Monteiro Lobato

O Poço do Visconde

 Capítulos 17 e 18 (último)

 

17 – A grande festa

         Meses depois, na cidade do Tucano Amarelo, só se falava duma coisa: o Poço Quindim n.° 1 que a Companhia Donabentense acabava de abrir no velho sítio de Nhá Veva, vendido a Dona Benta por 50 mil cruzeiros. Que poço magnífico! Aos 800 metros os perfuradores atingiram o horizonte petrolífero comum a toda a zona; mas, por sugestão do Visconde, Mister Kalamazoo não fez caso e tocou para diante.

         – Estou desconfiado que abaixo desse horizonte existe outro muito mais importante, dissera ele – e Dona Benta deu ordem ao americano para seguir a idéia do sabuguinho. E o fato foi que a 1.200 metros a perfuração deu num acúmulo de petróleo muitíssimo mais potente. O poço jorrou com 10 mil barris e foi minguando até estabilizar-se numa produção de 7 mil barris por dia.

         Era acontecimento sensacional, porque até ali os poços de maior produção tinham sido os cinco Caraminguás abertos no começo. Dos inúmeros poços das outras companhias só um, na fazenda do Coronel Teodorico, dera tanto como um Caraminguá – o Guaxanduba n.° 7. Em homenagem ao velho rinoceronte, o poço de 7 mil barris teve o nome de Quindim n.° 1.

         Graças a ele a Companhia Donabentense firmou-se como a primeira entre todas, com grande gosto da população do Tucano Amarelo, porque Dona Benta e os netos só queriam petróleo para uma coisa: fazer obras públicas de benefícios para toda gente. Nas outras empresas o sistema era o antigo: encherem-se de dinheiro egoísta, razão pela qual o povo se antipatizava com elas.

         Para comemorar a grande vitória, Dona Benta deu uma festa que ficou célebre. Um banquete ao ar livre, no pasto da vaca Mocha, com danças e fogos de artifício no fim.

         Todos os seus amigos e conhecidos foram convidados – e o povo também. Quem quisesse comer até arrebentar, dançar até não poder mais e assombrar-se com as maravilhas pirotécnicas do famoso fogueteiro Jucá das Rodinhas, era só ir chegando.

         Essa festa lembrou um milagre das Mil-e-Umas-Noites. Além da comedoria imensa, das montanhas de frutas e doces, das pipas e mais pipas de vinho, dos tonéis de garapa azeda e cajuada, dos blocos de marmelada e goiabada e dum queijo em forma de pirâmide mais alto que dois homens um em pé nos ombros do outro, cada comensal recebia um presente de valor: relógio, caneta-tinteiro, papagaio, grafonolas e até automóveis. Chico Pirambóia calculou que aquela festa devia ter custado no mínimo 10 mil barris de petróleo. Mas que é 10 mil barris de petróleo para quem estava tirando dos seis poços 9.500 por dia? Era um dia e pico de produção, nada mais.

         Na mesa principal sentaram-se os membros da família e as pessoas mais íntimas. A cabeceira foi ocupada por Dona Benta, com Pedrinho à direita e Narizinho à esquerda. Ao lado de Pedrinho sentou-se o Visconde, de cartolinha nova, e ao lado de Narizinho sentou-se Emília, nos trajes habituais que ela adotara desde que começou a exploração do petróleo no sítio: culote amarelo, perneirinhas, blusa cheia de bolsos e capacete de cortiça. Depois vinham Mister Kalamazoo e Mr. Champignon; e finalmente, na outra cabeceira, tia Nastácia e Quindim.

         Quem ia fazer o discurso de saudação era este último.

         Quando chegaram à sobremesa, o rinoceronte levantou-se e disse:

         – Minha senhora e meus senhores! Embora eu não seja o mais qualificado para falar nesta festa, estou cumprindo ordens da Emília. Ela me mandou que falasse, dizendo andar enjoada de discursos de bípedes. Não fosse isso e eu ficaria lá no meu canto, ouvindo – pois gosto muito mais de ouvir do que de falar.

         – Por isso é que você não diz asneiras, Quindim ! – aparteou Pedrinho.

         – Será – continuou Quindim – mas nem sempre o calar é sábio. Seria, porventura, sábio que Dona Benta se calasse? Presto muita atenção quando ela fala e nunca percebi em suas palavras demonstração de outra coisa que não fosse a mais alta sabedoria.

         Emília sussurrou para Narizinho: “Ele está adulando Dona Benta para ver se pega um lugar na Diretoria…”

         – Sabedoria sim, meus amigos – continuou Quindim – porque Dona Benta é uma verdadeira filósofa, não digo como Sócrates, que só conheço por ouvir falar, mas como o saudoso Kalavaka, o rinoceronte mais sábio da minha tribo lá no Uganda. Eu tenho um meio prático de conhecer a verdadeira sabedoria: é medir os resultados que ela dá. A sabedoria de dona Benta deu como resultado final a felicidade completa que todos gozamos aqui, vocês homens e nós animais – eu, a Mocha, o Burro Falante, os passarinhos aí do mato nunca perseguidos por ninguém. Eu, por exemplo, só vim encontrar a verdadeira felicidade aqui. Minha vida no Uganda era um perpétuo desassossego. Além das lutas entre nós mesmos, dentro do bando, havia o pavor dos homens de capacete de cortiça que nos furavam o couro com balas dundum. Depois fui escravizado e andei a correr mundo num circo, exibindo meu corpanzil aos basbaques dentro duma jaula de ferro. Senti-me grandemente desgraçado nesse período de minha vida. A liberdade é o maior dos bens. Afinal fugi, corri pelas matas às tontas até dar com os costados no sítio de Dona Benta.

         Emília me descobriu e tomou conta de mim. Fez-se minha aliada e minha amiga. Tia Nastácia teve muito medo do meu chifre, mas hoje está uma grande camarada. Todos se tornaram meus amigos – e minha vida sossegou. Vivo numa perfeita beatitude. Se me perguntarem onde é o céu, responderei: aqui!

         E por que é assim? Por causa da sabedoria de Dona Benta, que é a aura misteriosa que tudo dirige neste abençoado pedacinho de mundo. Não tenho mãos como os demais presentes, e por isso não posso erguer a taça de cajuada que Emília botou diante de mim para eu bebê-la à saúde de Dona Benta e dos seus queridos netos – e da Emília, e do Visconde, e de tia Nastácia, e aqui destes amigos da América. Mas trocarei essa saudação pela que usamos lá no Uganda, entre os da minha raça; um urro – Muuuuuu…

         O urro de Quindim foi tão formidoloso que o pânico se estabeleceu nas outras mesas. Que correria! Que atropelo! Pedrinho teve de trepar em cima dum tonel e berrar com um alto-falante na boca:

         – Calma, pessoal! Não foi nada! Apenas a saudação à vovó feita por Quindim, à moda do Uganda. Calma! Calma! Todos aos seus lugares!…

         Os convivas foram voltando para suas mesas, muito ressabiados. Urro como aquele jamais tinham ouvido por aquelas paragens.

         O discurso de Quindim recebeu palmas de todos. Para um rinoceronte, estava de primeira ordem.

         – E agora, quem fala? – gritou Pedrinho.

         – Eu! – berrou Emília, levantando-se de copinho em punho.

         Mas a menina protestou:

         – Não, senhora! Primeiro os mais velhos. Tem a palavra Mister Kalamazoo.

         O americano levantou-se muito vermelho e louro.

         – Só sei furar poços – disse ele. – Para discursos não presto. E ainda que prestasse, que poderia eu dizer, mais do que disse esse prodigioso rinoceronte que acaba de falar? Sim, dona Benta é um poço de sabedoria. O trépano do estudo e da meditação desceu até às camadas mais profundas onde se acumula a ciência da vida. Vou confessar uma coisa: quando cheguei até cá, vim pago para sabotar todos os poços que Dona Benta quisesse abrir. Mas não tive coragem. Tudo me seduziu tanto, encontrei caracteres tão nobres, que até me envergonhei da minha primitiva intenção. E transformei-me. Passei a trabalhar como o mais leal dos homens, como o resultado dos meus serviços o demonstra. Viva Dona Benta! Vivam os seus netos!…

         Palmas e bravos cobriram as últimas palavras do sabotador que não teve ânimo de sabotar.

         – Fale agora Mr. Champignon! – gritou Narizinho.

         Mr. Champignon levantou-se, todo risonho.

         – Meus amigos – disse ele – eu igualmente fui contratado para sabotar de parceria cá com o amigo Kalamazoo. Mas também não tive coragem. Quem poderá ter coragem de prejudicar uma senhora de tão altos espíritos, como Dona Benta; ou um menino tão empreendedor e sincero, como Pedrinho; ou um encanto de menina, como Narizinho; ou esse prodígio da Natureza, que é a Emília; ou o Senhor Visconde de Sabugosa, o mais profundo geólogo que ainda topei na vida; ou essa tia Nastácia, que é uma quituteira do céu; ou ali o amigo Quindim, o mais nobre dos rinocerontes? Quem? Até o pérfido lago, se por cá aparecesse, não teria coragem de permanecer mau. A bondade humana tem isso consigo: seduz, arrasta, converte, catequiza. Eu fui um homem como os outros, com as qualidades e defeitos do comum. Mas mudei – o sítio de Dona Benta me mudou. Meu coração está limpo de maldade. O ambiente são aqui do sítio decantou minha alma…

         (O Visconde explicou a Pedrinho que decantar era uma expressão usada pelos químicos para significar destilar.)

         – E, portanto, nada mais tenho a fazer senão comungar com Mister Quindim e Mister Kalamazoo no hino de louvor que ergueram a Dona Benta, a boa fada que preside os destinos de todos nós! …

         – Bravos! Viva Mr. Champignon! – gritaram os meninos.

         Dona Benta agradeceu com um sorriso luminoso de bondade.

         – Agora tia Nastácia! – gritou Narizinho.

         A negra, de vestido novo, engomado, levantou-se com o maior desembaraço e disse:

         – Falar bonito como os outros eu não sei. Só sei cozinhar…

         – E botar minhoca no anzol do Visconde também! – aparteou Emília.

         – Isso também faz parte do cozinhar – respondeu a preta – primeiro a gente pega o peixe, depois é que escama e frita. Sei tudo que é de cozinha, e meu gosto é quando faço um prato e vejo a criançada lamber os beiços de gosto.

         – Beiço é de boi – aparteou Emília. – Gente tem lábios…

         – Essa pestinha quer me atrapalhar, mas não me atrapalha, não. Quem fez ela fui eu. De pano – mas depois o pano gerou carne e hoje está uma gente pura – só que mais atropeladeira que os outros.

         – Isso não é discurso, Nastácia – disse Narizinho. – Dei a palavra a você para fazer um discurso como o dos outros.

         – Discurso não sei fazer, porque não tenho estudos. Dizer coisas bonitas sobre Dona Benta também não sei. Só sei beijar a mão dela – e correu, com os olhos rasos de lágrimas, a beijar a mão de Dona Benta.

         Todos se comoveram, inclusive Quindim, que pingou uma lágrima do tamanho duma jabuticaba na bacia com capim picado que Emília pusera na sua frente.

         Dona Benta abraçou a preta, dizendo:

         – Sim, minha negra. Você, além de ser a minha grande amiga, é a outra avó dos meus netos…

         – Agora fale Pedrinho! – gritou a menina.

         Pedrinho levantou-se com o garbo dum Peter Pan.

         – Vovó, à sua saúde! – disse ele erguendo o copo. – Meu desejo é que a senhora pare onde está – e não morra nunca. A senhora é a maior das avós do mundo inteiro – e agora com o petróleo, é a mais rica. A senhora nos tem ensinado tudo. A senhora é tudo para nós. A senhora é a Avó Número 1! Viva vovó!

         – Viva! Viva!…

         – Um dia – continuou Pedrinho – eu hei de realizar uma ideia que tenho na cabeça: erguer um monumento a vovó. Narizinho, que é desenhista, está fazendo o esboço. E’ assim: Bem no alto, a estátua de vovó, de óculos, sentada na cadeirinha de pernas curtas, com um livro no colo, eu dum lado, Narizinho de outro, Emília e o Visconde aos pés. À direita, com a cabeça na altura do ombro de vovó, tia Nastácia fritando um peixe: à esquerda, com o chifre na altura dos joelhos de vovó, Quindim deitado, com a cabeçona entre as patas. Essas figuras ficarão dispostas em grupo em cima dum grande cubo de mármore com altos relevos de três lados e esta inscrição numa placa de bronze:

         “A DONA BENTA E. DE OLIVEIRA,

         DESCOBRIDORA DO PETRÓLEO NO BRASIL,

         E AVÓ DE

         PEDRINHO E NARIZINHO,

         OFERECE A PÁTRIA AGRADECIDA”

         – Por que esse “E.” abreviado no nome de Dona Benta? – perguntou Emília.

         – Porque fica feio gravar no bronze o sobrenome por extenso. Encerrabodes é uma idiotice de sobrenome que faz toda gente dar risada. Poremos E. só – e quem ler fica pensando que é Eduarda, Edviges, Emerência, Eulália ou qualquer coisa mais decente que o Encerrabodes …

         – E nos outros lados do cubo de mármore?

         – Nos outros três lados do cubo de mármore vão altos relevos representando cenas aqui do sítio. Num aparecemos todos nós fugindo da chuva de petróleo do Caraminguá n.° 1. Noutro, a cena do Quindim sentado em cima do cano para escorar o petróleo que queria sair. E no terceiro…

         – No terceiro, eu comandando os meus aviões “Faz-de-Conta!” – berrou Emília.

         – Não, senhora! – protestou Pedrinho. – A senhora já está lá em cima, aos pés de vovó. Os altos-relevos são de cenas passadas aqui. Poderá ser, por exemplo, o banho de petróleo do tal jornalista. Esse ponto resolveremos depois.

         – Só isso?

         – Não. Ainda há mais. Esse grande cubo de mármore assenta-se em cima da multidão dos “caxambueiros” e mais negadores e sabotadores do petróleo do Brasil. O escultor poderá representá-los sob forma dum conglomerado de cretinos e safados, uns por cima dos outros, de língua de fora e olhos pulando das órbitas, porque estarão esmagados pelo peso do bloco de mármore. Que tal meu monumento?

         Todos acharam-no ótimo.

         – Pois é isso! – concluiu Pedrinho. – Ergueremos esse monumento no pasto da Mocha, isto é, aqui onde estamos, para “edificação dos pósteros”, como diz o Visconde. Tenho dito.

         E sentou-se.

         Palmas e gritaria acolheram a maravilhosa idéia de Pedrinho.

         – Está um suco! – disse Emília.

         – Silêncio! – gritou Narizinho. – Agora quem vai falar é Sua Excelência o Senhor Visconde de Sabugosa do Poço Fundo. Tem a palavra o Senhor Visconde…

         O Visconde levantou-se, mas como era muito pequenino teve de ser plantado em cima da mesa.

         – Enfie o cóccix dele na garrafa barriguda! – gritou Emília – e Pedrinho assim o fez: fincou o Visconde na boca duma garrafa de cristal bojuda.

         Apesar do incômodo da posição, que o deixara de pés soltos no ar, o Visconde fez o seu discursinho.

         – Meus senhores e minhas senhoras! – disse ele. Eu quisera ter a eloqüência de Cícero para colocar-me na altura dos oradores que me precederam; mas não foi a Musa da Eloqüência quem presidiu ao meu nascimento.

         – Foi tia Nastácia! – gritou Emília.

         – Sim, foi ela, a boa preta que mantém a paz dos estômagos dos moradores deste sítio. Sou filho de tia Nastácia, confesso…

         – Credo! – Murmurou a negra, benzendo-se.

         – E, no entanto, por um desses misteriosos caprichos da natureza, sou um caso de filho que nada tem de comum com a sua progenitora. Não entendo de cozinha e nem sequer como. Meu pendor sempre foi científico. A ciência me atrai dum modo incoercível. No começo dei-me à Filologia: hoje dou-me à Geologia. E sabem por que mudei? Por uma razão econômica. A filologia não aumenta a riqueza dum país, ponderei eu com os meus botões.

         – Com os meus carocinhos de milho! – emendou a boneca.

         – Mas a Geologia aumenta. E’ uma ciência que conduz a resultados práticos, positivos, de grandes reflexos econômicos. Em que nos enriquece, por exemplo, saber que a palavra ontem vem de à noite? Em nada. Mas saber que em tal ou tal terreno existem condições para o acúmulo do petróleo, isso sim, enriquece. Pelo menos enriqueceu Dona Benta. Se não fosse a nossa mania geológica, não teríamos descoberto o anticlinal dos Caraminguás – e não estaríamos hoje nadando em dinheiro e fazendo a felicidade deste pobre povo, que até aqui viveu descalço, analfabeto e na maior penúria.

         O Visconde bebeu um golinho d’água e continuou:

         – A Geologia, meus senhores e senhoras, é a ciência do solo e do subsolo – e é no subsolo que se acumulam as maiores riquezas dum país. O solo, que é? Apenas uma superfície. E o subsolo? O subsolo é uma cubagem, é uma massa que vai desde a superfície até o centro da terra. Vou dar um exemplo. Um alqueire de terra não passa de 24.200 metros quadrados de chão, ou de superfície. Mas um alqueire de subsolo é uma massa volumétrica que desce até o centro da terra. Hoje o homem explora comercialmente o subsolo até 3.000 metros de profundidade; temos, portanto, que um alqueire de subsolo comercialmente explorável corresponde a uma massa de 24.200 metros cúbicos multiplicados por 3.000 – ou sejam 72.600.000 metros cúbicos!

         – Puxa! – exclamou Pedrinho.

         – Pois bem: essa imensa massa de subsolo, que corresponde a apenas um alqueire de superfície, encerra inúmeros minerais utilíssimos ao homem, e que, portanto, constituem o que chamamos Riqueza. Os Estados Unidos são o país mais rico do mundo porque compreenderam isso e lançaram–se à exploração das reservas do subsolo. Eles extraem do subsolo, por ano, produtos no valor de 6 bilhões de dólares, ou seja, mais de 100 bilhões de cruzeiros na nossa moeda! E nós no Brasil? Que é que extraíamos do nosso subsolo, antes da abertura do Caraminguá n.° 1?

         – Minhocas! – berrou Emília.

         – Exatamente – concordou o Visconde. – Só extraíamos minhoca – e por isso éramos um povo tão pobre. Mas agora tudo começou a mudar. Graças ao que fizemos no sítio, a corrida ao subsolo está iniciada – e não parará mais – e fará do Brasil o grande País que ele merece ser. Tenho dito.

         – Bravos! Bravos ao sabuguinho científico! – gritaram todos.

         – Interessante! – observou Dona Benta. – O Visconde até num discurso de brincadeira revela-se o sábio de sempre e nos dá lições. O que ele disse é rigorosamente certo…

 

18 – O triunfo de Dona Benta

         – Agora eu! – berrou Emilia, ansiosa por botar a sua colher no banquete.

         – Pois seja você – disse Narizinho. – Tem a palavra a Senhora Emilia de Rabicó…

         Emilia deu um salto para cima da mesa, com tal estabanamento que caiu abraçada a um peru recheado, sujando-se toda de gordura. Mas não fez caso, tal era a sua gana de falar. E não veio com os preâmbulos do costume.

         Foi logo ao assunto principal.

         – Estou com uma idéia ótima! – disse ela. – Talvez a melhor idéia de toda a minha vida…

         – Lá vem asneira! – rosnou Pedrinho.

         – Uma ideia do tamanho da torre do Caraminguá! – prosseguiu Emilia. – Uma ideia de gênio!…

         – Escorropiche logo essa ideia e não caceteie – disse Narizinho. – Vovó já está com sono.

         – Vou dizer – continuou Emilia. – Minha idéia é organizarmos um “triunfo romano” para Dona Benta. Que tal?

         Todos se entreolharam; ninguém havia entendido.

         – Sim, um triunfo romano – o “Triunfo de Dona Benta”! Ela e todos nós montados no Quindim, ela com um cetro na mão e nós com bandeiras, e faremos uma entrada triunfal pelo meio desse povaréu que está comendo e bebendo à tripa forra. Na frente botamos Mister Kalamazoo e Mr. Champignon na posição da Estátua da Liberdade, segurando fogos-de-bengala para iluminar o caminho. Atrás do Quindim, tia Nastácia com um tridente, feito Netuna, para ir cutucando Quindim quando ele parar. E na rabeira, o pessoal todo da Donabentense, com archotes. E mais coisas que no momento lembrarei. Que tal?

         – Ótima a idéia, Emília! – gritaram Pedrinho e Narizinho, entusiasmados.

         – Poderemos, por exemplo – continuou Emília – pintar na testa de Quindim estas letras famosas: S. P. Q. R.

         – Que significam? – perguntou a menina.

         – Não sei, mas eram usadas nos triunfos romanos. Tia Nastácia diz que querem dizer: São Pedro Quer Rapadura, mas acho que deve ser outra coisa.

         – É outra coisa, sim – disse Dona Benta. – Essas letras são as iniciais do célebre dístico romano: Senatus Populusque Romanus – o Senado e o Povo Romano.

         – Pois é isso – gritou Emília. – O Senado é a senhora e o Povo Romano somos nós. Que tal minha lembrança?

         Todos a acharam ótima, e levantaram-se da mesa em atropelo para a organização do Triunfo de Dona Benta.

         Com a boa vontade dos meninos e o faz-de-conta da Emília, meia hora depois o cortejo começava a desfilar.

         Na frente marchavam os dois americanos, queimando no ar fogos-de-bengala de cores vivíssimas. Dona Benta ia escarrapachada no congote de Quindim, com um cetro de cabo de espanador na mão, tendo à esquerda Narizinho, vestida de “Neta n.° 1” e à direita Pedrinho vestido de “Neto n.° 1” – tudo invenções da Emília. O Visconde, entrajado de geólogo, vinha de pé, com as mãos na cintura, sobre a anca do rinoceronte. Tia Nastácia vinha atrás, com o cabo de vassoura em punho para volta e meia dar um cutucão em Quindim.

         E Emília?

         Ah, Emília ocupou o seu lugarzinho de sempre, montada no chifre do paquiderme, cujo corpo, forrado com uma colcha de seda amarela do tempo do imperador, estava todo ornamentado de guirlandas de flores.

         Emília trazia na mão uma grande coroa de rosas.

         Atrás de Quindim vinham todos os operários e empregados da Companhia Donabentense, com archotes acesos – archotes embebidos no petróleo cru do Caraminguá n.° 1.

         O “triunfo” causou tremendo efeito no povo reunido em redor das numerosíssimas mesas espalhadas pelo pasto da Mocha. Os maldizentes tiveram vontade de dizer que aquilo não passava duma caduquice de Dona Benta, mas ao se lembrarem da sua renda diária de 9.500 barris de petróleo, emudeceram; engoliram a irreverência e juntaram suas palmas e berros às aclamações delirantes dos milhares de comensais.

         – Viva Dona Benta, a benfeitora do Tucano Amarelo!

         – Viva! Viva!…

         – Vivam os netos de Dona Benta, essas duas delícias do gênero humano!

         – Vivam! Vivam!…

         – Viva o Visconde de Sabugosa, o geólogo dos geólogos!

         – Viva! Viva!…

         – Viva a Marquesa de Rabicó!

         – Viva! Viva!…

         O cortejo seguiu solenemente na direção do Caraminguá n.° 1, acompanhado pela multidão dos comensais em delírio. Lá, defronte da sonda, Quindim parou e Dona Benta pediu a Mister Kalamazoo que pegasse a coroa de rosas das mãos da Emília e a colocasse na torre, com o letreiro que Pedrinho traçara em letras de ouro num quadrado de papelão.

         Mister Kalamazoo assim fez. Pendurou na torre a coroa de rosas e prendeu por baixo o letreiro de Pedrinho.

SALVE, SALVE, SALVE!

DESTE ABENÇOADO POÇO

CARAMINGUÁ NÚMERO 1

A 9 DE AGOSTO DE 1938

SAIU, NUM JATO DE PETRÓLEO,

A INDEPENDÊNCIA ECONÔMICA

DO BRASIL.

         Todos correram a ler.

         Novas palmas, novos bravos, novos hurras acolheram aquela inscrição em letras de ouro e com um significado de ouro.

         Mas Dona Benta, que não podia de sono, apenas disse:

         – AMÉM…

         E mandou Quindim tocar para casa. Foi dormir.

 

1938

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