficaremos bem famosos.   )    
(saem cantando e voltam em silêncio )

BURRO:
Amigos, escutem
o que eu vou falar.
Enquanto viemos
estive a pensar.
Sempre ouvi dizer:
de tanto pensar
um burro morreu.
Garanto, porém,
que o burro da história
não era como eu.
Pensei no seguinte:
se nós não sabemos
quem mora na casa
como lhes pedir
pra nos dar abrigo?
Se é um inimigo
que vamos fazer?
Dizia minha tia,
jumenta sabida:
só burro bem burro
age sem pensar.
O burro que é burro,
dos bem verdadeiros,
pensa até pra andar.

CÃO:
Eu tenho uma idéia:
o galo cantor
que é o mais leve
e sabe voar,
vai dar uma olhada
naquela janela.
Dá uma espiada
e vem nos contar
o que viu por ela.

GALO:
Eu vou, sem demora.
Silêncio, agora.
Porque se me pegam
com rede ou com laço,
não sei o que faço.
Esperem aqui. (vai e volta)

Amigos, que medo!
Sabem o que eu vi?
Eu vi três enormes…
Eu vi três horríveis…

GATO:
A a a atchim!

CÃO:
Silêncio, gatinho.

GATO:
Desculpa, é a gripe.

CÃO:
Deixa ele contar.

GALO:
Pois quando eu lá fui
E olhei na janela,
Eu vi numa mesa,
comendo e bebendo…

GATO:
A a a atchim!

BURRO:
Mas gato, de novo?

GATO:
Que posso fazer?

CÃO:
Da próxima vez
que for espirrar
segura o nariz!
Se não, como o galo
nos pode contar?

GALO:
Pois foi bem assim:
olhei lá pra dentro
e vi…

GATO:
    … A atchim!

CÃO:
Eu vou segurar,
eu vou apertar
seu nariz agora!
Depressa, já, galo,
comece a falar.

GALO:
Eu vi três ladrões!

GATO:
A a a atchim! (os outros três se abraçam)

Por que tanto medo?
Fui eu que espirrei.
E o que o galo disse
eu não escutei.

GALO:
Eu disse que vi
três ladrões lá dentro.

GATO:
Socorro! Socorro!
Me acudam que eu morro!

BURRO:
Silêncio, silêncio.
Eu sei muito bem
o que é pra fazer.
Eu vou por as patas
naquela janela.
O cão trepa em cima
da minha garupa.
O gato no cão
e o galo no gato.
Então eu começo
e conto um, dois, três,
e nós, numa vez,
berramos, gritamos,
e assim, com o barulho,
nós quatro assustamos
aqueles gatunos.
Agora, silêncio:
um, dois, três e… Já!

TODOS:
Uá uá uá uá uá.
Au au au au au.
Miau miau miau
Qui qui ri qui!

BURRO:
Fugiram, fugiram.
O plano deu certo.
Agora, decerto,
não mais voltarão.

CÃO:
Nós vamos entrar,
comer e cantar.
Pois nenhum ladrão
vai querer voltar.

TODOS: (canto)
Nós somos os músicos de Bremen
Bonitos, valentes, corajosos.
Depois que tocarmos na orquestra,    )
Nós quatro, nós quatro,             ) bis
nós quatro ficaremos bem famosos.    )

BURRO:
Bem, já que comemos,
vamos nos deitar.
Cada um escolhe
o melhor lugar.
Eu vou para o pátio.
O gato na brasa
daquele fogão.
O galo no alto
e ali fica o cão.
(saem; entram os três ladrões)

PRIMEIRO LADRÃO:
Eu acho que nós fugimos de bobos que fomos. Só por causa de um barulhinho qualquer, a gente vai abandonar a casa com todo o nosso tesouro?

TERCEIRO LADRÃO:
Barulhinho? Pois eu estou tremendo até agora.

SEGUNDO LADRÃO:
Porque vocé é um medroso!

TERCEIRO LADRÃO:
Eu, um medroso? Mas foi você que começou a correr primeiro.

PRIMEIRO LADRÃO:
Silêncio! Está certo que a gente abandone o nosso tesouro e a nossa casa pra algum monstro. Mas precisamos mesmo averiguar se é um monstro ou não. Você vai lá ver.

TERCEIRO LADRÃO:
Eu? Mas eu estou tremendo até agora. Vai você.

PRIMEIRO LADRÃO:
Eu não vou porque eu sou o chefe. Vai você.

SEGUNDO LADRÃO:
Eu? Mas eu sou o subchefe. Você é que vai.

TERCEIRO LADRÃO:
Eu? Mas eu morro de medo. Estou tremendo até agora.

PRIMEIRO LADRÃO:
Mas é você mesmo que vai lá. Eu, o chefe, mando.

SEGUNDO LADRÃO:
E eu, o subchefe, também.

TERCEIRO LADRÃO:
Então, já que nós assim decidimos democraticamente, eu vou. Mas não me responsabilizo se voltar de lá com as calças cheias.

PRIMEIRO LADRÃO:
Vai, logo, seu cagão.
(os animais dormem; entra o ladrão)

BURRO: (cochichando)
Atenção, atenção,
eis que vejo um ladrão.
Pessoal, vamos por
nosso plano em ação.
(dá um coice; o cão dá uma dentada; o gato arranha; o galo fica gritando: qui qui qui ri qui!)

PRIMEIRO LADRÃO:
Então, o que aconteceu? Tinha mesmo um monstro na casa?

TERCEIRO LADRÃO:
Um monstro? São quatro! Quatro monstros terríveis. Primeiro um gigante me deu um chute com um pé de ferro, depois um anão me deu uma facada na perna e uma bruxa me arranhou a cara e uma outra ficava gritando: traga ele aqui, traga ele aqui!

PRIMEIRO LADRÃO:
Precisamos usar de tática com o inimigo. A nossa estratégia é, na hora do perigo, bater em retirada. Eu, como o chefe, começo. (foge)

SEGUNDO LADRÃO:
E eu, como Subchefe, sou o segundo. (foge)

TERCEIRO LADRÃO:
Ei, esperem por mim, esperem por mim. Ai, meu Deus dos ladrões, quando é que eu vou parar de tremer? (foge)

BURRO:
Pois viram?, crianças!
Nós já desistimos
de ir para Bremen.
Aqui temos tudo.
Pegamos o ouro
do trio gatuno.
E agora, atenção.
Vamos terminar
com um parabéns
pro amigo Bruno!

(canto: Parabéns pra você, etc.) (escurece)

Curitiba, outubro de 1976.

Os músicos de Bremen (conforme o original recolhido pelos Irmãos Grimm)

    Um homem tinha um burro que, durante muitos anos, carregou sacos até o moinho mas que, agora, ia perdendo as forças e assim ficava a cada dia mais incapaz para o trabalho. Por isso o homem começou a pensar num jeito de se livrar do animal. Mas o burro, percebendo que maus ventos estavam querendo soprar, fugiu e tomou o caminho de Bremen; lá, ele pensava, poderia ser um dos músicos da cidade. Após andar um trecho do caminho, encontrou um cão de caça deitado no chão, ofegante, como se estivesse cansado por ter corrido muito. “Por que está assim tão ofegante, rapaz?” perguntou o burro. “Ah!”, falou o cachorro, “porque estou velho e a cada dia fico mais fraco e não sirvo mais para a caçada. Por isso o meu dono quer me matar de pancada; eu escapei mas como vou agora ganhar o meu pão?” “Pois quer saber?”, falou o burro, “estou indo para Bremen para me tornar músico da cidade; venha também e torne-se um músico. Eu toco o alaúde e você o tambor.” O cachorro concordou e se puseram a caminho.  Não tinham andado muito e viram um gato na estrada, com uma carinha de quem tinha tomado chuva durante três dias. “Por que está assim tão transtornado, bichano?”, falou o Burro. “Quem pode estar contente na hora da morte?”, respondeu o gato, “agora que fiquei mais carregado de anos, com os dentes gastos, prefiro deitar-me atrás do fogão e ficar ronronando em vez de caçar ratos; minha dona quer me afogar. Eu me safei mas a situação é complicada; para onde ir?” – “Pois venha conosco para Bremen, você entende de música noturna, poderá tornar-se um músico da cidade.” O gato achou a idéia boa e juntou-se a eles. Logo logo os três fujões chegaram a um pátio e sobre o alto do portão um galo berrava a plenos pulmões. O burro falou: “Desse jeito você fura os nossos tímpanos! O que aconteceu?” – “Pois eu anuncio os  bons tempos,” falou o galo, “porque hoje é o dia em que Nossa Senhora lava as roupas do menino e as coloca para secar; mas como amanhã é domingo e chegarão visitas, ouvi minha dona, que não tem piedade alguma, falar para a cozinheira que ela quer me comer na sopa; como hoje a noite eu vou ter o pescoço cortado, eu estou cantando enquanto ainda posso.” – “Oh, crista-vermelha,” disse o burro, ” é melhor vir conosco, estamos indo para Bremen, alguma coisa melhor do que a morte você há de encontrar em qualquer outro lugar; você tem boa voz e quando nós cantarmos juntos, há de ser uma beleza. O galo gostou da proposta e os quatro se foram.
    Mas eles não podiam atingir Bremen em um dia e a noite os surpreendeu em uma floresta, onde resolveram pernoitar. O burro e o cão deitaram-se sob uma grande árvore, o gato e o galo subiram para os galhos, o galo porém subiu até a ponta mais alta, por se sentir mais seguro ali. Antes de dormir, deu uma olhada em direção aos quatro ventos e lhe pareceu ver na distância uma luzinha brilhando. Já avisou aos companheiros que devia haver uma casa não muito longe pois brilhava lá uma luz. O burro falou: ” Então devemos levantar acampamento e ir para lá porque este alojamento aqui não é dos melhores. O cachorro acrescentou: “E alguns ossos com uma carninha em cima seria muito bom.” Assim, puseram-se a caminho até o local onde havia a luz, que a cada vez brilhava mais forte, até chegarem a uma casa de ladrões totalmente iluminada. Como o burro era o maior, aproximou-se da janela e olhou para dentro. “O que está vendo?, ô ruço!”, perguntou o galo. “O que estou vendo?”, respondeu o burro, “uma mesa posta com comida e bebida e em volta ladrões sentados que se regalam a valer.” – “Ah, se fôssemos nós!” falou o galo. “Isto mesmo, ah, se fôssemos nós”, falou o burro. E os quatro animais se puseram a conversar sobre a melhor maneira de expulsar os ladrões e acabaram encontrando um meio. O burro colocou as duas patas dianteiras na janela, o cachorro subiu em cima do burro, o gato ficou em cima do cachorro e o galo voou para cima da cabeça do gato. A um sinal combinado, os quatro começaram a executar sua música: o burro zurrava, o cachorro latia, o gato miava e o galo berrava. E pularam para dentro da sala, quebrando todos os vidros. Os ladrões levaram um susto por causa daquele barulhão, pensando que era um fantasma, e voaram em corrida desabalada para dentro da floresta. Os quatro amigos se sentaram e se regalaram com o que tinha ficado na mesa.
    Quando os músicos estavam fartos, apagaram a luz e cada um buscou um lugar para dormir, de acordo com a sua natureza e o seu gosto. O burro se deitou em cima do esterco, o cachorro atrás da porta, o gato junto às cinzas quentes do fogão e o galo pousou numa viga. E como estavam cansados por causa do longo caminhar, não tardaram em dormir. Passada a meia-noite, e quando os ladrões perceberam que já não havia luz na casa e tudo estava silencioso, falou o chefe: “Não devíamos ter deixado que nos expulsassem tão facilmente”, e mandou um subordinado ver o que se passava na casa. Este encontrou tudo silencioso e foi à cozinha acender uma luz; e como viu os olhos em brasa do gato, achou que ali poderia acender o seu fósforo. Mas o gato não estava para brincadeiras: pulou-lhe na cara, cuspindo e arranhando. Assustou-se o homem e pôs-se a correr para sair pela porta dos fundos mas o cachorro, que estava deitado ali, deu um pulo e mordeu sua perna. E quando ele atravessou o pátio por cima do esterco, o burro aplicou-lhe um bom coice com a perna traseira; e o galo que tinha acordado começou a gritar do alto da sua viga: “quiquiriqui!” O ladrão correu o quanto pode até o chefe e contou: “Uau!, dentro da casa está uma bruxa horrível que me soprou na cara e me arranhou com suas unhas afiadas. E atrás da porta está um homem com um facão e ele me cortou na perna; no pátio está um monstro negro e ele me bateu com um pedaço de pau. E no telhado estava o juiz, que ficava gritando: “Traz o maroto aqui!” Então eu escapei enquanto pude.” Desde então, os ladrões não tiveram mais coragem de voltar à casa e os quatro músicos de Bremen se sentiram tão bem ali, que nunca mais quiseram ir para outro lugar.

(Campo Largo, 11.11.09)

 

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