A Espécie Humana – capítulos 35, 36, 37, 38 e 39
35.
não gostaria de viver novamente aquela manhã. não podemos escolher: atendemos ao telefone e alguém nos dá a notícia; abrimos a porta e nos deparamos com a notícia; recebemos o telegrama ou a carta e ei-la, a notícia. a coroa do silêncio.
após descer a escada, brinquei rapidamente com os cães. percebi que Luluva me olhava de longe, com olhos parados, não abanava o rabo. olhei em direção ao fogão e ali estava a notícia: Kamala jazia morta. esticada, já fria, tão pequenina… fechei os olhos e vi Lear, quase chorando, tendo Cordélia ao colo: passarinhos cantam lá fora, insetos voam e rastejam mas Kamala está fria e seu coraçãozinho silenciou.
como vou dizer isto ao menino?
não gostaria de viver novamente aquela manhã.
todos os meninos, um dia, perdem um bichinho querido!, falei baixinho, enquanto abraçava, com a maior suavidade possível, seu corpo trêmulo que soluçava abafado. eu não sou todos os meninos, pai. eu sou eu.
silenciei. o homem põe os pés na lua mas não encontra palavras de consolação diante da morte. repete as vazias fórmulas que não ousarei repetir… sabia que meu abraço não consolava, apenas segurava-o um pouquinho do lado de cá.
quanto a mim, sim, eu tinha molhados os olhos mas não chorava. algumas lágrimas vieram apenas para me lembrar de mortes anteriores, animais queridos, sim, e por que não?, e gentes, e quantas e quantas!, eu era também um daqueles tantos meninos a quem morreram bichinhos queridos. tudo que me cabia era suavizar os tremores do corpinho que soluçava.
meu pai não estava ali, é claro; ao perceber o que tinha acontecido, desapareceu por completo.
depois de uma espécie de sono letárgico em que os soluços foram aos poucos diminuindo, o menino falou:
cadê o vô?, pai.
deve estar lá fora.
vou falar com ele. ela pode ficar aqui mais um pouco?
sim. vou enrolá-la num paninho.
saiu. pela janela vi os dois agachados, conversando, um em frente ao outro, meu pai de costas para mim.
ao entrarem, muito tempo depois, percebi o terrível e frio olhar com que meu pai me fulminou. ele mesmo notou que exagerara e me abraçou:
desculpa, filho!
não está sendo fácil!
nós combinamos, eu e ele, que vamos cremá-la. combinamos também uma música bem alta, com as caixas do lado de fora. a escolha da música é sua, claro!
e saiu.
os dois organizaram tudo, meu pai entrava e saía. os cães também iam e vinham mas Luluva continuava silenciosa e permanecia ao meu lado.
finalmente, o menino entrou.
pai, só falta o fósforo.
quer que eu te ajude?
não! cuide da música. o vô está comigo. com a voz embargada e os olhos molhados.
me dê um abraço!
levantei-o no colo e o beijei na testa. escolhi uma música bonita, falei.
abraçamo-nos forte.
vai.
36.
meu filhinho como que está só em presença da morte. Isaías falou e Pedro repetiu, séculos depois:
toda a carne é erva
e todo o seu encanto é uma florzinha campestre;
seca a erva, murcha a flor.
e foram essas as palavras, entre outras, que Brahms musicou.
tons graves e um ritmo pesado dão início a uma linda melodia. vejo uma fumaça tênue saindo de uma pira ao longe.
denn alles Fleisch es ist wie Gras
und alle Herrlichkeit des Menschen wie des Grases Blumen.
surgem as primeiras nuances de vermelho-chama e a fumaça se enegrece de súbito.
das Gras ist verdorret und die Blume abgefallen.
trompas anunciam, não o juízo, mas as cinzas de um serzinho que veio ao mundo apenas para ser feliz e gerar outros serezinhos mas eis que por cilada do destino este destininho não se cumpriu.
e após a explosão dos tímpanos indicando que não há perdão e a morte não volta atrás o fogo aumenta e um terrível cheiro de carne queimada e toda a carne é erva e o seu encanto é uma florzinha campestre meu filho não consegue ficar lá este cheiro este cheiro eu o tomo no colo e ele não chora e seca a erva e murcha a flor nós nos abraçamos e eu penso com alívio que o cheiro é de uma triste cachorrinha morta e felizmente não é de um ser humano quem sabe um judeu ou um estudioso de filosofia denn alles Fleisch agora com o tutti orquestral toda a carne é erva e eu é que me vejo chorando mas não choro pela morte choro pela vida choro porque a música me faz chorar.
meu pai ficou parado, ainda de costas para mim, olhando a fogueira que diminuía. quantas e quantas vidas além das gentes e bois e jumentos e ovelhas e camelos, enumeradas todas num livro do destino que não existe e os outros bichos maiores e menores e coisinhas que se movem e quase não se poderia chamar a isso de vida mas é vida, sim, como não? então alguém seria capaz de criar isto? e para todas estas vidinhas, breves, umas, demoradas, outras, para todas elas, há o momento, inexorável, em que flutua e paira e desce a coroa do grande silêncio.
o réquiem alemão continuou e ainda com o menino no colo eu troquei o lado do disco. a seguir descemos para a cascata. sentamo-nos e em silêncio ficamos. meu pai chegou bem depois, com os olhos vermelhos, como pode ser isto?, eu pensei. eu não entendia o que ele queria me dizer com seus olhares. os cães se chegaram. olhei para Luluva e percebi que também ela não devia entender o meu olhar.
37.
pai, qual é a música mais triste que você conhece?, perguntou-me meu filho. já estamos deitados nos nossos colchões. o dia foi pesado. meu pai não conseguiu esconder aqueles olhares em que eu comecei a perceber um tipo de censura muda. o menino saíra e entrara diversas vezes e quase quero crer que os grandes cães é que o consolavam porque iam e vinham com ele, formando um tipo de séquito solene e sem alegria mas que o confortava a ponto de aos poucos ele se sentir um pouco mais à vontade.
a música mais triste pra mim é o prelúdio do terceiro ato do Tristão.
você tem?
tenho uma fita em que gravei só essa música, uma atrás da outra. quer que eu ponha pra você dormir?
por que gravou uma fita inteira com a mesma música?
eu estava muito triste e queria ficar escutando todo o tempo.
parece o pequeno príncipe e o pôr-do-sol.
é verdade.
e como é que as pessoas deixam de ficar tristes?
não sei bem. acho que a gente acaba se cansando. venha pra minha cama, meu colchão. depois que você dormir, eu te levo pro seu.
cobri-o. tirei as pilhas do toca-disco, coloquei no gravador.
já iniciado o trágico lamento, ele falou:
vovô, amanhã quero te fazer uma pergunta.
por que não agora?
quero pensar um pouco mais. témanhã, pai. témanhã, vô.
e meu pai: muito bem, crianças. aconteceu. o que tem que acontecer, tem que acontecer, doa a quem doer. não, não era isso que eu queria falar. é pena que algumas coisas doam tanto. vamos dormir.
e eu, perdido e sonolento, terminei por passar ao colchão do menino, onde dormi rápido, sem sonhos nem visões, apenas muito cansado.
38.
estamos deitados, cada um no seu colchão. temo que o menino não durma logo porque hoje, ao contrário da tarde de ontem, quando ele ficou perambulando com os cães, hoje ele dormiu praticamente o dia inteiro. comeu em horas erradas e não falou absolutamente nada. abria os olhos, levantava-se, ia ao banheiro, olhava pela janela, diversas vezes olhou para o lugar onde Kamala fora queimada, parava em frente à mesa onde deixei frutas e biscoitos, uma vez ou outra comia, voltava às almofadas da sala e se cobria. eu fingia que não o vigiava mas procurava estar sempre por perto.
quando eu e o pai tomávamos a sopa, ele levantou-se.
pai, você acende o álcool pra eu tomar banho?
sim. vai querer sopa?
acho que vou.
vamos ao banheiro.
e depois do banho ele jantou. apesar do silêncio, havia uma tranqüilidade doce em torno de nós. meu pai pegou um livro, eu peguei outro. o menino subiu e voltou com o volume do Museu Egípcio de Cairo. folheava lentamente, às vezes voltava páginas e recomeçava.
e agora estamos deitados. eu e meu pai esperamos uma pergunta. eu tenho uma suspeita e juro que meu pai sabe ao certo a pergunta que virá.
vô
oi.
eu não disse que ia fazer uma pergunta?
sim. eu estou esperando.
longo silêncio.
pra onde que a gente vai depois que morre?
meu pai sentou-se na cama.
vou reacender o lampião. gostaria que fosse mais uma conversa do que um discurso.
no entanto, ele não abriu toda a luz, criando apenas uma penumbra amarelada.
pra onde que a gente vai depois que morre? indagou num outro tom. pois então! há tanta coisa pra se falar! se eu não usasse o cérebro que tenho e repetisse as fórmulas que estão disponíveis em volta da gente, eu falaria a mais tola: a gente vai pro lado do papai do céu. mas essa bobagem não diz nada. então, menininho, prepare-se pra ouvir.
os antigos tinham suas crenças e nós modernos temos as nossas. vamos viajar; não estou seguro quanto a tudo que vou falar:
para os egípcios a alma do morto ia para o tribunal de Osíris. após ter falado de suas virtudes, seu coração era pesado. a alma deles devia ter coração. os culpados eram devorados por um monstro ou iam para um lugar onde passavam fome e sede. os bons iam para o reino de Osíris: lagos, lírios, florestas, frutas abundantes e muita caça.
coisas que não existem no deserto, né?, vovô.
exato. mas nem todos os povos antigos imaginavam estes julgamentos para bons e maus. para muitos deles, as almas ficavam num mundo de sombras até desaparecer. os gregos, por exemplo. algumas lendas imaginavam punições para criminosos da mitologia mas o povo em geral não se preocupava com tais julgamentos.
as almas dos astecas iam para lugares diferentes, dependendo do tipo de morte: doença, assassinato, guerra, afogamento, cada morte tinha o seu outro-mundo.
na antiga Pérsia, a alma deve esperar nove mil anos para o fim do mundo. então, o fundador da religião, Zoroastro ou Zaratustra, chegará e com a virgem Hvôv vai ter o Messias Saoshyant. esse Messias vai enaltecer o bem e o deus Ahura-Mazda vencerá Ahriman, a força do mal. os mortos vão se levantar das tumbas e serão julgados. para os bons bem-aventurança e para os maus as chamas do inferno. só que esse inferno será temporário, eles não eram muito sádicos.
agora vamos falar de uma crença mais fantasiosa. para algumas tribos do centro-oeste africano, as almas dos homens bons ficam na aldeia durante as festas fúnebres. depois ouvem o canto do Ngofio-Ngofio, o pássaro da morte. engordam, engordam e morrem para sempre. os maus não ouvem o pássaro e ficam assombrando os vivos durante a noite. quando morre o último ser humano que eles conheciam, só aí eles ouvem o Ngofio-Ngofio e vão para o Totolan, a casa das trevas, onde há gemidos e lamentos.
os budistas e os hinduístas dizem que há reencarnação. a alma do morto, depois de um tempo, volta para outra criança que vai nascer. assim, a cada encarnação, ela se aperfeiçoa até atingir um tipo de felicidade eterna de uma mente iluminada.
os espíritas do ocidente têm destino semelhante para a alma humana.
para os cristãos, os judeus e os muçulmanos, há um pequeno julgamento após a morte e depois um tipo de juízo final. para os judeus será no advento do Messias. e, após o julgamento último, céu e inferno, cada um do seu jeito. hoje em dia os cristãos falam que aqueles capetinhas com garfo são um tipo de símbolo para significar a ausência de Deus. estou meio que simplificando a coisa.
finalmente, para algumas pessoas, o ser humano, depois de morrer, volta a ser o que era antes de nascer: nada.
silêncio.
vovô!
oi.
longo silêncio. o menino se enrolou mais no cobertor e veio pro meu colo. abracei-o e aconcheguei-o ao peito, cobrindo-o bem.
vovô!
fala!
eu posso escolher?
riso de meu pai.
e aí, o que é que eu posso dizer? você pode escolher aquilo em que quer acreditar. mas, e lá? quem é que vai saber?
silêncio. meu pai mudou de tom. perdeu aquele jeito de professor e fez como que uma reflexão em voz alta.
na verdade… na verdade uma destas crenças pode ser verdadeira. mas não todas. ou todas estão erradas, menos uma, ou todas estão erradas, sem salvação. ou existe reencarnação… ou não.
vovô, se o cristão morrer e chegar lá e descobrir que existe reencarnação, ele vai quebrar a cara!, né?
risos de meu pai. que continuou:
e se o espírita, que viveu a vida inteira pensando que tinha a eternidade pra aprender, se ele morre e chega lá e alguém diz: vai pra fila do julgamento. risos. vamos deixar de brincadeira. o trágico disto tudo é que não podem estar todas certas, estas crenças. ou uma apenas, ou nenhuma. ponto final. posso apagar?
por mim, pode, vô.
deixa que eu apago, pai. quer ficar aqui? durma, depois eu vou pra tua cama; falei pro menino.
depois que fui pro colchão dele, ele ainda falou:
vovô.
oi!
e os bichos?
para algumas das crenças, uma reencarnação pode ser em um animal.
longo silêncio.
vovô, témanhã. céu sem bichinho, vovô, não é céu.
ouvi Luluva se espreguiçando lá embaixo. a seguir fez um ruído como se fosse um bocejo.
39.
percebi aos poucos que nenhum de nós conseguira dormir. de vez em quando alguém se mexia. meu pai era o mais discreto. finalmente, o menino:
pai!
oi, filho. não consegue dormir?
não.
também, você dormiu o dia inteiro, né?
não, não dormi o dia inteiro. foi esquisito. nem dormia, nem pensava. vô!
oi.
eu queria continuar conversando.
pois então, o que quer perguntar?
como é que as pessoas inventam essa coisarada toda? o pássaro da morte, esses céus diferentes, esse vai e volta da alma…
bem, quase todas as religiões são ensinadas a uma pessoa especial. o Deus deles vem e fala tudo.
é do mesmo tempo em que os bichos falavam?
quem sabe?
mas você sempre conta as coisas do seu jeito. como é que você explica isto tudo?
pois bem, vou acender o lampião e ler um trecho de um romance. e isto fez meu pai. acendeu o lampião e pegou um de meus livros. e continuou:
houve um escritor russo que era epilético. sabe o que é um epilético?
sei. a pessoa tem ataques.
isso. espere um pouco. folheou o livro. então, ouça o que vou ler. em um romance, o escritor escreveu o que ele sentia antes de ter o ataque. e leu:
A sensação de vida, de consciência plena, era multiplicada por dez mas durava um piscar de olhos. A mente e o coração são inundados por uma luz extraordinária; os medos, as dúvidas, as ansiedades, tudo é deixado de lado. Tudo se resume numa calma cheia de serenidade, harmonia, alegria e esperança. Muita razão e compreensão. Neste instante, parece que eu compreendo a frase extraordinária do apóstolo: findou o tempo.
silêncio.
conseguiu entender?
assim assim. uma porção de coisas boas.
então. e de repente ele tinha o ataque e, quando voltava a si, ficava sabendo que tinha ficado horas ou mesmo dias fora de si. esta maneira de sentir fora do normal das pessoas acontece com alguns doentes ou por efeito de alguns remédios. nosso cérebro tem substâncias que, conforme a quantidade maior ou menor, fazem a gente sentir o mundo de um jeito que não é normal. fora isso, algumas pessoas são loucas, ouvem vozes, vêem coisas…
então são doentes ou loucos ou estão com remédio?
isto seria o modo simples de explicar. não são pessoas normais como a gente. percebem o mundo de maneira diferente. e vão falando e contando. às vezes escrevendo…
resolvi interferir: algumas pessoas têm poderes que a maioria não tem. algumas adivinham o futuro… e o menino:
algumas descobrem metais…
… e por aí afora.
silêncio.
é muito confuso?, perguntei. e o menino:
nem sei.
silêncio.
é, acho que estou com sono, falou o menino. meu pai apagou o lampião. após um longo tempo em que ninguém se mexia, interpelei meu pai.
pai!
risos. você também?
sim! não seria possível que estes visionários, estes que têm alterados os seus estados mentais, doentes, com tumores no cérebro, drogados, esquizofrênicos, não poderia dar-se que eles tivessem de fato contato com o mistério e tivessem acesso à verdade? exatamente por causa desta percepção alterada, alteração que também poderia acontecer por um excesso de fé? mortificações e jejuns, lembra-se do Céu e Inferno, de Aldous Huxley?
bem, isto seria de fato possível. mas veja, por que, então, a verdade é tão diferente?, conforme o lugar e a época! essa revelação partiria do material do inconsciente coletivo ou do inconsciente individual? de qualquer maneira, se houve contato com a verdade, as conclusões deveriam ser idênticas.
e o menino, de repente:
vovô!, por que os egípcios nunca fizeram um deus com cabeça de tatu?
meu pai: aí está a tua resposta. vamos dormir.
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