Alma desdobrada

Descartes

Nota: Quando fiz a última revisão deste livro, para publicaçáo neste saite, cortei trechos, por considerar que estavam fora do contexto do livro em geral. Em 27.06.2024 descobri papéis avulsos com o material rejeitado. Reli tudo e percebi que há alguns momentos com um certo brilho, tão só porque são indícios precisos daquela fase de revisão existencial que me aconteceu em 1981, há quarenta e três anos atrás. São opiniões, comparações, discretos delírios, observações já desatualizadas… Repito que isto foi escrito em 1981, em 1980 tinha passado três meses na Europa.

        Conservei a ordem da sequência original, mas, aqui, os números nada significam:

 

068 – estou esperando o metrô numa qualquer estação de paris. nunca se viu tanta eficiência assim. o metrô em paris é barato e rapidíssimo. a gente toma o trem, salta, faz conexões, salta novamente, sobe as escadinhas e já está a dois ou três quarteirões do local onde se quer ir. então eu penso: é barato e rápido, para que os operários não se atrasem nos seus trabalhos. a eles não é dado o direito de ver a luz do sol lá em cima. caminham pelos túneis dias e dias. eles não vivem em paris, vivem nos túneis, como minhocas, e nos empregos, como ratos amestrados.

071 – as ruas estão cheias de gente. eles passam com seus bolsos endividados e suas sacolas cheias tão só de esperança. e por que é que eles não quebram os vidros das vitrines e tomam para si aquilo de que necessitam? eles olham, como  os cães de pavlov, eles salivam e seus sonhos tecem planos de milagres e satisfações para depois de amanhã. eles se frustram, baixam a cabeça e seguem caminho, para vender braços e coração aos donos do mundo. essa frustração, essa dor acumulada, essa fúria contida, essa raiva engolida, onde fica tudo isso? como vai ser no dia em que os cães acordarem?

 

075 – assim gostaria de escrever às mães da europa: mãe da europa! por que é que você não olha seu filhinho dentro dos olhos? por que é que você não o segura no colo? por que é que, quando você o tem pendurado no peito, nessa mochila para carregar bebês, ele está de costas para você, e não de frente? e em vez de ficar olhando para você, ele fica olhando para o mundo imenso e cruel, tão assustador. mãe da europa! quer aprender uma lição de boa nova? nós, terceiro-mundistas, indios, pobres, famintos, doentes, ignorantes, abraçamos nossos filhinhos cheios de ternura; nós os esquentamos com nosso calor; nós os beijamos o tempo todo, com nossa saliva a grudar-lhes nos rostinhos. nós os olhamos nos olhos. nós os olhamos nos olhos! não temos medo deles. nós os amamos. mãe da europa! seu filhinho cresce mas ainda tem medo de olhar. ele tem medo do mundo. mãe da europa! não tenha medo de olhar seu filhinho. o medo a ele pertence, não a você.

 

148 – a itália foi o país europeu onde percebi que, nos mictórios, o número de “graffiti” políticos é maior do que os de pornografia. abaixo tudo… “giù con…” comunistas, fascistas, capitalistas, brancos, africanos, judeus, palestinos, nazistas, até o papa… a itália quase é, ou fica sendo um país perigoso de se viver. o terrorismo consegue criar um certo medo. mas é um pais de liberdade. a itália consegue correr o risco de ser livre. é difícil, é perigoso ser livre. a itália não é fascista. a itália assumiu o preço.

        a itália é um pequeno continente.

 

150 – não dá pra saber qual o resultado que uma obra de arte vai produzir num coração. uma mesma música, um mesmo livro, um mesmo quadro, pode provocar desinteresse ou enlevo. depende, antes de tudo, do alcance da própria obra. há muitas obras soltas pelo mundo, a maioria de passos curtos, jamais chegarão ao fundo de um coração. há outras já armadas da inspiração mais conquistadora. hamlet, tristão, zaratustra, goya, quixote, karamázovi, que coração inteiro poderia resistir?

        mas, ainda assim, é necessário que haja predisposição intelectual e emocional à explosão do encontro. é verdade que o encontro é um confronto, portanto, sempre, será o resultado de um diálogo.

        se karamázovi tem coisas a dizer a mim, eu preciso ter, por meu lado, coração e cabeça para reagir. no mundo da arte não é possível o monólogo. uma grande obra sempre precisará de um grande coração. só assim será capaz de aumentá-lo, modificá-lo, fazê-lo mais profundo.

        a grande obra é um mensageiro de luz; não é enviado a todos os homens mas àqueles que serão capazes de reconhecê-lo. o encontro provoca centelhas de júbilo, garante a sobrevivência do que foi enviado e engrandece a alma de quem o recebeu. dá-lhe um certo sentido à vida. ou diminui dela o sem-sentido.

        ainda assim, houve momentos em que eu estive de portas fechadas a esses mensageiros de luz; ouvi-os, presenciei-os, li-os, mas eles emudeceram diante da minha distância e de meu silêncio.

        mas, quando eles nos arrebatam o coração e abrem fendas na alma, por onde escorre o ouro líquido do que vem a ser existir…

        vida, o que é você?

        por que tudo isso?

        por que é assim?

 

225 – que dignidade tranquila tem o povo iugoslavo! eles caminham lentos pelas suas ruas de lama e neve e se olham e se sorriem. eles puxam seus filhos nos pequeninos trenós de madeira, serrados e martelados com as mãos da simplicidade. eles são pobres e livres.

        zagreb é apenas uma grande aldeia com suas construções monumentais e belas e sua gente tranquila.

        como o capitalismo nos rói o humano que existe em nós! sinto a iugoslavia vacinada contra esse mal.

 

237 – no tempo de agora, nesse meu tempo, não há cantores a cantar mas saltimbancos a fazer malabarismos. enchem-se de um arsenal instrumental, cercam-se de um cenário confuso, iluminam-se com cores que vão e vêm, vestem-se como dançarinos de terceira categoria ou pretenciosos palhaços. só então cantam; ou pensam que cantam. ou mostram telas que dizem ser telas. ou assinam livros, supostos livros.

        nos povos primitivos os chefes e os sacerdotes pavoneiam-se no meio de seus truques, para parecer às gentes aquilo que não são.

        assim são muitos dos ainda políticos.

        assim são alguns dos que se dizem artistas.

 

244 – minha vó pediu, meio ordenando, que lêssemos a bíblia, um pouquinho por dia. eu, angela e amélia. tínhamos entre sete e onze anos. íamos nos revezando na leitura em voz alta, cada um a sua vez. um dia amélia lia alto e começamos a nos remexer, porque um de nós soltara um pum. ninguém se manifestou. quase tremíamos de medo do sacrilégio, apenas nos remexíamos um pouco. apesar do incômodo, a leitura continuou. deus falava no meio da sua ira bíblica mas a amélia, agora com a voz trêmula, continuava, enquanto o sacrilégio nos ameaçava com a espada da surpresa.

        lá fora sopraram ventos, morreram gentes, roubaram nações.

        a leitura terminou.

        tínhamos vencido. tínhamos perdido.

 

273 – minha escrita está tão dificultada! troco letras, troco palavras, como me está sendo difícil escrever!

        sinto que se desintegra algo de lúcido dentro de mim.

        de que mundo me desentrego?

 

276 – olhando de fora,

apenas duas crianças esquecidas de si.

nesse soninho doce e entregue

não percebem

as lutas de cá:

estômagos torcidos,

bocas caídas

e olhares amargos.

medo e ódio,

ódio e medo.

 

os corpinhos nada sentem

se não o leve apagar-se das rotinas

e o relaxar de perninhas

cansadas de chutar o chão e as bolas

e mãozinhas

cansadas de escrever

e olhinhos

vermelhos por causa da televisão.

 

mas as alminhas não dormem;

perseguidas que são por pesadelos mirins,

cheios de monstros de desentendimento

e bruxas de ameaças

e lobisomens de desesperação.

não há ainda angústia

nem tédio

nem melancolia crônica

nem depressão;

essas dores grandes de gentes crescidas.

apenas dúvidas e espantos e medinhos  assustadores:

 

dúvidas sobre o amanhã tão próximo,

que não trará o pai

ou não trará a mãe:

um dos dois estará presente:

mas nunca os dois juntos.

é uma balança cheia de injustiça

que não admite dois pesos simultâneos:

ou a mãe ou o pai;

não há escolha!

a alegria nunca será inteira.

(entenderiam estas alminhas que raramente há alegrias inteiras?)

 

espantos diante dessas caras aflitas

e machucadas

e esses olhares cheios de simulação

que são as caras e os olhos

do pai

e da mãe:

presas de medo e ódio

e ódio e medo.

caras e ódios que dizem viver para os filhos,                                      

mas no fundo fundo querem viver apenas

suas tentativas de conquista.

mais filhos que mãe,

mais filhos que pai.

(entenderiam essas alminhas que raramente há pais e mães inteiros?)

 

assustadores medinhos

de serem partidos ao meio

ao longo das disputas;

não porque se queira dar às alminhas

o melhor do mundo.

mas porque se queira vencer a briga;

os amores próprios feridos

e feridos os ódios próprios.

pais e mães constituindo-se a si mesmos

bíblicos salomões cheios de sapiência,

reis e cúmplices,

juízes e executantes que,

resolvidos entre si,

premidos pelo impulso irracional,

cumprem ameaças

e partem ao meio, em pedaços,

as alminhas dos que apenas querem dormir e crescer,

e carregam, cada qual, a sua porção de vida lesada,

da vida que se esvai,

escorrendo das dúvidas,

dos espantos

e dos medinhos assustadores.

(entenderiam essas alminhas que raramente há heranças inteiras?)

 

fora!, monstros do desentendimento!

para trás!, bruxos das ameaças!

morram!, lobisomens do desespero!

 

saiam do nosso soninho, dúvidas;

apaguem-se, espantos;

fujam daqui, medos assustadores.

 

nós queremos dormir!

nós queremos tão só dormir mais um pouco!

para fora de nossos sonos!

pai

e mãe

e mãe

e pai!

levem daqui seus medos e seus ódios,

filhos perdidos que vocês são.

crianças nunca crescidas.

menino e menina sem salvação.

infantes sem saída outra!

 

queremos dormir um pouco mais.

queremos dormir, pelo menos,

até que vocês cresçam.

 

cresçam

ou desapareçam!

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