Monteiro Lobato

O Poço do Visconde

 Capítulos 13 e 14

 

13 – Grandes mudanças na vila

          Com o aparecimento do petróleo, a conversa nos serões de Dona Benta tornou-se exclusivamente petrolífera. Quem falava era sempre o Visconde, sabidinho como ele só. No dia imediato ao banho do jornalista, sua dissertação foi sobre o modo de refinar o petróleo bruto.

         – Porque o petróleo bruto – disse ele – só serve para queimar. Mas se o refinarmos, obteremos uma porção de produtos de muito valor, como a benzina, a gasolina, o querosene, o supergás, o óleo combustível, o óleo lubrificante, as parafinas, as vaselinas, o asfalto, o coque de petróleo e mais numerosos produtos de menor importância. Os petróleos brutos variam muito. Uns são bastante ricos em produtos voláteis; outros não dão produtos voláteis; outros só dão produtos voláteis, como o de Montechino, na Itália, que rende 95 por cento de gasolina e querosene.

         – Noventa e cinco por cento? – admirou-se Pedrinho. – Então é quase todo ele gasolina e querosene…

         – Exatamente. Já os petróleos americanos, embora variem dum ponto para outro, dão em média 20 por cento de gasolina, 38 por cento de querosene, 15 por cento de gás e 25 por cento de óleo combustível.

         – Nesse caso, é inteirinho aproveitável – advertiu o menino

         – Sim. O que se perde não passa de 2 por cento, uma ninharia.

         – Que mina? E como se faz para refinar?

         – O petróleo bruto é uma mistura de vários hidrocarbonetos diferentes, uns gasosos, como o metano que vem dissolvido nos líquidos; outros líquidos; outros sólidos, como a parafina. A refinação é o processo que separa os vários hidrocarbonetos.

         – Em que consiste?

         – Cada um desses hidrocarbonetos, cuja mistura forma o petróleo bruto, tem a sua temperatura própria de ebulição.

         – Ebulição é fervura, não é?

         – Sim. Ebulição é o ponto em que os líquidos começam a ferver e a evaporar-se. Ora, esses hidrocarbonetos do petróleo bruto fervem desde 35 até 600 graus.

         – Estou começando a entender – disse Pedrinho. – Estou na pista. Continue, Visconde.

         – O petróleo bruto – continuou o Visconde – é aquecido em grandes caldeiras; quando a temperatura chega a 35 graus, começam a evaporar-se os hidrocarbonetos mais voláteis, os quais passam, em estado de vapor, para o reservatório onde se resfriam e se condensam, isto é, voltam ao estado líquido. Mas o calor da caldeira continua a crescer, chegando até 600 graus, e pelo caminho vão se evaporando mais este e mais aquele hidrocarboneto, conforme o grau de ebulição de cada um; evaporam-se e passam em estado de vapor para os tais reservatórios onde se resfriam. Aos 600 graus evaporam-se os mais pesados e pronto. Dali por diante é inútil aquecer. Não sai mais nada. Tudo que tem valor já se evaporou; fica apenas um resíduo que, conforme a qualidade do petróleo, pode ser o mazu (óleo combustível), ou o coque de petróleo. Nos começos da indústria o único produto que se tirava do petróleo era o querosene, empregado na iluminação e ainda hoje muito usado no mundo inteiro, inclusive entre nós. Não há casa de caboclo por esses matos que não tenha sua lamparina de querosene.

         – Por sinal que é uma coisa horrível – observou Emília. – Além de dar uma luz que nem é luz, de tão fraca e feia, ainda deita um penacho de fumo negro imundíssimo. E de respirar aquilo de noite, a caboclada fica com o nariz preto por dentro…

         – Então perdiam a gasolina, a benzina e os outros produtos de tanto valor hoje? – perguntou Pedrinho.

         – É verdade. Tudo isso era deitado fora. Só aproveitavam o querosene. Hoje os petroleiros choram as enormes quantidades da preciosa gasolina que antigamente era jogada fora por não ter aplicação nenhuma. Mas o motor de explosão veio mudar tudo. A gasolina passou para a frente, como o mais precioso produto do petróleo. Se correm no mundo milhões de automóveis e aviões a ela o devemos.

         – O petróleo bruto – disse o Visconde – só serve para queimar. Mas se o refinarmos obteremos uma porção de produtos de muito valor.

         – Quer dizer que os petroleiros de hoje se esforçam sobretudo para obter a gasolina …

         – Isso mesmo. Se pudessem, reduziriam o óleo bruto só a gasolina – e quase o conseguem.

         – Como?

         – Por meio do cracking.

         Ninguém entendeu.

         – Cracking – explicou o Visconde – vem do verbo inglês to crack, partir, quebrar. E quando dizemos o cracking significamos um certo processo de destilar petróleo, no qual as moléculas dos hidrocarbonetos pesados quebram-se, dando origem a hidrocarbonetos leves.

         – Explique isso por miúdo – pediu Pedrinho.

         – Foi uma das numerosas descobertas devidas ao Acaso. Num dia frigídissimo de 1861, estava um trabalhador tomando conta duma caldeira de óleo bruto ao fogo. A destilação já ia bem adiantada, quase no fim, de modo que só saía um fiozinho de hidrocarboneto do mais pesados. Esse operário, porém, era malandro. Ao ver-se ali sem fiscal, aproveitou o ensejo para uma fugida. Entupiu de combustível a fornalha e raspou-se. Ficou horas na pândega. Quando voltou, abriu a boca. A caldeira quentíssima, estava jorrando um produto claro, idêntico ao da destilação das matérias mais voláteis. Era gasolina outra vez…

         – Que engraçado!

         – Os donos da fábrica puseram-se a estudar o fenômeno. Repetindo a experiência, viram que sob a ação dum calor muito forte as moléculas dos óleos pesados se quebravam, produzindo as essências mais leves. Foi assim que começou no mundo esse importantíssimo processo do chacking – ou do arrebentamento das moléculas.

         – Quer dizer que por esse processo pode-se transformar querosene em gasolina?

         – Perfeitamente. Aqui no sítio, quando montarmos a nossa refinaria, poderemos produzir mais ou menos gasolina, conforme for do interesse da Companhia Donabentese.

         – Pois vamos tratar disso sem demora – berrou Emília. – Mister Kalamazoo disse a Quindim que está com todos os estudos e plantas da nossa refinaria já prontinhos. Além disso…

         Não concluiu. Alguém batia na porta. Narizinho foi ver.

         – Oh, o Coronel Teodorico! Entre, faça o favor. Vovó? Está, sim. Vou chamá-la…

         O Coronel Teodorico era um homem moreno, gordo, duns sessenta anos, com uma verruga no nariz e forte chumaço de cabelos nos ouvidos.

         Dona Benta apareceu.

         – Como está passando a comadre? – disse ele, apertando-lhe a mão.  – Desde que saiu o petróleo, eu ainda não tive um minutinho para chegar até cá. Só agora.

         – É verdade então, compadre, que vendeu a sua fazenda por 10 milhões de cruzeiros?

         – O povo exagera seu pouquinho, comadre. Vendi, sim, não por dez, mas por um milhão e duzentos mil cruzeiros. Foi negócio, hein?

         – Foi e não foi, compadre. A fazenda, antes de sabermos que havia petróleo aqui, era uma propriedade do valor duns setenta contos, não acha?

         – Verdade. Foi o preço que sempre pedi por ela – e não achei. O melhor que me chegaram foram sessenta e cinco. Agora me ofereceram um milhão de cruzeiros, e como eu fizesse cara muito esquisita (era de espanto), eles pensaram que eu estivesse achando pouco e foram chegando mais 200 mil. Eu não quis saber de histórias. Me veio uma tontura na cabeça, e foi quase sem eu querer que minha boca respondeu: “Fechado!” No dia seguinte “vinheram” passar a escritura e bateram em cima da mesa os pacotes…

         O Coronel estava orgulhosíssimo com a façanha, mas Dona Benta torceu o nariz.

         – Pois, meu caro compadre, acho que fez um péssimo negócio. Sua fazenda tem a mesma formação geológica do meu sítio, sendo muitíssimo provável que também nela haja petróleo, e muito. Por que não mandou, antes de vendê-la, fazer uns estudos geológicos e geofísicos?

         O Coronel cocou a cabeça, com um risinho de esperteza matuta nos lábios.

         – Eu, a ser verdadeiro, comadre, nem entendo, nem acredito em nada dessas histórias. Sou homem da roça, como meu pai e meu avô, criadores de porcos e plantadores de milho. De ciência não pesco um xis – nem acredito. Minha fazenda não valia mais de setenta mil cruzeiros. Peguei por ela um milhão e duzentos mil. Que mais poderia eu querer?

         – Compadre – disse Dona Benta – o seu mal sempre foi a falta de estudos. Se os tivesse, ou se frequentasse aqui os nossos serões para ouvir as conversas geológicas do Senhor Visconde, juro que não venderia a fazenda nem por 10 milhões. Aquilo vale ouro, compadre. A sua invernada de engorda está no eixo do nosso anticlinal.

         Falar em anticlinal para um coronel da roça é o mesmo que falar do binômio de Newton para tia Nastácia. Dona Benta chamou o Visconde.

         – Explique aqui ao compadre o que é um anticlinal petrolífero e mostre como o nosso anticlinal se prolonga pelas terras dele.

         O coitadinho do Visconde tudo explicou com a maior clareza possível. Mas o miolo dum criador de porcos de sessenta anos está endurecido. Não recebe mais nada. O Coronel limitou-se a rir-se do sabuguinho científico.

         – Basta – disse ele por fim. – Estou muito velho para essas coisas de ciência. Se o “anticriná” daqui entra na minha fazenda, então melhor para quem a comprou. Que se arranjem, que tirem muito petróleo e façam bom proveito. Não sou ambicioso. Esta dinheirama está até me atrapalhando a vida. Chovem em cima de mim tantos negócios ótimos que a dificuldade está na escolha.

         – Cuidado com esses negócios ótimos, compadre! Sei dum sujeito que herdou 500 mil cruzeiros e os empregou em cinco negócios ótimos, cada qual melhor que o outro. O coitado ficou tão limpo que hoje é zelador dum cemitério.

         – Sei disso, comadre. Já vivi bastante. Conheço o mundo. Mas o dinheiro meu ninguém me tira.

         – E que vai fazer agora?

         – Estou pensando em me mudar para o Rio de Janeiro…

         – Olho vivo com os grandes centros, compadre! Nós, que passamos a maior parte da nossa vida nestes desertos, ficamos meio bobos. Qualquer pirata das avenidas nos embrulha. Há por lá uns tais passadores do conto-do-vigário que são umas pestes.

         O Coronel Teodorico deu uma risada gostosa.

         – Comadre, o espertalhão capaz de embrulhar o Coronel Teodorico Fagundes da Costa Picanço ainda não nasceu, acredite…

         – Assim seja – disse Dona Benta. – Meus votos são para que o compadre tenha um resto de vida feliz e nunca se arrependa de ter vendido as suas terras.

         O Coronel conversou ainda sobre várias coisas e depois de tomar o cafezinho de tia Nastácia e de comer meia peneira de pipocas, levantou-se.

         – Pois então adeus, comadre. Lá do Rio lhe escreverei, mandando meu endereço. A senhora sempre foi a melhor das vizinhas. Não brigamos nunca – nem daquela vez em que a sua vaca Mocha entrou na minha roça de milho e fez aquele estrago. Sempre que precisar dalguma coisa lá na “Corte”, é só mandar um bilhetinho.

         – Muito agradecida, compadre. Também eu aqui fico ao seu inteiro dispor. Quando cansar-se da civilização e quiser uma temporada de descanso, escreva-me. Terá sempre um talher na mesa da sua velha comadre. Eu não saio. Continuo na roça.

         – Roça, comadre? A senhora chama roça a isto por aqui? Foi roça! Hoje está virando cidade com uma fúria louca. A vila está que está que ninguém mais se conhece. Ontem repeti três vezes a sessão do Cine Tucano Amarelo. Aquilo é que é cinema!

         – E essa transformação da vila não parará mais – disse Dona Benta. – Sei de muitas companhias de petróleo que já se formaram, e de outras que estão se formando para pesquisar petróleo na zona. Logo teremos aqui uma cidade à moda americana, movimentadíssima, que mudará tudo – os costumes e as gentes.

         – As gentes já não são as mesmas, comadre. Quando atravessei a vila para chegar até cá, só topei com duas ou três caras das de dantes. Tudo mais é estranja – uns louros, outros de cabelo de fogo. E ali na perneira, no blusão, no chapéu de cortiça, no cachimbo. O que eu quero é sumir daqui. Meu tempo, minha gente, minha vida no Tucano Amarelo acabou. Tudo por causa desse petróleo que ali o Senhor Pedrinho tirou – concluiu o Coronel, sacudindo o dedo para o menino. – Esse seu neto vai longe, comadre…

         O Coronel despediu-se também dos meninos, montou a cavalo e partiu. Dona Benta ficou de olhos nele até que se sumisse na volta da estrada. Sim, o petróleo começava a mudar tudo, não havia dúvida. Os velhos conhecimentos, os velhos hábitos, as velhas tradições – tudo isso tinha de desaparecer diante da americanização que a indústria traz. E Dona Benta sentiu uma ponta de saudade do sossego antigo.

         No dia seguinte tiveram a visita do Chico Pirambóia, que também vendera o sítio e se preparava para “afundar no mundo.” Era um caboclão dos legítimos, xucro até mais não poder.

         – Dona Benta – disse ele – vou-me embora com os pacotes no bolso. Esta gente enlouqueceu. Não entendo mais nada de nada. Pois então não é loucura me darem 230 mil cruzeiros por aquela pinóia do meu sítio – dez alqueires de sapezal que nunca valeu nem mil cruzeiros.

         – Não é loucura não, Chico. E’ apenas o petróleo. Quem deu 230 mil cruzeiros pelo seu sítio vai tirar dele alguns milhões. Você não pensou nisso.

         – A senhora está se referindo ao tal “criosene”? Ah, então a senhora, que é uma velha de juízo, também “aquerdita” nisso? “Criosene” nada. O que deu nessa gente foi loucura, isso ninguém me tira da cabeça. Eu vou fugindo daqui com os cobres antes que eles se arrependam e me assaltem a casa pra pegar outra vez os pacotes.

         – Então guarda consigo o dinheiro, Chico? Não sabe que é perigosíssimo?

         – Onde eu “havera” de guardar então?

         – No banco, homem de Deus! Para isso é que há bancos.

         Chico Pirambóia deu uma grande risada, muito parecia com a do Coronel Teodorico.

         – Banco! Banco! … Tinha graça eu guardar 230 mil cruzeiros, dinheirinho novo, num banco – prós outros tomar conta dele. Ah, ah, ah!…

         Um mês mais tarde Dona Benta teve notícia dos dois matutos – do compadre Teodorico e do Chico Pirambóia. Este fora vítima dum assalto à mão armada em pleno dia, e como levasse todo o seu dinheiro num lenço vermelho, ficou sem o dinheiro e sem o lenço. Moeram-no a pancadas. Não fosse a sua natureza extraordinariamente rija de caboclo criado na miséria do sapezeiro e já estaria no outro mundo.

         Com o Coronel Teodorico, então, aconteceu uma que até parece pilhéria. Ele nunca havia ido ao Rio de Janeiro, de modo que admirou tudo, principalmente os bondes elétricos. E tanto admirou os bondes elétricos e falou daquilo, que afinal o “dono dos bondes” apareceu, fez camaradagem com ele e acabou levando-o a um bar. Lá fez vir cerveja e contou o excelente negócio que era ter bondes que cobram 20, 30 e 40 centavos de cada pessoa que entre neles para ir daqui até ali.

         – Lá isso é – disse o Coronel. – Tenho me regalado de andar de bonde, e para me distrair vou contando as pessoas que entram e fazendo a conta dos níqueis que pingam. Que é negócio, isto é. Quanto acha que rende um bonde por dia?

         O dono dos bondes provou que cada carro dava uma renda de dez contos diários – dez contos líquidos, fora todas as despesas. Mas também disse que como fosse dono de “bondes demais”- (mil e tantos), não fazia questão de vender dois ou três aos amigos – a cinquenta mil cruzeiros cada um. Melhor negócio era impossível. Se ele vendia alguns bondes, era só para servir aos amigos, e também porque andava até enjoado de tanto bonde e tanto dinheiro. Além disso, simpatizara-se muito com o Coronel, em quem via um homem inteligente, esperto, de ótimo coração e, portanto, merecedor de entrar no Rio de Janeiro com o pé direito.

         O Coronel Teodorico Fagundes da Costa Picanço comoveu-se com o elogio e fechou negócio de quatro bondes a 50 mil cruzeiros cada um – total: 200 mil cruzeiros…

         – Pobre do meu compadre! – suspirou Dona Benta quando soube da história. – Sua sorte foi ter comprado apenas quatro. Se adquirisse vinte e quatro bondes, estaria a estas horas tão limpo como o Chico Pirambóia…

         E voltando-se para Pedrinho:

         – Aproveite a lição, meu filho. Quando propuserem a você um negócio “bom demais”, fique de orelha em pé, perguntando lá por dentro: “Onde está o gato”? Há sempre um gato escondido em todos os negócios da China, que os piratas propõem às criaturas de boa-fé…

 

14 – Piratas do petróleo

         O poço Caraminguá n.° 1 determinou uma mudança completa na zona. Todas as terras mudaram de dono; e no caso de um ou outro proprietário mais cabeçudo, que teimava em não vender, a questão se resolvia por meio dum contrato para a exploração do subsolo. Os petroleiros querem o que está lá no fundo, não o que existe na superfície.

         Formadas as companhias e adquiridas as terras, começaram em todas as direções os estudos geológicos e geofísicos. Os bois dos pastos, afeitos aos vaqueiros, de pé no chão e chapéu de palha na cabeça, estranhavam aquela gente esquisita, de cachimbo na boca, perneiras e capacete de explorador africano. E ainda mais o que eles faziam. Andavam com uns aparelhos que boi não sabe o que é, medindo o chão, espiando por uns canudos e dando tiros. Não tiros de espingardas, mas uns tiros surdos, esquisitíssimos e que não matavam nada.

         Eram as explosões subterrâneas do processo sísmico, um dos processos geofísicos empregados. Eles explodem uma dinamite num buraco, e em vários pontos, longe dali, recolhem, por meio de instrumentos especiais, as ondas vibratórias causadas pela explosão. E conforme essas ondas se modificam pelo caminho, eles ficam sabendo de várias coisas lá no fundo da terra.

         E ao mesmo tempo que faziam esses estudos, iam depositando enormes quantidades de materiais de perfuração em vários terrenos adquiridos. Eram torres e mais torres, caldeiras, montes de tubos de revestimento, hastes e mais hastes, enormes carretéis de cabos de aço, etc.

         Mas as atividades das novas companhias se acentuavam sobretudo rente às divisas do sítio de Dona Benta. Mister Kalamazoo ficou de orelhas em pé. Andou a cavalo espiando as divisas, em companhia de Mr. Champignon, e depois de cuidadosa observação foi conversar com Dona Benta, que era a diretora da Companhia Donabentense de Petróleo. Mister Kalamazoo já falava regularmente o português.

         – Minha senhora – disse ele – temos de tomar providências imediatas contra o banditismo petrolífero. No meu passeio de hoje, vi que os piratas se preparam para roubar uma boa parte do petróleo aqui do sítio. Temos que organizar a defesa.

         Dona Benta não compreendeu. Apesar de diretora da Donabentense, a maior companhia de petróleo do Brasil, ela não entendia grande coisa do assunto. Felizmente o Consultor Técnico da companhia, o Visconde de Sabugosa, era uma verdadeira sumidade.          Mas Dona Benta não queria que Mister Kalamazoo desconfiasse da sua ignorância, e por isso respondeu com grande superioridade:

         – Perfeitamente, Mister Kalamazoo. Já pensei nisso e estou a organizar o nosso plano de defesa. Hoje mesmo terei o prazer de submetê-lo à sua apreciação e à de Mr. Champignon.

         O americano retirou-se, admirado da proficiência técnica da boa senhora – e Dona Benta chamou o Visconde.

         Veio o sabuguinho científico, mais a Emília.

         – Senhor Visconde – disse a velha – Mister Kalamazoo acabar de sair daqui. Contou umas histórias de que não pesquei nada. Acha que devemos organizar a defesa do nosso campo petrolífero, ameaçado pelos piratas do petróleo. Que quer dizer isso, Visconde?

         O sabuguinho riu-se.

         – Ah, sei. Pirata do petróleo são os que abrem poços nas divisas dum campo petrolífero para roubar parte das existências desse campo. Um poço de petróleo drena, ou puxa o petróleo num raio de muitas dezenas de metros, de modo que cada poço que abrem nas divisas do sítio puxará uma boa parte do petróleo daqui do sítio.

         – Hum! – estou percebendo a marosca – murmurou Dona Benta – e mandou que Emília chamasse Pedrinho.

         – Meu filho – disse ela logo que o menino apareceu – traga-me aqui a planta do sítio.

         Pedrinho trouxe um rolo de papel de desenho, que abriu diante dela, no chão. O sítio tinha divisas muito regulares, formando um paralelogramo.

         Depois de examinar a planta por algum tempo, o Visconde tomou a palavra.

         – A presunção – disse ele – é de que temos petróleo em todos os trinta alqueires cá do sítio. Logo, se os piratas abrirem quatro poços, perto de cada canto das divisas, acabam roubando pelo menos um quarto do petróleo do sítio.

         – E como evitar isso? – perguntou Dona Benta.

         – Dum modo muito simples – respondeu o Visconde. – Abrindo nestes quatro cantos quatro poços do lado de cá, nas nossas terras, assim – e desenhou como era.

         – Desse modo a senhora contrapirateia, e o petróleo que eles roubarem ficará compensado pelo que a senhora rouba deles – e a senhora ainda sai ganhando, porque tira deles mais do que eles podem tirar da senhora, como se verifica do meu desenho.

         – Mas se nas terras deles não houver petróleo, nem nos cantos do meu sítio?

         – Nesse caso a senhora perde o latim e eles também. Mas a única forma de defesa é essa.

         Dona Benta ficou a meditar uns instantes; depois chamou Pedrinho.

         – Dê ordem a Mister Kalamazoo, Pedrinho, para perfurar quatro poços de defesa, um em cada canto do sítio. Já…

         Ao receber a ordem, Mister Kalamazoo muito se admirou da sabedoria de Dona Benta, uma velha jamais saíra da roça, e no entanto entendia até da técnica da pirataria do petróleo. E montando a cavalo foi a um dos cantos norte do sítio estudar o terreno.

         Logo que chegou à divisa deu com uma turma de operários para lá da cerca, ocupados no descarregamento de caminhões com material de sondagem. Dirigia-os um engenheiro cor de fiambre, de cachimbo na boca.

         O americano de Dona Benta pulou a cerca e foi ter com ele.

         – Hello, John Casper!… How do you do? – exclamou Mister Kalamazoo, com cara alegre.

         O outro também o reconheceu imediatamente. Haviam trabalhado juntos num campo de petróleo do Oklahoma. Houve apertos de mão e troca de amabilidades. Depois entraram no assunto.

         – Vai perfurar aqui? – perguntou Kalamazoo.

         – Sim, para a Companhia Atarip de Petróleo, dona destes terrenos.

         O americano de Dona Benta arreganhou os dentes num sorriso de quem sabe a significação da palavra Atarip  – e respondeu:

         – Mas o golpe falhará, John, porque acabo de receber ordem da Companhia Donabentense para abrir, ali junto à cerca, uma perfuração de defesa.

         O engenheiro John Casper empalideceu. Aquela notícia vinha estragar-lhe todos os planos. Mas como nessas lutas do petróleo é preciso mostrar muita indiferença, apenas rosnou um frio “Go ahead”! como quem diz: Pois abra.

         Mister Kalamazoo pulou de novo o aramado e marcou o local da perfuração de defesa, que seria o Caraminguá n.° 2. Em seguida montou e tocou para o outro canto norte. Encontrou lá a mesma coisa. Numerosos operários descarregavam materiais de sondagem além da cerca.

         – A quem pertence isto? – indagou Mister Kalamazoo do homem de perneira que dirija os trabalhos.

         – Mind your busines – foi a insolente resposta do “perneira”, como quem diz: Cuide da sua vida e não se meta.

         – “Bom – pensou consigo Mister Kalamazoo – já temos por cá a luta pelo petróleo, com todos os seus mistérios e desaforos.” – Correu os olhos pelo material. Era da mesma fábrica do de John Casper – sinal evidente de que pertenciam à mesma empresa.

         – All right! – exclamou então Mister Kalamazoo. A Atarip está sem sorte, porque a Donabentense vai localizar aqui o Caraminguá n.° 3…

         O “perneira” voltou o rosto bruscamente, tirando dos lábios o cachimbo.

         – Número 3, hein? Há então um n.° 2?

         – Não há ainda, mas vai haver, meu caro amigo. O Caraminguá n.° 2 será aberto no canto norte, bem defronte do Atarip n.° 1, a cargo de Mr. John Casper…

         O “perneira” desapontou duma vez e, furioso da vida, deu um tremendo pontapé numa pobre touceira de barba-de-bode que viu na sua frente.

         – “So long”! – murmurou Mister Kalamazoo, retirando-se e tocando para as divisas do sul. Ao chegar ao primeiro canto da divisa sul viu que a Atarip também estava lá, em plena atividade. Dirigiu-se ao outro canto: a mesma coisa – a Atarip lá estava desembarcando materiais.

         – Não há remédio – disse ele a Mr. Champignon logo que voltou ao acampamento. – A medida tomada pela Diretora da Donabentense é das mais oportunas. A Atarip já deu começo aos trabalhos de quatro poços nas divisas do nosso campo – nos cantos. Temos de agir sem demora na defesa.

         A abertura dos novos Caraminguás correu muito mais fácil que a do primeiro. A constituição dos terrenos estava já conhecida de modo que Mister Kalamazoo pôde não só escolher a sonda mais adequada como ainda prever as entubações de revestimento que tinha de executar.

         No primeiro poço ele fizera três entubações para o fechamento das três águas encontradas; nos novos poços, porém, só entubaria quando chegasse à última água, fechando assim, duma vez, os três horizontes aqüíferos. Desse modo economizavam-se duas entubações e duas colunas de tubos, além de ser possível alcançar o horizonte petrolífero com um diâmetro maior – 22 centímetros em vez de 18.

         O tipo de sonda escolhido foi o “Rotary”, não mais o tipo misto usado no Caraminguá n.° 1. A experiência deste poço indicou que podiam perfurar rotativamente do começo ao fim, sem necessidade de trépanos.

         Encomendadas as quatro sondas novas, tudo chegou com a presteza do costume, porque os aviões comerciais da Emília estavam cada vez mais aperfeiçoados. Foi com verdadeiro assombro que os engenheiros da Atarip viram tais aviões pousarem e descarregarem todas as peças, inclusive as caldeiras pesadonas. Era um milagre que eles não podiam compreender.

         O cálculo desses engenheiros, quando souberam que a Donabentense ia contrapiratear, fora que antes dum ano esta empresa não abriria os quatro poços. Ora, ficando eles assim com um ano de avanço, poderiam, na pior hipótese, roubar um ano de petróleo do sítio. E se cada poço da Atarip desse o mesmo que o Caraminguá n.° 1, isto é, 500 barris por dia, os quatro poços dariam, nesse ano de avanço, 720.000 barris, dos quais a quarta parte saída dos terrenos de Dona Benta. A quarta parte de 720.000 são 180.000. A 30 cruzeiros, cinco milhões e quatrocentos mil cruzeiros! A Atarip, portanto, roubaria de Dona Benta, num ano, a gorda quantia de cinco milhões e quatrocentos mil cruzeiros.

         Mas a chegada dos aviões emilianos com o novo material de sondagem da Donabentense veio estragar completamente os planos da companhia pirata.

         Outra desvantagem da Atarip era não conhecer o terreno a perfurar. Bem que eles tentaram obter informes técnicos da perfuração do Caraminguá n.° 1. Nada conseguiram. Os dois americanos e os operários da Donabentense souberam guardar o mais rigoroso segredo – e os meninos também.

         Certo dia um agente secreto da Atarip, que andava rondando a casa de Dona Benta, pilhou Emília de jeito, sozinha na porteira da estrada, e veio com uns oferecimentos de doces (que Emília recusou) e umas perguntinhas ingenuamente manhosas dessas de plantar verde para colher maduro. Mas Emília, que tinha faro de cão perdigueiro, percebeu logo que estava diante do inimigo. E tapeou o perguntante com respostas muito direitinhas, mas erradas. O agente saiu dali contentíssimo com as preciosas informações colhidas – informações, entretanto, que só serviram para causar distúrbios e atrasos nas perfurações da Atarip. E tal foi o desastre, que o chefe dessa companhia acabou botando o agente no olho da rua, com um valente pontapé no fim da espinha.

         – “Seu cachorro! Vá dar informações falsas na casa do diabo!”

         Enquanto do lado da Atarip tudo eram desastres e mais desastres, atrasos e mais atrasos, os novos poços da Donabentense corriam a galope. O Caraminguá n.° 1 levara oito meses para ser aberto. Já o Caraminguá n.° 2 chegou aos 800 metros num mês O caraminguá n.° 3 em menos: 27 dias. O Caraminguá n.° 4, ainda em menos: em 24 dias. E o Caraminguá n.° 5 realizou o milagre de perfurar-se em 12 dias apenas.

         Esta maravilhosa façanha escangalhou com os projetos maliciosos da Atarip, de modo que o ladrão saiu logrado. Em vez de os piratas roubarem o petróleo de Dona Benta, foi Dona Benta quem roubou o petróleo deles.

         Resultado: a Atarip abriu falência.

         Com os quatros Caraminguás novos a produção do sítio ficou elevada a 2.500 barris por dia – um colosso.

         – E agora”? Que vamos fazer de tanto petróleo?

         O Visconde respondeu a essa pergunta apresentando um projeto de refinaria a ser montada, não ali, mas junto a um excelente porto de mar.

         – As refinarias – explicou ele – devem ser montadas em pontos comercialmente estratégicos, de modo a facilitar a distribuição dos produtos. Montaremos a nossa refinaria nesse porto, levando para lá o petróleo bruto.

         – Como? – perguntou Dona Benta.

         – Por meio dum oleoduto – canalização ou pipe-line, como dizem os americanos. O melhor meio de conduzir o petróleo é esse – o mesmo usado para conduzir água para as grandes cidades.

         Mas um serviço de oleoduto é complicado. Temos de montar grandes reservatórios no ponto final, e pelo caminho estações de bombeamento e aquecimento.

         – Para quê? – perguntou Pedrinho.

         – Porque a canalização segue subindo e descendo morros, de modo que de distância em distância se tornam necessárias bombas que puxem o petróleo.

         – E o aquecimento?

         – No tempo frio o petróleo fica tão viscoso que não corre com facilidade dentro dos canos. Torna-se preciso aquecê-lo de espaço em espaço.

         – Oh, mas uma coisa assim deve ficar num dinheirão..

         – Isso fica. Na América o custo duma milha de oleoduto anda aí entre 18 a 20.000 dólares. Dá para cada metro um custo de 11 a 12 dólares.

         – Duzentos e tantos cruzeiros na nossa moeda! – calculou Narizinho. – É carete…

         – Mas no fim sai mais barato que tudo – explicou o Visconde. – Na América o transporte de petróleo pelos oleodutos fica na metade do preço cobrado pelas estradas de ferro.

         – E de que grossura são os canos?

         – Varia. Há oleodutos de todos os diâmetros, desde 5 até 30 centímetros.

         – E onde há mais oleodutos no mundo? – perguntou a menina.

         – Vai ser aqui no Brasil, mas, por enquanto é nos Estados Unidos – o país “mais” em tudo. Em 1928 eles tinham 160.000 quilômetros de pipelines com capacidade para o transporte de 150 milhões de toneladas de óleo por ano. Haviam custado, sabem quanto? A ninharia de 950 milhões de dólares…

         – Upa! Mais de 15 bilhões de cruzeiros na nossa moeda, o dólar a 16 cruzeiros – calculou de cabeça Narizinho. – É dinheiro …

         Pedrinho assustou-se com aqueles algarismos.

         – Maçada! Onde havemos de obter dinheiro para uma coisa que sai tão cara?

         – Onde? Homessa! No fundo dos poços – respondeu o Visconde. – O petróleo é ouro-líquido, não sabe? Com os 2.500 barris diários que Dona Benta possui aqui, podemos perfeitamente construir o oleoduto que eu estudei. Não tem mais de 300 quilômetros e portanto custará… quanto, Narizinho?

         A menina calculou instantaneamente:

         – A 200 cruzeiros o metro, seriam 60 milhões de cruzeiros.

         – Pois é isso – disse o Visconde. – Com a renda dos cinco Caraminguás Dona Benta paga esse oleoduto em dois anos e pico.

         – E o dinheiro para a montagem da refinaria lá no porto?

         – Aparece – respondeu o Visconde. – Basta que Dona Benta anuncie ao mundo que quer construir uma refinaria e dispõe de 2.500 barris de petróleo diários, para que chovam em cima dela propostas de empréstimos a juros baratíssimos. Além disso, nós não vamos ficar só com os cinco Caraminguás. Podemos abrir mais cinco, mais dez, mais vinte – e de dentro da terra sairá todo o dinheiro preciso para essas grandes obras. O oleoduto e a refinaria que projetei não ficarão em mais de 150 milhões de cruzeiros.

         O Visconde de Sabugosa nunca teve um vintém furado, mas para falar em milhões não havia outro. Jogava em cima da mesa da discussão 150 milhões de cruzeiros, com o mesmo cinismo com que tia Nastácia jogava cinco dentes de alho dentro duma panela…

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