Monteiro Lobato

O Poço do Visconde

 Capítulos 11 e 12

 

11 – Petróleo, afinal!

         Depois dos 700 metros os meninos notaram que o perfurador e o  químico-geólogo vinham prestando muita atenção aos testemunhos extraídos do poço. Eles chamavam testemunhos aos tais cilindros de rocha obtidos por meio da perfuração rotativa. Num galpão armado à esquerda da sonda esses testemunhos iam sendo dispostos uns em cima dos outros, formando altas colunas, com papeletas indicativas das profundidades.

         Desse modo ficava perfeitamente visível a constituição do subsolo daquela zona.

         Pedrinho aproveitou-se da vantagem para desenhar em várias folhas de papel-cartão emendadas o Corte Geológico dos Terrenos de Vovó, de acordo com as indicações de Mr. Champignon. Marcava no papel, com riscos horizontais, as camadas atravessadas, indicando a espessura de cada uma e o material de que eram compostas. Esse Corte Geológico foi pregado na parede da sala de jantar, em diversas secções, ocupando-a toda.

         Certo dia, ao extrair um testemunho, o rosto de Mister Kalamazoo iluminou-se. Era um cilindro de arenito um tanto diverso dos anteriores na cor e também mais poroso. O americano chamou o químico-geológo e por algum tempo conferenciaram, com muitos exames e cheiramentos do cilindro. Mr. Champignon levou um pedaço para o laboratório. Quando voltou tinha a cara risonha.

         – Sim – disse ele. – É um arenito gasífero, sinal evidente de que estamos bem perto do petróleo.

         Disseram isso em inglês, que o rinoceronte imediatamente traduziu para o Visconde e este correu a contar aos meninos.

         – A broca está perfurando uma camada de arenito poroso gasífero, isto é, impregnado de gás de petróleo. Quer dizer que estamos perto dum horizonte petrolífero.

         A alegria foi imensa. Houve hurras e pinotes. Pedrinho foi correndo dar a boa notícia a Dona Benta.

         – Gás, vovó! Acaba de sair um arenito poroso impregnado de gás – de gás de petróleo! Ora, onde há fumo, há fogo. Logo, se temos gás de petróleo, então é que o petróleo está perto. Um não anda sem o outro.

         – A que profundidade, meu filho?

         – Setecentos e cinquenta metros.

         – Então o nosso viscondinho vai ganhar de Mr. Champignon, pois previu o petróleo a 800 metros. É um danado…

         Dada a boa notícia, Pedrinho voltou para a sonda na volada, de medo que o petróleo jorrasse na sua ausência. Mas não jorrou. A perfuração ainda prosseguiu por mais uns trinta metros sem alcançar o petróleo; mas cada novo testemunho que saía vinha com mais evidências dele. O arenito poroso já não era gasífero e sim gordurento, a ponto de sujar as mãos de quem o pegava. Destilando um pouco desse arenito, Mr Champignon obteve um frasco dum óleo pardo-esverdeado, que classificou de excelente petróleo parafinoso – um dos melhores tipos que existem.

         Depois dessa prova os dois americanos conferenciaram animadamente. Mr. Champignon era de parecer que se suspendesse o trabalho da perfuração e se esvaziasse o poço. Calculou que a coluna de água lamacenta que enchia o poço estava exercendo uma pressão de 90 atmosferas, o bastante para impedir que o petróleo viesse à tona, caso já tivessem penetrado num horizonte petrolífero dos não muito grandes. Mas Mister Kalamazoo, que com a sua longa prática de poços adivinhava as coisas, resolveu perfurar um pouco mais, e o poço no dia seguinte chegou aos 798 metros.

         – Agora, sim – disse ele, vendo a boca do cano-guia referver de borbulhas de gás ascendente. – Podemos esvaziar o poço, depois de colocado o “blowout preventer”,

         “Blowout preventer” não passa do nome inglês do registro ou torneirão que se coloca na boca do poço para impedir que o petróleo jorre e inunde tudo. Pronuncia-se blôáut priventer.

         Um fato daquela importância precisava ser sabido lá em cima – e Pedrinho despachou Emília na carreira com recado a Dona Benta. Emília saiu voando.

         – Dona Benta! – gritou ela ao chegar. – Já vão botar no poço o “blowout preventer” e Pedrinho quer que a senhora corra à sonda quanto antes por que “a coisa está por um fio.”

         Dona Benta, ignorante do que fosse blowout preventer, fez cara de interrogação muda. Emília explicou tratar-se do registro, do torneirão que impede que o petróleo faça asneiras.

         Percebendo que se tratava de negócio sério, Dona Benta chamou tia Nastácia e botou um xalinho ao ombro, depois de caçoar com Emília dizendo que ela, às vezes, bem precisava dum blowoutezinho quando asneirava demais. Em seguida murmurou, voltando-se para a negra:          – Será possível que estes diabinhos tirem mesmo petróleo?

         – E Sinhá ainda duvida? – respondeu a preta. – Que é que não fazem? Depois que deram comigo na lua, cozinhando para S. Jorge, com aquele dragão horrendo no quintal, eu não duvido de mais nada nesta vida…

         Enquanto caminhavam, uma grande agitação refervia na sonda. Por descuido no embarque das peças, na América, houve troca de caixões, e em vez de vir a caixa com as peças do blowout preventer, veio um com… dois aparelhos de rádio!

         – Sabotagem! – gritou Pedrinho. – Juro como foi sabotagem daqueles trustes malvados. E agora Visconde?

         O Visconde não sabia o que responder. Era um caso novo, nunca discutido nos tratados de petróleo que ele andava lendo. E o pior de tudo foi que justamente naquele instante um ronco subterrâneo se fez ouvir, e logo depois as borbulhas do poço pipocavam com redobrada violência.

         – Estamos perdidos! – gritou Mister Kalamazoo. – O petróleo vai sair e não temos meio de fechar o poço – e no seu desespero deu murros na cabeça e puxões nos cabelos louríssimos.

         – Que há? – perguntou Dona Benta, que vinha chegando com a preta e a Emília. – Será que Mister Kalamazoo enlouqueceu?

         – É que não há “blowout preventer”! – respondeu Pedrinho muito aflito. – Sabotaram a remessa de materiais, mandando numa caixa, em vez do “blowout preventer”, dois aparelhos de rádio, imagine…

         – E agora?

         – Agora eles não sabem o que fazer. O gás está borbulhando com força cada vez maior. A coluna de água do poço, que pesa 90 atmosferas, está resistindo por enquanto. Mas quando não puder mais resistir ao impulso do petróleo? Aí então vai tudo pelos ares e o petróleo derrama-se por estes campos, e enche o Caraminguá e inunda tudo e a senhora leva a breca, tal qual a companhia americana que faliu por ter tirado petróleo demais…

         – Nossa senhora! – exclamou Dona Benta pondo as mãos. – Que vai ser de mim, Santo Deus?

         – O pior – continuou Pedrinho – é que Mister Kalamazoo perdeu completamente a cabeça. Olhe o desespero dele…

         – A cabeça não digo – observou Emília – mas os cabelos vai perder todos, se continua a arrancá-los assim…

         Nesse momento o estrondo subterrâneo roncou mais forte.

         – Chi! – exclamou tia Nastácia. – Trovoada no fundo da terra é coisa que nunca vi. Vai chover grosso às avessas…

         A situação era verdadeiramente trágica. Mr. Champignon deixou-se cair sentado sobre um trépano, com a cabeça entre as mãos. Estava arrasado. Mister Kalamazoo andava de um lado para outro a ameaçar os céus com os punhos fechados e a dizer nomes que deviam ser feíssimos – e felizmente só Quindim entendia. Vendo os chefes naquele estado de desespero, os operários olhavam-se atônitos, sem saberem o que fazer.

         Dona Benta, tomada de medo, caiu sentada, com aquela sua célebre sufocação cardíaca dos momentos perigosos. E os roncos subterrâneos cada vez mais fortes… E a boca do poço cada vez mais borbulhante de gás…

         No meio de tanto horror, só Emília e o Visconde conservavam-se absolutamente donos de si. Foram conferenciar com Quindim.               Conferência rápida. Quindim aprovou a idéia de Emília e levantou-se do chão onde estava deitado. Pesadamente encaminhou-se para a sonda, seguido do Visconde, enquanto Emília voava ao escritório.

         Ao chegar à sonda Quindim entrou e, com enorme assombro de todos, plantou-se sentado em cima do cano-guia!

         Apesar do seu desespero, Mister Kalamazoo não pôde deixar de rir-se. Em toda a sua longa vida de perfurador, jamais tivera ensejo de ver um “blowout preventer” daquela marca – blowout paquidérmico!

         – Pronto! Está tudo salvo! – gritou o Visconde. – A coluna d’água do poço faz sobre o petróleo que quer subir um peso de 90 atmosferas. Quindim pesará outras tantas atmosferas – e com todas essas atmosferas somadas juro que escoramos o petróleo até que o “blowout” chegue.

         Estas últimas palavras fizeram Mister Kalamazoo arregalar os olhos.

         – Até que o “blowout” chegue, Visconde? – repetiu ele. – Que história é essa?

         – Sim, até que chegue da América. Emília foi ao escritório fazer a encomenda. Basta que Quindim escore o petróleo uns vinte minutos e teremos aqui o blowout preventer.

         O americano ficou na mesma.

         – Sim – continuou o Visconde. – Emília vai pedir o blowoout com a maior urgência. Já pediu. Olhe a carinha dela…

         Emília vinha voltando, muito lampeira, de mãos à cintura.

         – Pronto! – exclamou ao chegar. – Pedi à fábrica que mandassem imediatamente o blowout esquecido e passei-lhes uma descompostura tremenda. Em quinze minutos teremos o torneirão aqui.

         O absurdo era tamanho que Mister Kalamazoo sentiu ímpetos de amassar Emília com um soco.

         – Temos o blowout aqui, como, boneca duma figa? – berrou ele.

         – Figa é o seu nariz, sabe? – respondeu ela abespinhada. – Pedi o blowout à fábrica sim, com ordem para que o mandassem com a maior rapidez pelo “Faz-de-Conta n.° 4”, que é o avião mais veloz da minha empresa.

         Mister Kalamazoo suspirou e foi sentar-se no trépano ao lado de Mr. Champignon. E também enterrou a cabeça entre as mãos, no maior desnorteamento da sua vida.

         Minutos se passaram. Quindim, firme em cima do poço, somava o seu peso ao peso da coluna d’água e ambos iam escorando o petróleo, o qual roncava lá no fundo cada vez mais furioso por sair. Súbito, um zunido distante atraiu a atenção de todos. Um ponto negro apareceu no céu azul.

         Era o avião da Emília. Chegou. Posou. O piloto fez sinal aos operários e gritou-lhes:

         – Trago aqui uma grande caixa, pesadíssima. Venham retirá-la.

         Os operários foram e arrastaram a caixa até à sonda. Abriram-na.

         – Mais rádio? – gritou Pedrinho aproximando-se.

         Não. Dessa vez a encomenda viera certa: “um blowout preventer” novinho.

         Quando Mister Kalamazoo viu que era mesmo um blowout, seu assombro não teve limites. Ficou completamente bobo. Impossível compreender o milagre. Por fim acordou do estuporamento e correu a colocar a peça chegada. Mas era impossível atarrachá-la no cano-guia, com o rinoceronte sentado em cima – e tirar Quindim dali era soltar o petróleo.

         Que fazer?

         – I will take a chance – murmurou ele, como quem diz: Vou arriscar. Deu ordem aos operários para que limpassem e engraxassem a rosca do cano-guia e a do “blowout”, e depois de tudo arrumado do melhor jeito pediu a Quindim que pulasse fora. Quindim pulou e os operários, sem perda de um segundo, ergueram a pesada peça e puseram-se a atarrachá-la no cano-guia. Mas com a saída de Quindim a coluna d’água do poço não escorou o petróleo e começou a jorrar a metros de altura, enlameando tudo.

         – Hurry up! Hurry up! era só o que sabia dizer Mister Kalamazoo. Depressa! Depressa! E nunca homem nenhum foi tão bem obedecido. Os operários trabalharam como relâmpagos de pernas e braços. Num instantinho o blowout foi atarrachado.

         E não sem tempo. Assim que os homens deram a última volta na rosca tiveram de fugir dali aos pinotes, porque o petróleo ganhara grande impulso e arremessara para o ar, com enorme violência, o resto da coluna d’água. Uma chuva de lama barreou a torre de alto a baixo, espirrando até em Dona Benta e tia Nastácia, distantes dali. Em seguida o jorro de lama avermelhada foi substituído por um jorro negro, tão violento que arrebatou a parte superior da torre.

         Todos correram para longe, numa gritaria.

         – Petróleo! Petróleo!

         Era o petróleo, afinal! Era o jorro de petróleo salvador do Brasil, que se levantava numa coluna magnífica até quarenta metros para o céu. Lá fazia uma curva de repuxo na direção do vento e caía sob forma de chuveiro forte. E como aconteceu que Dona Benta, tia Nastácia e os meninos estivessem na direção do vento, foram colhidos pela chuva de óleo, ficando completamente empapados…

         Emília e o Visconde avançaram, por dentro da chuva negra, até à roda do blowout, que torceram a fim de fechar o registro. Foram fechando-o e, à medida que o registro se fechava, o repuxo de petróleo foi diminuindo, baixando, até que cessou de todo. O Caraminguá n.° 1, o primeiro poço de petróleo no Brasil, estava controlado – isto é, de freio nos dentes, humilde como um cavalo que abaixa a crista diante da força do peão!

         Um hurra tremendo ecoou. Os operários batiam palmas e gritavam, saudando o maravilhoso acontecimento. Tinham sido os obreiros do Poço Número 1 – o poço que iria mudar os destinos de um país, arrancando-o da sua eterna anemia econômica para lançá-lo na larga Avenida do Progresso Sem Fim.

         – Viva Mister Kalamazoo! – gritou Pedrinho.

         – Viva Quindim o blowout de carne! – gritou Emília.

         – Viva o Visconde, o grande geólogo! – gritou Narizinho.

         Os operários, reunidos a pouca distância, acompanhavam as aclamações dos meninos.

         – Vocês esqueceram do pobre Mr. Champignon – lembrou Dona Benta.

         – Viva Mr. Champignon! – gritou Narizinho.

         O químico-geólogo, lá da porta do laboratório, agradeceu a homenagem com uma curvatura de cabeça.

         – Tudo está ótimo – disse Dona Benta. – Mas toca a voltar para casa correndo. Estamos todos que nem pavios de lampião de querosene…

         Realmente assim era. Ninguém escapara ao banho de óleo negro. O pobre Visconde, então, que era sabugo e portanto mais absorvente que os de carne, esse ficou empapado até à medula.

         – Nós ainda nos arranjamos com um bom banho – disse Dona Benta. – Mas o Visconde, não sei. Só se tia Nastácia o ferver um dia inteiro no tacho de fazer marmelada. Como há de ser, Nastácia?

         – Deixe ele comigo que dou jeito, Sinhá – respondeu a  negra, pegando no Visconde e examinando-o. – Chi! Está que nem uma esponja. O jeito que vejo é um só: mudar o corpinho dele – botar um sabugo novo…

         Em casa Nastácia pôs a ferver várias tachadas e latas de água e foi buscar seis pães de sabão na venda do turco. Nunca o pessoal do sítio se ensaboou com tanta fúria. Até cacos de telha entraram em cena. Mas o petróleo do Caraminguá n.° 1 era terrível. Entranhava tão fundo que apesar das lavagens todos ficaram com um cheirinho de querosene durante três dias.

         As roupas foram empilhadas num monte no quintal para uma fervura de horas. (Mas mesmo depois da fervura ficaram por muito tempo com um vago “perfumezinho” a petróleo.)

         Lá na sonda os americanos, os operários e o rinoceronte fizeram o mesmo. Lançaram-se no ribeirão para uma lavagem a fundo…

         Emília, no seu banheirinho, estava a esfregar-se furiosamente com um caco de telha. De repente disse:

         – O petróleo pode ser uma excelente coisa, pode ser a riqueza das nações, pode ser ouro líquido ou o que quiserem. Mas no corpo da gente é, com perdão da palavra, uma grandissíssima porcaria…

         Dessa vez não houve quem não concordasse.

 

12 – O abalo do País

          A abertura do Caraminguá n.° 1, com uma vasão de 500 barris por dia, começou a espalhar-se fulminantemente pelo País inteiro. Os jornais deram a notícia, com base numa comunicação mandada por Pedrinho; mas como essas notícias sensacionais são muitas vezes peta, todos se mantiveram na dúvida. Um deles publicou o comunicado de Pedrinho com este título: Si non é vero… Outro escreveu que quando a esmola é demais o santo desconfia.

         Pedrinho danou e mandou segundo comunicado, convidando os incrédulos a virem ver. Desde que se tratava dum fato, nada mais simples do que averiguá-lo. Que viessem ver, cheirar, provar o magnífico petróleo parafinoso do poço aberto no sítio de Dona Benta.

         Esse novo comunicado de Pedrinho, que ele assinara com o seu futuro nome de gente grande, Pedro Encerrabodes de Oliveira, causou sensação, apesar da esquisitice do sobrenome Encerrabodes, que levava o povo a rir-se e pilheriar. Quem era esse tal Encerrabodes? Ninguém sabia. Só as crianças do Brasil sabiam que Pedro Encerrabodes de Oliveira não podia ser outro senão Pedrinho, o neto de Dona Benta Encerrabodes de Oliveira.

         – É Pedrinho! É Pedrinho! – afirmaram as crianças de todo o país.

         – É o neto de Dona Benta! Ele disse que ia tirar petróleo e tirou mesmo!…

         Mas as gentes grandes, marmanjões pretensiosos, riram-se das crianças, dizendo: “Há de ser então uma das muitas maluquices do tal sítio de Dona Benta, que o tal Lobato vive contando. Brincadeira.”

         Certo jornal do Rio de Janeiro, porém, criou coragem e mandou um seu repórter investigar o que havia. O repórter foi recebido por Dona Benta.

         – Minha senhora – disse ele – circulam boatos de que foi aberto aqui em suas terras um poço de petróleo. Mas ninguém lá fora acredita nisso; primeiro, porque está oficialmente assentado que o Brasil não tem petróleo; segundo, porque o petróleo surgiu justamente aqui no seu sítio, que tem fama de maluco; terceiro, porque a comunicação aos jornais foi feita por um Senhor Encerrabodes que ninguém nunca viu mais gordo.

         Apesar disso, o meu jornal encarregou-me de chegar até aqui para ver o que há.

         Dona Benta desceu os óculos para a ponta do nariz.

         – Foi bom que viesse, meu senhor. Por estranha que pareça a notícia, é a verdade pura. Meus netos meteram-se a estudar geologia com o Visconde de Sabugosa e convenceram-se da existência do petróleo aqui no sítio. E como são levados da breca, arranjaram sonda, perfurador, operários especialistas e puseram-se a furar. Passaram meses nisso, até que enfim o petróleo apareceu num grande jato de 40 metros de altura, que nos deixou a todos como pintos pelados que caem no melado.

         O repórter refranziu a boca num risinho de incredulidade. Evidentemente aquela velhota estava a mangar com ele, ou então era uma caduca que não sabia o que dizia. E respondeu zombeteiro:

         – Pois muito bem. Se saiu petróleo em quantidade para um banho em todos da casa, eu também queria tomar meu banhozinho de petróleo. É possível?

         – Acho que sim – respondeu Dona Benta. – Mas isso não é comigo. Vou chamar meu neto para que ele satisfaça o seu desejo de banho.

         E voltando-se para a cozinha:

         – Nastácia, onde andam os meninos?

         – Na sonda, Sinhá – respondeu a preta. – Sinhá bem sabe que eles só aparecem por aqui quando a fome aperta.

         – Chame Pedrinho – ordenou Dona Benta. Tia Nastácia foi à janela e deu um assobio agudo. Momentos depois o menino aparecia na varanda.

         – Que há, vovó?

         – Há aqui este senhor, repórter do “Correio da Manhã”, que veio ver se é possível tomar um banho de petróleo. Diz que lá fora ninguém acredita na descoberta do petróleo aqui no sítio, nem sabem quem é o tal Encerrabodes que mandou a comunicação aos jornais.

         Pedrinho mediu o repórter de alto a baixo.

         – Pedro Encerrabodes, neto aqui de vovó, sou eu, o autor da notícia aos jornais. Quanto ao banho que o senhor deseja, basta que me siga. Vai ser prontamente banhado.

         Aquele modo seguro de falar encabulou o repórter, cujo risinho de ironia ficou um tanto desmanchado; e o mais que pôde dizer foi: “Pois estou às suas ordens.”

         Pedrinho conduziu-o à sonda. Assim que viu aquele acampamento petrolífero, com uma torre aprumada para o céu, e máquinas de todos os lados, e oficinas e casas de operários, o repórter amarelou. Seria verdade?

         Um americano grandalhão estava a conversar com outro sujeito também com cara de americano. Pedrinho apresentou-lhes o repórter.

         – Mister Kalamazoo, permita-me que lhe apresente aqui o repórter do “Correio da Manhã.” Ele veio de longe para tomar um banho de petróleo, porque é dos tais São Tomés do ver para crer.

         – How do you do, sir? – rosnou o americano, moendo a mão do repórter com um shakehand de quebrar diábase.

         – E aqui temos Mr. Champignon, nosso químico-geólogo – continuou Pedrinho, indicando o outro americano.

         – How are you? – disse este, acabando de moer a mão do jornalista com outro shakehand de 20 atmosferas.

         O repórter suava frio sacudindo a mão no ar. Mesmo assim arregalou os olhos quando Pedrinho fez a apresentação do Visconde de Sabugosa e do Quindim. Seu espanto foi imenso, ao dar com o rinoceronte. Quis fugir. Quis sacar do revólver para abater aquele monstro africano que o olhava com uma estranha expressão de bondade. Vendo, porém, que o paquiderme não se movia, aquietou-se, com o suor a pingar-lhe da testa em gotas graúdas.

         – Pois é – disse Pedrinho. – São estes os homens que nos abriram o poço do Caraminguá n.° 1, o qual está controlado por um possante blowout preventer e tem capacidade para 500 barris por dia.

         Narizinho e Emília aproximaram-se.

         – Esta aqui é minha prima – disse o menino – e esta outra é a celebérrima Emília de Rabicó. Nós apenas “sapeamos” o serviço do petróleo. Quem tudo dirige é ali Mister Kalamazoo, auxiliado por Mr. Champignon. No começo tivemos receio de que nos sabotassem o poço, mas hoje gosto de confessar em público que as nossas desconfianças não tinham fundamento. Ponho a minha mão no fogo pela lealdade desses dois homens e de todos os operários que eles trouxeram.

         O repórter nem sabia o que dizer, de tanto que tudo ali lhe atrapalhava as idéias. Seria possível, então? Seria possível que o comunicado dos jornais representasse a verdade pura?

         – Senhor Encerrabodes – disse ele – confesso o meu desnorteamento absoluto. Vim cá certo de não ver coisa nenhuma, pois a comunicação feita aos jornais tem todas as aparências duma engenhosa mistificação. Mas este campo petrolífero esta sonda, estas máquinas, estes homens louros, tudo isto me faz crer que pelo menos intenção de descobrir petróleo existe aqui. Mas entre intenção de tirar petróleo e petróleo de verdade vai uma grande distância. Eu só me daria por cabalmente convencido se visse, cheirasse, provasse o petróleo supostamente produzido aqui.

         – Nada mais fácil – disse Emília. – Nós provamos tudo quanto afirmamos, embora o mundo se recuse a acreditar em certas coisas, como, por exemplo, a nossa viagem ao céu. Há de crer que muita gente ainda duvida disso, apesar de termos trazido de lá a prova – um anjinho de asa quebrada! Com o petróleo, porém, a coisa muda. É só abrirmos a torneira ali no blowout e pronto: está provado o petróleo.

         O tom seguro daquela criaturinha, que positivamente era uma boneca falante, tonteou o repórter. Novas gotas de suor pingaram-lhe da testa. Chegou a duvidar de si, a pensar que estivesse sonhando; e disfarçadamente beliscou a perna para ver se estava mesmo acordado. Viu que estava e suspirou. Na verdade não compreendia nada de nada de tudo aquilo.

         – Pois muito bem – disse ele por fim. – Mostrem-me o petróleo e estará tudo acabado.

         Pedrinho cochichou qualquer coisa ao ouvido do Visconde, o qual foi conferenciar com Quindim, o qual chamou Mister Kalamazoo, trocando com ele várias palavras. “All right” – foi a resposta do americano com um pisco para Pedrinho.

         – Muito bem – murmurou este, compreendendo a significação da piscadela. – O senhor repórter vai sentar-se aqui por um momento, enquanto Mister Kalamazoo mexe no blowout. O blowout é o registro que fecha o poço. Abrindo esse registro, o petróleo jorra. Prepare-se, pois, para assistir a um belíssimo jorro de petróleo.

         O pobre repórter, que nunca tinha visto petróleo, sentou-se no ponto indicado pelo menino, justamente num lugar de vento a favor, de modo que quando o petróleo jorrasse a chuva do repuxo viria cair bem em cima dele.

         Não desconfiou de nada, nem desconfiou de o deixarem ali sozinho e se passarem todos para o lado oposto.

         Mister Kalamazoo dirigiu-se ao blowout e torceu a manivela. Imediatamente um jorro potentíssimo de petróleo negro elevou-se no ar a dezenas de metros de altura, abriu-se lá em cima em penacho e desceu sob forma de chuva grossa bem sobre o ponto onde se achava sentado o mísero repórter.

         Que banho! O jornalista fugiu dali com quantas pernas tinha, mas não escapou de ficar empapado até à medula dos ossos. E quando parou a cinqüenta metros de distância e olhou para trás, o que viu foi o americano fechar o torneirão, pondo fim ao tremendo repuxo de óleo negro.

         Os meninos correram ao encontro do homem petrolizado.

         – Então? Está convencido? – indagou Pedrinho.

         O repórter nem falar podia. O petróleo entrara-lhe pela boca, ouvidos e nariz, causando-lhe um mal medonho. Cuspia, espirrava, tentava limpar a boca – mas limpar como, se as mãos, o lenço, tudo não passava dum empapamento de petróleo?

         – Ele é capaz de morrer envenenado – disse Mr. Champignon, e ordenou aos operários que o conduzissem ao ribeirão e o lavassem a fundo.

         O pobre repórter foi levado ao rio, despido e ensaboado por dez mãos calosas, ásperas como lixa. E como suas roupas ficassem inutilizadas e nenhum dos homens da sonda lhe quisesse ceder um terno, o remédio foi vestirem-no com uma saia e um velho casaco de Dona Benta, enquanto tia Nastácia lhe fervia, secava e passava as roupas com que viera.

         Teve de dormir no sítio, porque sua roupa só ficaria pronta na manhã seguinte – além de que a brincadeira o deixara completamente derrancado.

         – Uf! – exclamava o mísero na varanda. – Fui bem castigado da minha incredulidade, mas acho que abusaram de mim. Não era necessário irem tão longe.

         – Longe, meu caro? – disse Dona Benta. – Mas não foi o senhor mesmo quem me disse, aqui nesta varanda, que desejava um banho de petróleo? Pedrinho nada mais fez do que satisfazer o seu pedido.

         – Sim, mas eu estava caçoando. Disse aquilo por brincadeira.

         – E nós também lhe demos o banho de petróleo por brincadeira – disse Emília. – Tudo brincadeira.

         – É, mas quase me iam envenenando. Como eu não esperasse a tal chuva de petróleo, deixei-me colher por ela – e bebi, sim, bebi petróleo. Ugh! Que gosto horrível! Tenho a impressão de que nunca mais me sairá da boca…

         – Tout passe, tout casse, tout lasse – murmurou Dona Benta, repetindo um verso de Vítor Hugo. – Tudo passa, meu senhor. Esse gosto de petróleo em sua boca passará também. Sossegue.

         Tia Nastácia deu-lhe um chá de losna bem forte e arrumou-lhe uma boa cama no quarto de Pedrinho. O repórter deitou-se cedo, não querendo nem que lhe falassem em jantar. Impossível comer qualquer coisa com aquele horrível gosto na boca.

         No dia seguinte amanheceu melhor, e assim que tia Nastácia lhe levou as roupas fervidas, lavadas e passadas, ele despiu-se da saia e do casaco de Dona Benta e envergou-as. E tratou de raspar-se dali.

         – Minha senhora – declarou ao despedir-se. – A tragédia de ontem servirá para uma coisa: fazer que o Brasil inteiro acredite no grande milagre realizado neste sítio. A descoberta do petróleo representa um fato de significação mais alta do que podemos conceber. Representa algo mais importante do que a própria independência do Brasil. No dia 7 de setembro o Brasil proclamou a sua independência política, mas só agora acaba de proclamar a sua independência econômica. Em que dia foi?

         – O poço jorrou no dia 9 de agosto – respondeu Narizinho.

         – Pois o 9 de agosto vai ficar imortalizado na história do nosso País. A República Argentina considera feriado nacional o dia 19 de dezembro, data do aparecimento do petróleo em Comodoro Rivadávia. Breve teremos aqui no Brasil o 9 de agosto transformado em data nacional, ao lado do 7 de setembro. Este comemora a nossa independência política; o 9 de agosto comemorará a nossa independência econômica.

         – Muito satisfeita fico de que assim seja – disse Dona Benta. – Eu estou que não caibo em mim de contente, porque foram meus netos os heróis da grande façanha. Começaram a coisa brincando e tudo acabou a sério. Graças a eles, ao Visconde e ao Quindim, temos petróleo – o Brasil tem petróleo e, portanto, o elemento básico para tornar-se uma nação rica e poderosa. Pode escrever no seu jornal que não existe no mundo nenhuma avó mais feliz do que eu.

         – Nem mais rica! – berrou Emília. – O poço está dando 500 barris por dia. A Cr$ 30,00, são 15 mil cruzeiros por dia. Qual é a avó por esses mundos a fora que tem, ali na batata, 15 mil cruzeiros por dia?

         Os olhos do repórter brilharam. Quinze mil cruzeiros por dia! Quatrocentos e cinqüenta mil por mês! Cinco milhões e quatrocentos mil por ano! Uma verdadeira mina. Ah, se ele pudesse tirar uma casquinha… Se aquela velha se apaixonasse por ele…

         Logo depois da partida do repórter os jornais do Brasil inteiro puseram de lado as notícias de crimes americanos e das mexericagens políticas para só tratar do petróleo. Petróleo! Petróleo! A descoberta do petróleo no Brasil! Um poço de 500 barris por dia no sítio de Dona Benta! A avó milionária! Cinco milhões e quatrocentos mil cruzeiros por ano, só do primeiro poço! O banho de petróleo! A chuva de petróleo! Um sabugo científico que é um formidável geólogo! Um rinoceronte que sabe inglês e não chifra gente! Mister Kalamazoo e Mister Champignon! Essas notícias sensacionais determinaram uma verdadeira romaria ao sítio. Automóveis e mais automóveis, cheios de figurões, apareciam por lá, um atrás do outro. Engenheiros, industriais, capitalistas, curiosos – não havia quem não viesse ver, cheirar, provar o petróleo de Dona Benta.

         Telegramas foram enviados para a América do Norte. O Rockefeller mandou oferecer pelo sítio 5 milhões de dólares.

         – Não vendo por preço nenhum – foi a resposta de Dona Benta. – De que me adianta uma bolada de 5 milhões de dólares? No que empregar isso? Onde encontrar um sitiozinho como este, tão cheio de árvores velhas, de recordações agradáveis – e tão rico em petróleo? Não, não e não.

         Na impossibilidade de adquirir o maravilhoso sítio, os especuladores trataram de segurar as terras vizinhas. A fazenda do Coronel Teodorico, um sapezinho sem valor nenhum, foi vendida por 10 milhões de cruzeiros. O Elias Turco cedeu o ponto da sua venda por 500 mil cruzeiros – e lá se foi para a Turquia, com grande contentamento de tia Nastácia. A negra nunca lhe perdoou o desaforo de pedir Cr$ 1,50 por um saquinho de sal.

         – Que vá furtar na terra dele – foi o seu comentário quando soube da notícia.

         Um sitiante de nome Chico Pirambóia, caboclo opilado que mal tirava das suas terras (dez alqueires) o necessário para não morrer de fome, vendeu a propriedade por 230 mil cruzeiros – e ainda levou o capadinho de ceva e a cabra.

         Organizaram-se logo companhias petrolíferas para fazer estudos nas terras em redor do sítio de Dona Benta e perfurar. A vila próxima, que era um vilarejo ordinaríssimo, com duas vendas ainda piores que a do Elias Turco, a igrejinha muito pobre, um farmacêutico caolho, dois curandeiros e um antigo coronel da guarda nacional, começou a transformar-se com rapidez vertiginosa. O preço das casas e terrenos subiu a galope. Casebres que antes do petróleo não alcançavam nem 800 cruzeiros, eram vendidos por 30, 40, 50 mil cruzeiros. Casas novas, bonitas, começaram a erguer-se nos terrenos vagos. Vinha gente de fora aos bandos – gente das companhias de petróleo e aventureiros. Surgiram casas de sorvete, um cinema, dois, três, dez bares. Depois, um cabaré com umas francesas roucas, onde às vezes rebentavam brigas medonhas.

         – Isso é que não está direito – comentou tia Nastácia. – Nossa vila sempre foi uma coisa quietinha, sossegadinha – agora está que nem aquela fita que eu vi uma vez, cheia de homens com cintos cheios de balas, que bebem nos balcões e de repente sacam do revólver e espatifam o lampião do forro e garram a moer gente com cada soco que parece martelada. Credo! Eu até nem tenho mais coragem de chegar até lá.

         Tia Nastácia em toda a sua vida, só tinha assistido a uma fita de cinema. “Os Bandoleiros do Far West”, em que havia tanto tiro em lampião, e tantas lutas corpo-a-corpo e tantos murros de arrebentar cara, que ela nunca mais quis saber de cinemas. “Credo!” – dizia lembrando-se da fita. “Eu estava vendo a hora em que aqueles homões vinham de lá pra cima da gente nas cadeiras, de tiro e soco, não deixando um vivo. Suei frio daquela vez, mas nunca mais. Cruz, credo, canhoto…”

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