O Poço do Visconde
Capítulos 9 e 10
9 – Começa o poço
Bem de madrugada, no dia seguinte, o foguista acendeu fogo na caldeira para que os trabalhos da perfuração do Caraminguá n.° 1 pudessem começar às 8 horas, como havia determinado Mister Kalamazoo. Era um grande acontecimento, que Pedrinho resolveu festejar com uma carteira de traques mandada vir da venda do Elias Turco. Infelizmente os traques, como tudo naquela venda, eram falsificados, e só um ou outro rebentou, muito chochamente.
Dona Benta e a negra foram convidadas para assistirem à inauguração.
– Nossa Senhora! – exclamou tia Nastácia ao ver a torre de perto. – Quanto ferro! Neste andar Seu Pedrinho muda o “semblante” do sítio, Sinhá. A coisa já está ficando que a gente não conhece mais nada. Virando uma cidadinha estrangeira, com essas casas de operários e o “bangalão” do Mister. E as caras? Tudo esquisito. Aquele ali, vermelho como um presunto. Aqueles lá, de cabelo igualzinho cabelo de milho novo. Credo!…
Dona Benta deu parabéns a Mister Kalamazzo pela perfeição com que organizara o trabalho. E vendo o rinoceronte sempre de olho ferrado no americano:
– Que tanta atenção é aquela, Pedrinho? Quindim não perde um só dos movimentos do Mister…
O menino cochichou ao ouvido de Dona Benta: – “Ele é o nosso espião; está de guarda ao americano por causa da sabotagem…”
Dona Benta sorriu.
Às oito horas um sino tocou, anunciando o começo do serviço. Os operários dirigiram-se para a sonda.
Começou a batagem. A máquina fazia um movimento de vaivém, puxando e largando o cabo de aço, que subia até à roldana de cima, dava volta e descia, tendo na ponta a haste do trépano. A cada um desses movimentos o cabo erguia o trépano a um palmo de altura e o largava; no largar o trépano caía com a força do peso sobre a rocha do chão; desse modo ia desagregando, esfarelando essa rocha.
Um verdadeiro movimento de mão de pilão que sobe e desce sem parar, fazendo pum-pã, pum-pã, pum-pã… O barulho de pum era a subida do trépano; o barulho de pã era a descida, com o choque na rocha. Só se ouvia esse barulho e só se via o pedaço de haste que ficava para fora do poço, a subir e a descer na extremidade do cabo.
Quando Narizinho explicou a tia Nastácia o que era aquilo, a negra fez cara triste.
– Tenho dó das minhocas – disse ela. – Esses malvados estão macetando as coitadinhas
– Boba! Lá na profundidade em que o trépano está não existem minhocas – só rochas.
– Credo! – murmurou a negra, que não sabia o que era rocha.
Pedrinho contou a Dona Benta todo o trabalho da sonda. Mostrou a bomba de injeção, isto é, a bomba que está constantemente injetando água no poço, por dentro do oco das hastes.
– Lá no fundo – disse ele – essa água injetada forma lama com o material escavado pelo trépano, e pela pressão da água injetada a lama vai subindo até derramar-se para fora, na boca do poço. É o meio de extrair o material escavado. Do contrário a rocha moída ficava no fundo, atrapalhando o trépano, que bateria só nele, sem progredir.
– Há outro sistema de tirar o material – ajuntou Narizinho. – Por meio da caçambagem. Depois de perfurar um certo tempo, tira-se fora o trépano e desce-se uma caçamba para recolher o material escavado. Mas o nosso processo de injeção de água é mais aperfeiçoado.
Dona Benta achou graça da sabedoria técnica da menina.
As batidas eram incessantes, pum-pã, pum-pã, pum-pã, numa toada tão monótona que até dava sono. A distração dos meninos ficou sendo marcar um ponto de referência na torre a fim de acompanhar a lenta descida da haste. Numa hora de pum-pã a haste descia aí um meio metro mais ou menos, conforme a resistência da rocha perfurada.
Depois de três ou quatro horas de trabalho Mister Kalamazoo fez um sinal. O manobrista da máquina puxou uma alavanca. Tudo parou.
– Que há? – quis saber Pedrinho.
– Há que eles vão emendar mais uma haste – respondeu o Visconde.
– Ahn! É assim! – murmurou Dona Benta. – Estou compreendendo a razão daquela pilha de hastes ali fora.
– Pois é, vovó – disse Pedrinho. – Temos naquela pilha as hastes necessárias para descer até 1.500 metros de profundidade. Vão sendo sucessivamente atarrachadas para formar um “sistema rígido”, como diz o Visconde.
Dona Benta riu-se.
Mister Kalamazoo dividira o pessoal em três turmas, cada uma com oito horas de trabalho, de modo que o serviço fosse contínuo pelas 24 horas do dia. Mas era trabalho monótono. Um pum-pã de dia e de noite, só interrompido pelas paradas para colocar nova haste, ou mudar o trépano.
Quando chegou a hora de mudar o trépano, os meninos prestaram toda a atenção. Os homens suspenderam o trépano até acima da boca do poço e o desatarracharam. Estava com o corte completamente rombudo.
Foi substituído por um do mesmo calibre, bem afiado. Enquanto isso, o primeiro usado era posto numa carreta sobre trilhos e levado à oficina do ferreiro. Os meninos acompanharam a carreta, com Emília ajudando a empurrar.
Lá na oficina a carreta parou diante da forja. O ferreiro prendeu o trépano com as correntes dum moitão, ergueu-o e depositou-o dentro da forja, cobrindo-o de pedaços de coque. Fez fogo, que assoprou com um fole enorme. O coque ficou em brasa e o ferro do trépano foi avermelhando até chegar no ponto. O ferreiro manobrou de novo o moitão para tirá-lo da forja e colocá-lo sobre a bigorna, onde o foi malhando até restabelecer o corte perdido.
– Interessante como o ferro se torna maleável quando aquecido – observou Dona Benta, que também viera assistir à operação.
Terminado o conserto, o moitão trabalhou de novo, erguendo o trépano de cima da bigorna e descendo-o num tanque com água.
– Para dar têmpera – respondeu o ferreiro. – Quando se aquece o aço, ele perde a tempera, fica ferro mole; para que novamente ganhe a sua dureza de aço, tem que ser resfriado bruscamente na água.
Enquanto o ferreiro cuidava daquele trépano, lá na sonda os
operários concluíam a colocação do novo, e o serviço recomeçou, pum-pa, pum-pã, na monótona toada de sempre.
Dentro dum puxado coberto de zinco havia pelo chão grande número de trépanos de todos os calibres, desde os de dois palmos de diâmetro, uns monstros, até os pequenos de três polegadas.
– Por que essa diferença? – perguntou Pedrinho.
O Visconde explicou que o poço, iniciado com um diâmetro grande, iria diminuindo à medida que se aprofundasse.
– Começamos com o diâmetro de 20 polegadas – disse ele – e iremos tocar no petróleo com o diâmetro de 4 apenas. Isso por causa das entubações. À medida que o poço se aprofunda, tem de ser entubado cada vez que atravessa um lençol de água.
– Para fechar a água, sei – disse Pedrinho.
– Exatamente. E cada vez que é entubado, só pode continuar com um diâmetro menor, porque então o trépano passa a trabalhar dentro do entubamento feito. Se aparece mais embaixo outro lençol de água, temos que entubar novamente, para fechar esse outro lençol de água. Para isso colocamos tubos de menor diâmetro dentro dos tubos que já estão no poço.
E a perfuração prossegue com trépanos menores, para caberem dentro desses tubos de menor diâmetro – e assim por diante.
Tia Nastácia gritou lá da varanda que o almoço estava na mesa. Todos correram para a bóia, menos o Visconde. O coitadinho jurara a si próprio não largar de Mister Kalamazoo nem um segundo.
O som das pancadas do trépano chegavam à casa de Dona Benta.
– Lá está o pum-pã – disse ela. – Temos de ouvir esse som dia e noite até que o poço chegue ao fim.
Pedrinho, de ouvido atento, murmurou:
– Que som lindo, vovó! Som que contenta o coração…
– Sabe por quê? Porque cada golpe significa um avançozinho para o fundo, para lá onde está o petróleo e, portanto, um passo para a grande vitória. A beleza do som não está nele, está em você, Pedrinho.
Acabado o almoço, Emília foi dar farelo de pão ao peixinho que restava no tanque, e os outros correram à sonda. Sentaram-se e ficaram até a tarde, ouvindo o pum-pã, vendo a haste descer lentissimamente, como ponteiro de relógio, e assistindo às manobras de colocar novas hastes e substituir o trépano.
E assim se passaram duas semanas. O poço já estava a mais de cem metros de profundidade. Certo dia Mister Kalamazoo examinou, conjuntamente com o geólogo-químico, a lama saída do poço e ambos assentaram em qualquer coisa. Em seguida o americano deu uma ordem. O maquinista parou a máquina.
– Que há? – perguntou Pedrinho ao Visconde.
O Visconde respondeu, depois de uma consulta a Quindim:
– Eles vão mudar de sistema. Acham que o terreno está ótimo para ser perfurado com a rotativa.
– Bravos! – exclamou Pedrinho, que já se sentia cansado com o monótono de até ali. – Novidade ! Venham novidades!
Para passar dum sistema a outro foram necessárias muitas manobras; tiraram-se umas peças e colocaram-se outras; por fim tudo ficou pronto.
Pedrinho prestava toda a atenção. O que mais estranhou foi que a broca, arrumada em substituição do trépano, não era broca; não passava dum pedaço de cano de aço, aí da espessura de menos de dois centímetros, sem corte, sem dentes, sem nada.
O menino ficou intrigado. Se não tinha dentes, como é que aquilo, rodando no fundo do poço, conseguia brocar a rocha?
Tudo arrumado, a broca rotativa desceu ao fundo do poço e foi posta em movimento. Começou a girar sobre si mesma. Um silêncio. Acabara-se o pum-pã do trépano. A haste acima da boca do poço, girando, mostrava que a broca lá embaixo também girava. E como a haste descia mais depressa do que no sistema de trépano, Pedrinho viu que Mister Kalamazoo acertara com a mudança.
– Mas como desce? Como a broca perfura? – pensava ele consigo.
– Se é um simples cano de aço sem dentes, sem corte, sem nada, como podia corroer a rocha? Mistério. Não conseguindo por si mesmo resolver o enigma, apelou para o Visconde.
– É o seguinte – explicou o sabuguinho científico: – Mister
Kalamazoo, quando a broca vai começar a trabalhar, despeja no fundo do poço um punhado de aço granulado.
– Que aço granulado é esse?
– Uns carocinhos dum aço duríssimo, assim do tamanho de chumbo de caçar paca. A broca vai comprimindo esse aço granulado contra a rocha e a esfarela.
– Ahn! Isso sim! – exclamou o menino com o rosto iluminado. – Eu até já estava com dor de cabeça de tanto parafusar no assunto. Aço granulado, sim…
E foi ao depósito de materiais em procura do tal aço. Encontrou um caixão cheio. Examinou aqueles grãozinhos, apertou um nos dentes para verificar se de fato não era chumbo e com um punhado no bolso correu para o mostrar a Dona Benta, pensando consigo: “Ela vai ficar ainda mais boba do que eu.”
De fato Dona Benta ficou boba, não muito, porque era filósofa, mas meio boba.
– Veja só! – disse ela. – Com estas coisinhas de nada conseguem-se efeitos tão grandes. Realmente, a aparência é de chumbo de caça.
Pedrinho também mostrou o aço granulado a tia Nastácia, na cozinha.
Mas foi inútil. A negra riu-se.
– Isto é chumbo de caçador, menino. Não está vendo?
Para tia Nastácia tudo quanto era metálico e redondinho havia de ser chumbo de caça e pronto. O menino tentou convencê-la.
– Chumbo é mole, boba, você bem sabe disso. E estes carocinhos a gente pode martelar com toda a força que não achatam, quer ver? – e trouxe o martelo e bateu neles com tanta força que um ficou encravado na cabeça do martelo.
– Convenceu-se? – exclamou Pedrinho vitorioso.
Mas a negra, que era teimosa, veio com uma das suas.
– Isso só quer dizer que é chumbo duro – disse ela. – Não pense que me tapeia, não. Se é de “meta” redondinho, está claro que é chumbo – isso desde que Nosso Senhor fez o mundo. Esta negra é velha, mas não é boba, não.
Pedrinho contou o caso a Dona Benta, achando que só à força de trépano seria possível abrir aquela cabeça dura.
O químico-geólogo era um moço muito distinto, parecido com o Clark Gable. Vinha sempre jantar com Dona Benta, com a qual conversava durante horas, em inglês. Chamava-se Mr. Champignon, filho de francês e americana. Numa dessas prosas, Dona Benta perguntou:
– Meu caro Mr. Champignon, o poço já está a 300 metros e nada ainda de óleo. A que profundidade supõe que poderemos encontrar qualquer coisa’?
– Meus cálculos – respondeu o químico – são para 600 metros, isso com base nos estudos comparativos que fiz entre estes terrenos e os do Texas, onde trabalhei muito tempo. Mas o Visconde calcula em mais – calcula em 800 metros.
O fato de aquele cientista americano citar com tanta seriedade a opinião do Visconde fez Dona Benta sorrir.
– Aqui entre nós, Mr. Champignon – disse ela em seguida – acha que o Visconde seja realmente um sábio de verdade? Não tem qualquer dúvida sobre a ciencinha dele?
O químico-geólogo possuía a alma pura, dessas onde os sentimentos invejosos não entram. Respondeu com o coração nas mãos:
– Acho, sim, minha senhora. Acho que o Senhor Visconde de Sabugosa do Poço Fundo (que é como a Senhorita Emília me disse que ele se chama), é na realidade um grande sábio. E isso me assombra extraordinariamente, porque, afinal de contas, não passa dum sabugo. Logo que aqui cheguei meu queixo caiu; primeiro, ao ver um sabugo vivente; depois, ao verificar que era falante; e por fim, ao reconhecer nele um sábio – mas sábio de verdade, desses que descobrem coisas e mudam as diretrizes da civilização.
– Será possível, Mr. Champignon?
– Perfeitamente, minha senhora. Já escrevi a uma sociedade científica da América sobre o estranho fenômeno. Mandei um memorial sobre o Visconde. Estou convencido, entretanto, de que ninguém me levará a sério – e não me queixo. Eu faria o mesmo. Se me falassem dum sabugo assim, eu não acreditaria. Mas vi. Estou vendo, e sou forçado a concordar com Shakespeare quando disse que há na terra e no céu mais coisas que o supõe a nossa vã filosofia. O Visconde, minha senhora, ainda há de assombrar o mundo – quando o mundo puser de lado a incredulidade e prestar atenção nele.
Dona Benta ficou pensativa. Que mistério, a Natureza! E como ainda está atrasada a ciência dos homens! O que ela observava naquele sítio também punha-a atrapalhada, com as ideias zonzas. Tudo coisas que só vendo. Contadas lá fora ninguém acreditaria. O fenômeno emiliano, por exemplo.
Emília nascera simples boneca de pano, morta, boba, muda como todas as bonecas. Mas misteriosamente se foi transformando em gentinha.
Todos ainda a tratavam de boneca, por força do hábito apenas, porque na realidade Emília era gente pura, de carne. Fazia tudo que as gentes fazem – comia com ótimo apetite, bebia, pensava, tinha um coraçãozinho lá dentro, e alma e tudo. Como explicar este mistério, esta transformação duma feia boneca de pano em gente?
A mesma coisa com o Visconde, um reles sabugo que ela vira tia Nastácia apanhar ao pé do cocho da vaca. Pois não estava agora transformado em sábio – e em sábio tão sabido que até tonteava o pobre Mr. Champignon?
Dona Benta suspirou.
– Se este meu sítio não é um sonho – disse de si para si – é então a coisa mais espantosa que o mundo ainda viu.
E beliscou-se para ver se estava dormindo ou era sonho. Doeu. Logo, não era sonho.
10 – Em marcha
Aos 230 metros de profundidade a perfuração alcançou um lençol de água, ou um “horizonte aqüífero”, como dizia o Visconde. Assim que a água transbordou pela boca do cano-guia, Pedrinho correu a prová-la. Estavam todos ansiosos por verem surgir água salgada, sinal da formação marinha daqueles terrenos.
Não era salgada.
– Ainda é água de cima – explicou Mr. Champignon, depois de analisá-la no pequeno laboratório montado perto da sonda. – Tem a mesma composição das águas da superfície. Mas de repente daremos em água que já não é de chuva, e sim fóssil – água retida no seio da terra há milhares e milhares de anos.
No jantar daquele dia Pedrinho repetiu a história da água fóssil, que muito interessou Dona Benta. Ao ouvir falar em água salgada, Tia Nastácia bateu palmas.
– Que bom! Se é salgada, a gente seca ela e faz sal – e fica livre das ladroeiras do Elias. Aquele centurião cobra 1,50 por um saquinho de sal que não dá para nada, o peste…
A água que saía do poço transbordava numa vasão de 200 litros por hora. Mr. Kalamazoo, depois duma conferência com Mr. Champignon, resolveu fechá-la.
– Temos que entubar e cimentar – disse ele. A operação do entubamento do poço divertiu muito os meninos, por ser novidade. O poço fora perfurado até os 230 metros com um diâmetro de 35 centímetros, de modo que cabiam nele os tubos de 30 centímetros. E Mister Kalamazoo mandou que os operários trouxessem para ali 46 tubos desse diâmetro, tirados da pilha competente.
– Por que 46? – indagou Narizinho.
– Porque cada tubo tendo 5 metros, 46 tubos têm 230 metros – ou seja a profundidade do poço – respondeu o Visconde.
Os tubos de revestimento, vindos da América, achavam-se empilhados em vários montes, conforme o calibre. Havia o monte dos de 35 centímetros de diâmetro; o monte dos de 26; o monte dos de 22; o monte dos de 18 e finalmente o monte dos de 12 centímetros.
– Em cada um desses montes – explicou o Visconde – há 1.500 metros de tubos, exceto no primeiro, em que só há 400. Quer isso dizer que podemos realizar cinco entubações sucessivas, uma dentro da outra.
– Que desperdício! – exclamou Emília. – Se eu fosse dirigir o trabalho, faria a entubação dum modo muito mais econômico.
– Como?
– Em vez de cada vez entubar de cima para baixo, com uma entubação dentro da outra, eu entubava em continuação, está entendendo?
Pedrinbo enrugou a testa, sinal de que não estava entendendo.
– Sim – explicou Emília. – Fazia como no telescópio: uma
entubação mais fina continuava do ponto em que a outra parasse – e desenhou no chão a sua idéia.
– É mesmo! – exclamou Pedrinho entusiasmado. – Você fez uma grande descoberta, Emília. Vamos propor a Mister Kalamazoo o sistemaemiliano.
Mas a descoberta da Emília não passava de descoberta de pólvora. Coisa velha, esse processo de entubar telescòpicamente, com grande economia de tubos.
– Mas tem um grave defeito – disse o perfurador. – Raro as águas ficam perfeitamente fechadas, e por isso esse sistema, apesar de mais econômico, nunca é usado. O outro, embora caro, garante o fechamento das águas dum modo absoluto.
Os operários trouxeram para ali os canos de 30 e deram começo à entubação. Cada tubo era agarrado pelo moitão, suspenso na vertical em cima do tubo-guia e enfiado nele até só ficar de fora um palmo. Nesse palmo de fora os “gatos” agarravam, mantendo o tubo em suspenso; e o moitão erguia um segundo tubo, que era atarrachado nele. Desse modo desceram ao fundo do poço os 46 tubos, formando de alto a baixo uma coluna contínua.
– Sim, senhor! – disse Narizinho. – Serviço bem feito. Mas o que mais admiro é o moitão. Para ele não há peso. Ergue tudo no ar com a maior facilidade. Que grande invenção!
– Realmente – concordou o Visconde. – Esse meio inventado pelo homem de multiplicar a força torna possível os maiores prodígios. Até locomotivas gigantescas são levantadas no ar como se fossem de paina, por meio de guindastes que não passam destes mesmo moitão aperfeiçoado. Cada cano desses, sabe quanto pesa?
– Calculo em dez arrobas.
– Suba! Pesam 300 quilos – e no entanto esse moitãozinho os ergue no ar como se fossem paus de lenha leve.
Depois de descidos os canos, Mister Kalamazoo tratou da cimentação. Para isso fez o seguinte: Primeiro deixou a coluna de canos suspensa um palmo acima do fundo do poço. Depois injetou dentro dela uma boa quantidade de cimento bem mole, que, por meio da força da bomba, foi comprimindo um tampão colocado sobre a massa de cimento. Foi comprimindo, comprimindo, até que o cimento saiu todo da coluna de tubos, deu volta e se espalhou por fora da coluna, enchendo o vão entre ela e as paredes do poço. E como era cimento de secar em contacto com a água, foi secando e obturando o lençol de água. Pronto. A água em cima parou de vasar. Estava fechada. Podiam recomeçar a perfuração. Mas Mister Kalamazoo só retomou o trabalho depois duma parada de três dias para que o cimento endurecesse completamente.
Recomeçado o trabalho da perfuração com as rotativas, Mister Kalamazoo notou que o avanço não estava rendendo nada. Caiu a uma miséria de centímetros por dia, em vez de metros.
– Temos de voltar ao trépano – disse o americano. – Essa camada lá embaixo a rotativa não fura.
– Como ele sabe que tem de voltar aos trépanos? – indagou Pedrinho.
– Saber propriamente ele não sabe – explicou o Visconde. – Nos poços de exploração a gente nunca sabe de nada com certeza. Imagina apenas, supõe.
– Que história de poço de exploração é essa?
– Poço de exploração é o primeiro que se abre numa zona. Corresponde portanto a um pulo no escuro. O perfurador não possui dados para saber que terrenos vai atravessar, que águas e quantas vai encontrar, etc. Tem que ir apalpando, experimentando. E é o que vai fazer o trépano. Como qualquer coisa está impedindo que a broca roa as rochas, ele vai experimentar o trépano – mas sem saber se dará resultado.
– E se não der?
– Terá então de recorrer a outro meio qualquer, não sei. Talvez lance mão da broca de diamantes, que é a tira-prosa das rochas muito duras. Depois de aberto o poço de exploração, tudo fica imensamente facilitado. Surgem os poços de produção – ou poço de exportação, como dizem os perfuradores na sua língua de acampamento.
– Facilitado por quê?
– Porque já sabem como é o terreno lá no fundo, quantos horizontes aqüíferos há, a que profundidades, e de que rochas são formadas as camadas, etc. Sabem tudo e, portanto, adotam a sonda mais própria para o caso, e não erram, e não apalpam, e fazem o trabalho com rapidez muitíssimo maior. O primeiro poço é sempre o mais demorado e caro.
– O primeiro é o poço-osso – disse Emília – os demais são os poços-canja, não é isso?
O Visconde não respondeu; não gostava do modo de falar da Emília, que lhe parecia cafajéstico.
Colocado o trépano, recomeçou o pum-pã, do qual os meninos já andavam com saudades. De nada valeu. A coisa não ia. Mister Kalamazoo cocou a cabeça. Súbito plaf!, um desastre. De tanto bater na misteriosa rocha, uma haste se enfraqueceu na emenda e quebrou. Lá se foi para o fundo o trépano com todo o resto da coluna de hastes…
Os dois americanos conferenciaram uns minutos sobre a situação. Só havia uma coisa a fazer: salvar as hastes e o trépano caídos no poço.
– Vamos ter pescaria – cochichou o Visconde.
– Bravos! – exclamou Emília batendo palmas. – Pescaria é comigo – e que lindo se pescam um peixe fóssil de milhões de anos atrás!
– Peixe fóssil, nada! Vão pescar o trépano que caiu no poço, só isso.
Os meninos acompanharam com a maior curiosidade a operação da pesca do trépano. Emília assanhadíssima e sempre com esperança do peixe fóssil, não arredou pé dali. Nem almoçar foi nesse dia.
Primeiramente, Mister Kalamazoo estudou com muito cuidado a situação. Mediu as hastes que ficaram fora do poço para achar a profundidade exata em que se dera a ruptura: 189 metros.
– All right! – rosnou ele. Quer dizer que há lá dentro 26 hastes.
– Que conta é essa? – indagou a menina.
– Muito simples – respondeu o Visconde. – Como cada haste tem 7 metros, ele dividiu 189 por 7 para saber quantas hastes ficaram dentro do poço.
– Mas então errou, porque 189 divididos por 7 dá 27 e não 26. Errou por uma.
– Essa que falta é a haste-guia e o trépano. Ele fez o desconto.
Para realizar a pescaria, o americano desceu um aparelho chamado “pescador”, com garras dispostas de modo a prender solidamente a ponta da haste quebrada logo que tocasse nela. Esse aparelho foi fixado numa coluna de hastes e descido cuidadosamente. Quando ia chegando aos 189 metros, Mister Kalamazoo mandou que o manobrista movesse a máquina o mais devagar possível, e ficou com a mão apoiada na coluna descendente para, por meio das menores vibrações, perceber o momento em que o pescador tocasse na ponta da haste partida.
– Veja a atenção dele – observou o Visconde. – Está de olhos fechados para não distrair-se com coisa nenhuma, rodeado dos operários imóveis, todos guardando o maior silêncio. Como não pode ver com os olhos da cara, Mister Kalamazoo está vendo com o tacto, à moda dos cegos. Tem que guiar-se pela vibração do metal.
E assim foi. A coluna de haste com o pescador na ponta foi descendo, descendo em marcha lentíssima, até que o americano ergueu bruscamente a mão – sinal ao manobrista para parar. A máquina parou. Mister Kalamazoo abriu os olhos. Pelo tacto sentira que o pescador tinha tocado na ponta da haste quebrada. Restava agora manobrar delicadamente, erguendo e baixando a coluna de pesca, numa série de tentativas, até que a ponta da haste quebrada entrasse dentro das garras do pescador. Sua mão, pousada de leve, não saía da coluna descendente, para sentir o que se passasse lá embaixo. Súbito:
– All right! – exclamou. – Está presa.
E estava mesmo. A ponta da haste quebrada fora segura pelas garras do pescador. A operação seguinte seria torcer a coluna de pesca até que uma das hastes da coluna caída cedesse numa emenda qualquer e se desatarraxasse.
As hastes são atarrachadas umas nas outras por meio de luvas. Havia lá no fundo, portanto, 24 luvas, emendando 26 hastes. A que estivesse menos bem apertada, essa destorceria primeira.
– Mas os perfuradores ficam danados – explicou o Visconde – quando em vez de destorcer-se uma das luvas bem debaixo, destorce-se uma de cima.
– Por quê? – indagou Pedrinho.
– Porque destorcendo uma bem debaixo eles sacam fora, duma vez, um bandão de bastes, ao passo que destorcendo em cima só sai uma ou duas hastes, obrigando-os a muito mais trabalho.
Daquela vez os operadores tiveram sorte. A luva que cedeu foi a que ligava a vigésima haste à vigésima primeira, de modo que ao suspenderem a coluna de pesca saíram duma assentada 20 hastes. Só ficaram no poço as 6 restantes.
Repetiram-se as manobras de pesca e por fim as 6 hastes finais também saíram. Restava pescar a haste-guia com o trépano na ponta, operação feita com um pescador de tipo diferente e que correu sem novidades.
Foi um alívio quando o trépano apareceu à boca do poço, com cara de cachorrinho que quebrou a panela (Emília). Uma hora apenas tinha durado a pescaria. Tempo magnífico. Há pescas dificílimas, que duram semanas, até meses. Mister Kalamazoo recolheu um pedacinho de rocha encravado numa fenda do trépano. Achando-a esquisita, levou-a a Mr. Champignon.
A opinião do químico-geólogo não se fez esperar.
– Diábase – disse ele depois do exame. – Demos em cima duma camada de diábase.
O Visconde explicou aos meninos que a tal diábase era uma rocha eruptiva muito dura de furar, que aparece em intrusões, por entre as camadas sedimentárias.
– Uma peste de dureza – disse ele. – Mister Kalamazoo vai suar na ponta do nariz.
E suou. Apesar dos cálculos otimistas de Mr. Champignon sobre a provável espessura da intrusão eruptivas, Mister Kalamazoo levou um mês para perfurar dez metros – e não viu sinal de fim. Estava com medo que a intrusão se prolongasse por cem ou duzentos metros, o que seria uma tremenda maçada. Felizmente a hipótese não se realizou. Aos doze metros a eruptiva chegava ao fim.
O processo usado para perfurar essa rocha foi o da coroa de diamantes, isto é, uma broca com seis diamantes encravados no aço, só com as pontinhas de fora. O diamante é o corpo mais duro que existe; corta a todos os outros e não é cortado por nenhum.
Na perfuração rotativa a rocha é roleteada, de modo que dentro do oco da broca vai ficando um cilindro tão bem calibrado como se feito ao torno.
Depois da broca perfurar aí uns dois metros, o oco da broca fica totalmente cheio por esse cilindro e é preciso arrancá-lo fora. O modo de fazer isso é interessante. Por meio da bomba de injeção o perfurador faz cair dentro da broca um punhado de pedregulho. As pedrinhas entalam-se entre o cilindro da rocha e as paredes internas do tubo da broca, amarrando o cilindro. Depois disso a máquina dá um puxão para cima. O cilindro da rocha quebra-se na base e pode ser retirado do poço.
Com muita dificuldade os meninos levaram para casa um desses cilindros de diábase, para o mostrar a Dona Benta.
– Veja que bonito, vovó! Um rolete de diábase cortado à força de diamantes.
Dona Benta muito admirou aquela rocha quase negra, de granulação finíssima, como a das lousas – e mandou que a levassem para a cozinha.
– Tia Nastácia anda reclamando um tamborete. Isso dá um
tamborete de primeira ordem.
A negra assombrou-se de que lá no fundo da terra existissem pedras com aquele formato que “até parecia feito.”
– Não existem não – explicou Pedrinho. – Este cilindro foi feito – foi cortado num maciço de rocha por meio da broca de diamantes.
A negra riu-se.
– Diamantes, eu sei disso! O Mister achou essa pedra lá no fundo e agora está inventando essa história de cilindro e diamantes. Tomara ele ter um diamante para botar no anel do dedo. Pensa que sou boba?
A perfuração prosseguiu sem novidades, com rotativa, até aos 500 metros, cota em que, subitamente, irrompeu nova água à boca do poço.
Mister Kalamazoo provou-a, com uma careta.
– Salt water! – exclamou. – Água salgada!
Era um grande acontecimento.Os meninos correram a provar e também fizeram caretas. No maior assanhamento recolheram numa lata vários litros e foram para casa a fim de assombrar Dona Benta.
– Água salgada, vovó! – gritou Pedrinho da porta. – Água fóssil. Água que esteve presa no fundo da terra alguns milhões de anos. Prove.
Dona Benta provou, com a mesma careta de Mister Kalamazoo.
– Venha ver, Nastácia!
A negra apareceu, de colher de pau na mão.
– Água salgada, veja! Do poço. Água fóssil – atropelou Narizinho – fazendo a negra provar.
– Chi! Salmoura pura – disse ela careteando também. – Que seria o malvado que despejou sal no poço? Tão caro – mil e quinhentos o saquinho – e gente desperdiçada estragando sal para salgar água de peixe podre…
Custou convencê-la de que era uma salmoura natural que vertia do poço em grande quantidade. Isso a deixou radiante.
– Ora graças! A gente secando no fogo uma salmoura dessas fica sal no fundo – sal igualzinho àquele que a gente compra. Podemos secar bastante água desse poço e fazer um monte de sal para cozinhar um mês inteiro – e pelo menos nesse mês a gente não engorda a barriga daquele turco ladrão. Mil e quinhentos por um saquinho de nada, Sinhá. Onde já se viu sal pelo preço que o turco está vendendo? Vá ser ladrão na terra dele, credo!…
Pedrinho arredou as panelas do fogão e pôs ao fogo o tacho de fazer marmelada, com a salmoura fóssil dentro, e ficou ali até que toda a água se evaporasse e uma camadinha de sal aparecesse no fundo. A negra dava risadas de gosto, à lembrança da peça que iriam pregar no Elias Turco.
O jantar daquela noite (saiu muito atrasado o jantar) foi temperado com o sal pré-histórico do Caraminguá n.° 1 – um sal enterrado havia milhões de anos e agora posto de novo em circulação graças à iniciativa dos meninos petroleiros.
Emília levou para a mesa um pires com uma pitada. Volta e meia punha a ponta do dedinho na língua e depois no sal – e na língua outra vez, fazendo uma careta de gosto.
– Isso é que é sal! – dizia. – Pena não terem também pescado um peixe fóssil – dos que moravam nessa água salgada no tempo em que ela foi mar. Teríamos então um quitute completo, tirado do guarda-comida subterrâneo do globo terráqueo.
– Seria perigoso – advertiu Pedrinho.
– Por quê?
– O Visconde fala dum peixe de nome anfioxo, que na opinião dele foi um dos antepassados do homem. Sendo assim, você correria o risco de comer um seu tatatatatataravô fóssil…
– Mas eu sou boneca – disse Emília. – Não pertenço à raça humana.
– Morda aqui! – exclamou o menino espichando o dedo. – Você é tão gente como eu. É gentíssima até. Essa história de boneca, Emília, ninguém mais engole…