Fábulas
Fábulas 22, 23, 24, 25, 26, 27 e 28
22 – A Morte e o lenhador
Um velhinho, muito velho, vivia de tirar lenha na mata. Os feixes, porém, cada vez lhe pareciam mais pesados. Tropicava com eles, quase caía, e um dia caiu de verdade, perdeu a paciência e lamentou-se amargamente:
– Antes morrer! De que me vale a vida, se nem com este miserável feixe posso? Vem, ó Morte, vem aliviar-me do peso desta vida inútil.
Tentou erguer a lenha. Não pôde e, desanimando, invocou pela segunda vez a Magra.
– Por que demoras tanto, Morte? Vem, já pedi, vem aliviar-me do fardo da vida. Andas pelo mundo a colher criancinhas e esqueces de mim que te chamo…
A Morte foi e apareceu – horrenda, escaveirada, com os ossos a chocalharem e a foice na mão.
Ao vê-la de perto, o homem estremeceu de pavor, e mais ainda quando a Magra lhe disse, batendo os ossos do queixo:
– Cha-mas-te-me; a-qui es-tou!
O velho tremia, suava… E para sair-se dos apuros só teve esta:
– Chamei-te, sim, mas para me ajudares a botar esta lenha às costas…
*****
– Não gosto desta fábula – disse a menina – porque aparece uma Morte muito feia. Eu não queria que pintassem a morte assim, com o alfanje de cortar grama ao ombro, com a caveira em vez de cara e aquele lençol embrulhando o esqueleto…
– Você tem razão, minha filha. Essa imagem da morte é coisa da Idade Média, o tempo mais trágico e triste da História. A Morte não é nada disso. É um bem. É um remédio… É o Grande Remédio. Quando um doente está sofrendo na maior agonia, a Morte vem como o fim da dor.
– Morte de que eu gosto – disse Pedrinho – é aquela dos americanos…
Ninguém entendeu. Ele explicou.
– Lembram-se daquela fita que vimos no cinema, Horas roubadas? A Morte era Mister Ceifas, um moço muito elegante e delicado, mas de rosto impassível. Entrou naquele jardim e com um gesto muito amável convidou o velho entrevado a ir com ele. O velho não quis. Mister Ceifas não se aborreceu. Ficou por ali. De repente, o velho quis morrer e então Mister Ceifas aproximou-se, sempre com aquela gentileza, e estendeu-lhe a mão. E o velho ergueu-se da cadeira de rodas, leve como se fosse um moço, e lá se foi pela mão de Mister Ceifas… Que beleza! Eu gostei tanto que perdi o medo da morte. Se ela é assim, que venha buscar-me. Sairei pela mão de Mister Ceifas tal qual aquele velho – feliz, sorrindo e gozando a beleza das paisagens do outro mundo…
23 – O útil e o belo
Parou um veado à beira do rio, mirando-se no espelho das águas. E refletiu:
– Bem malfeito de corpo que sou! A cabeça é linda, com estes formosos chifres que todos os animais invejam. Mas as pernas… Muito finas, muito compridas. A natureza foi injusta comigo. Antes me desse menos pernas e mais galharada na cabeça. Que lindo diadema seria! Com que orgulho eu passearia pelos bosques ostentando um enfeite único em toda animalidade!…
Neste ponto interrompe-o o latido dos veadeiros, valentes cães de caça que lhe vinham na pista, como relâmpagos.
O veado dispara, foge a toda e embrenha-se na floresta. E enquanto corria pôde verificar quão sábia fora a natureza dando-lhe mais pernas do que chifres, porque estes, com toda a sua formosura, só serviam para enroscar-se nos cipós e atrapalhar-lhe a fuga; e aquelas, apesar de toda a feiura, constituíam a sua única segurança. E mudou de ideia, convencido de que antes mil vezes pernas finas, mas velocíssimas, do que formosa, mas inútil galhaça.
*****
– Se os chifres desse veado só serviam para enfeite, então a fábula está certa – disse Emília. – Mas quando um chifre é como o do Quindim, ah, então vale ainda mais do que pernas. Quindim nem sabe correr, porque não precisa fugir. Em vez de fugir na volada, como as lebres e os veadinhos, ele faz muuuu!… e espeta o inimigo.
– E que é, Emília, que você acha melhor – perguntou Narizinho –, o útil ou o belo?
– Acho melhor os dois encangados, assim como uma espécie de banana inconha. Útil e belo ao mesmo tempo. Por que é que uma coisa útil deve ser feia? Não há razão.
24 – As aves de rapina e os pombos
A guerra dos rapinantes – quando isto foi? Há séculos. Há mil anos. Mas foi guerra tão terrível que até hoje se fala nela.
Brigaram as aves de rapina – águias, abutres, gaviões, milhafres, por causa de um veadinho novo. E separaram-se em campos contrários, rompidos em guerra franca. Durante meses o azul do céu virou arena de luta. Ora duelos singulares; ora ataques de um bandido contra outro; ora um grupo que agredia um inimigo escoteiro.
E adeus, paz do azul! Volta e meia era um corpo que caía, espedaçado a unhaços; ou penas que desciam em espirais, ou gotas de sangue a pingar.
As aves pacíficas da terra, assustadas com aqueles horrores, deliberaram intervir. E escolheram como mensageiro a pomba.
– Vá você que é a sinaleira da paz e reduza à razão aqueles loucos furiosos.
A pombinha foi conferenciar com os chefes, e com tanta eloquência falou que eles a ouviram e assinaram um tratado, comprometendo-se a nunca mais se devorarem uns aos outros.
Mas o que depois disso sucedeu degenerou em calamidade para os apaziguadores. Harmonizados entre si, os rapinantes pouparam-se uns aos outros, mas deram de empregar toda a força dos bicos e todo o fio das unhas contra as pobres pombas. E foi uma chacina sem tréguas que dura até hoje e durará eternamente.
E as pombinhas entraram a murmurar, num queixume triste:
– Que tolice a nossa, de restabelecer a harmonia entre os rapinantes! A boa política mandava fazer justamente o contrário – dividi-los ainda mais…
*****
– Houve mesmo essa guerra, Dona Benta? – perguntou Tia Nastácia, que vinha entrando com um prato de pés-de-moleque ainda quentinhos! – Judiação, as malvadas matarem as pombinhas…
Emília pôs as mãos na cintura.
– Que graça, esta assassina achar judiação águia matar pombas! Quem é que ontem torceu o pescoço do frango carijó? Quem é que na semana passada matou aquele leitãozinho? Quem é que…
– Pare, Emília! – disse Dona Benta. – Você está se afastando muito da fábula. Quero saber qual é a moralidade do caso das aves de rapina e as pombas.
Pedrinho gritou:
– Eu sei, vovó! Dividir é enfraquecer – não é isso mesmo?
25 – O burro na pele do leão
Certo burro de ideias, cansado de ser burro, deliberou fazer-se leão.
– Mas como, estúpida criatura?
– Muito bem. Há ali uma pele de leão. Visto-a e pronto! Viro leão!
Assim fez. Vestiu-a e pôs-se a caminhar pela floresta, majestosamente, convencido de que era o rei dos animais.
Não demorou muito e apareceu o dono.
– Vou pregar-lhe o maior susto da vida”, pensou lá consigo o animalejo – e lançando-se à frente do homem desferiu um formidável urro. Em vez de urro, porém, saiu o que podia sair de um burro: um zurro.
O homem desconfiou.
– Leão que zurra!… Que história é essa?
Firmou a vista e logo notou que o tal leão tinha orelhas de asno.
– Leão que zurra e tem orelhas de asno há de ser na certa o raio do Cuitelo que me fugiu ontem do pasto. Grandissíssimo velhaco! Espera aí…
E agarrou-o. Tirou-lhe a pele de leão, dobrou-a, fez dela um pelego e, montando no pobre bicho, tocou-o para casa no trote.
– Toma, leão de uma figa! Toma… – e pregava-lhe valentes lambadas.
Quem vestir pele de leão, nem zurre nem deixe as orelhas de fora.
*****
– Bravos! – gritou Pedrinho batendo palmas. – Está aí uma fábula que acho muito pitoresca. Gostei.
– Pois eu não gostei – berrou Emília –, porque trata com desprezo um animal tão inteligente e bom como o burro. Por que é que esse fabulista fala em “estúpida criatura”? E por que chama o pobre burro de “animalejo”? Animalejo é a avó dele…
– Emília! – repreendeu Dona Benta. – Mais respeito com a avó dos outros.
– É que não suporto essa mania de insultar um ente tão sensato e precioso como é o burro. Quando um homem quer xingar outro, diz: “Burro! Você é um burro!”, e no entanto há burros que são verdadeiros Sócrates de filosofia, como o Conselheiro. Quando um homem quiser xingar outro, o que deve dizer é uma coisa só: “Você é um homem, sabe? Um grandissíssimo homem!”. Mas chamar de burro é, para mim, o maior dos elogios. É o mesmo que dizer: “Você é um Sócrates! Você é um grandissíssimo Sócrates…”.
26 – A raposa sem rabo
Certa raposa caiu numa armadilha. Debateu-se, gemeu, chorou e finalmente conseguiu fugir, embora deixando na ratoeira sua linda cauda. Pobre raposa! Andava agora triste, sorumbática, sem coragem de aparecer diante das outras, com receio de vaia.
Mas de tanto pensar no seu caso teve a ideia de convocar o povo raposeiro para uma grande reunião.
– Assunto gravíssimo! – explicou ela. – Assunto que interessa a todos os animais.
Reuniram-se as raposas e a derrabada, tomando a palavra, disse:
– Amigas, respondam-me por obséquio: que serventia tem para nós a cauda? Bonita não é, útil não é, honrosa não é… Por que então continuarmos a trazer este grotesco apêndice às costas? Fora com ele! Derrabemo-nos todas e fiquemos graciosas como as preás.
As ouvintes estranharam aquelas ideias e, matreiras como são, suspeitaram qualquer coisa. Ergueram-se do seu lugar e, dirigindo-se à oradora, pediram:
– Muito bem. Mas cortaremos primeiro a sua. Vire-se para cá, faça o favor…
A pobre raposa, desapontada, teve de obedecer à intimação. Voltou de costas.
Foi uma gargalhada geral.
– Está explicado o empenho dela em nos fazer mais bonitas. Fora! Fora com a derrabada!…
E correram-na dali.
*****
– Isso é bem certo – disse Dona Benta. – Se uma pessoa que tem um defeito conseguisse que o mundo inteiro também tivesse o mesmo defeito, que acontecia, Pedrinho?
– Acontecia que quem não tivesse o tal defeito é que era o defeituoso.
– Exatamente. Há certos lugarejos aí pelo sertão em que todos os moradores ficam com uns enormes papos. Um dia um viajante entrou na casa de uma família de papudos e viu na parede o retrato de um moço sem papo. – “Quem é ele?”, perguntou. E a dona da casa respondeu: – “Ah, esse é meu filho Totonho, no tempo em que era defeituoso”. – “E agora não é mais?”, perguntou o viajante. – “Felizmente sarou”, respondeu a papuda. – “Está já com o pescoço bem cheio, como o meu”, e alisou com a mão aquela papeira lustrosa…
27 – O peru medroso
Gordo peru e lindo galo costumavam empoleirar-se na mesma árvore. A raposa os avistou certo dia e veio vindo contente, a lamber os beiços como quem diz: “Temos petisco hoje!”.
Chegou. Ao avistá-la, o peru leva tamanho susto que por um triz não cai da árvore. Já o galo o que fez foi rir-se; e como sabia que trepar em árvore a raposa não trepava, fechou os olhos e adormeceu.
O peru, coitado, medroso como era, tremia como varas verdes e não tirava do inimigo os olhos.
– O galo não apanho, mas este peru cai-me no papo já…, pensou consigo a raposa.
E começou a fazer caretas medonhas, a dar pinotes, a roncar, a trincar os dentes, dando a impressão de uma raposa louca. Pobre peru! Cada vez mais apavorado, não perdia de vista um só daqueles movimentos. Por fim tonteou, caiu do galho e veio ter aos dentes da raposa faminta.
– Estúpido animal! – exclamou o galo acordando. – Morreu por excesso de cautela. Tanta atenção prestou nos arreganhos da raposa, tanto atendeu aos perigos, que lá se foi, catrapus…
A prudência manda não atentar demais nos perigos.
*****
– Eu conheci um homem assim – disse Dona Benta. – Tomava um milhão de precauções para evitar males. Só bebia água filtrada. Andava pelo meio da rua para evitar que lhe caíssem sobre a cabeça os vasos de flor das janelas. Desinfetava as mãos sempre que dizia adeus a alguém…
– E que fim levou esse homem, vovó?
– Morreu de um desastre de aviação.
– Mas se ele tinha tanto medo de tudo, como teve coragem de voar?
– Ele não estava voando, meu filho. O avião caiu em cima dele, na rua.
28 – O leão, o lobo e a raposa
Um leão muito velho e já caduco andava morre não morre.
Mas, apegado à vida e sempre esperançado, deu ordem aos animais para que o visitassem e lhe ensinassem remédios.
Assim aconteceu. A bicharia inteira desfilou diante dele, cada qual com um remédio ou um conselho.
Mas a raposa? Por que não vinha?
– Eu sei – disse um lobo intrigante, inimigo pessoal da raposa. – Ela é uma finória, acha que Vossa Majestade morre logo e é bobagem andar a perder tempo com cacos de vida.
Enfureceu-se o leão e mandou buscar a raposa debaixo de vara.
– Então é assim que me trata, ó vilíssimo animal? Esquece que eu sou o rei da floresta?
A raposa interrompeu-o:
– Perdão, Majestade! Se não vim até agora é que andava em peregrinação pelos oráculos, consultando-os a respeito da doença que abate o ânimo do meu querido rei. E não perdi a viagem, visto como trago a única receita capaz de produzir melhoras na real saúde de Vossa Majestade.
– Diga lá o que é – ordenou o leão, já calmo.
– É combater a frialdade que entorpece os vossos membros com um “capote de lobo”.
– Que é isso?
– Capote de lobo é uma pele ainda quente de lobo escorchado na horinha. E como está aqui mestre lobo, súdito fiel de Vossa Majestade, vai ele sentir um prazer imenso em emprestar a pele ao seu real senhor.
O leão gostou da receita, escorchou o lobo, embrulhou-se na pele fumegante e ainda por cima lhe comeu a carne.
A raposa, vingada, retirou-se, murmurando:
– Toma! Para intrigante, intrigante e meio…
*****
– Bem feito! – exclamou Emília. – Essa raposa merece um doce. E com certeza o tal lobo era aquele que comeu a avó de Capinha Vermelha[1].
– Boba! Aquele foi morto a machadadas pelo lenhador – disse Narizinho.
– Eu sei – tornou Emília –, mas nas histórias a matança nunca é completa. Nunca o morto fica bem matado – e volta a si outra vez. Você bem viu no caso do Capitão Gancho. Quantas vezes Peter Pan deu cabo dele? E o Capitão Gancho continua cada vez mais gordo e ganchudo.
– Por que é, vovó, que em todas as histórias a raposa sai sempre ganhando? – quis saber Pedrinho.
– Porque a raposa é realmente astuta. Sabe defender-se, sabe enganar os inimigos. Por isso, quando um homem quer dizer que o outro é muito hábil em manhas, diz: “Fulano de Tal é uma verdadeira raposa!”. Aqui nesta fábula você viu com que arte ela virou contra o lobo o perigo que a ameaçava. Ninguém pode com os astutos.