alma desdobrada, cap. 35, 36, 37, 38, 39 e 40

alma desdobrada, capítulos 35, 36, 37, 38, 39 e 40

  

035.

          fui com joão carlos assistir o mosseiev, balé russo, no maracanãzinho. acabado o milagre da dança, saímos, perdidos naquele formigueiro de pessoas não achadas. eu tinha um casaco de lã jogado sobre os ombros, mas à frente, cobrindo o peito, como não se costumava usar. ouvíamos rumores e vaias numa esquina. um grupo de rapazes fazia algazarra às custas de alguém. então eles me viram e começaram a vaiar e a gritar bicha. avançaram e me rodearam. corri. queriam me bater. eu me defendi cheio de medo, ataquei um que se aproximava, corri mais, um deles ameaçou me tirar o casaco, puxei-o, atravessei a rua e entrei num ônibus lotado. um senhor me perguntou o que aconteceu, quiseram me bater, não sei por quê.

         à noite eu delirei muito. aquela dança espantosa perseguia meus sonhos, eu acordava trêmulo e assustado, os olhos arregalados para o vazio.

         criaturas saídas do nada! minha frustração incontida imaginava futuras ocasiões em que eu me vingaria de vocês. quanta raiva inútil alimentei!

         hoje sei bem que vocês são aquilo que sempre foram: objetos que não se troca: nada existe no mundo que queira ocupar o espaço que vocês usurpam.

         quantos animais habitam um homem?

         apenas um! sempre! ele mesmo!

  

  036.

          madeirit, estou distraído com meu serviço. tenho dezessete anos. vou ao banheiro urinar. entro. antes que eu feche a porta, fernando a empurra e se tranca comigo. eu estou tão sem entender nada, que fico parado, a olhá-lo. ele me abraça, me aperta, me beija na boca e me enche com sua língua cheia de saliva. eu não entendo nada, não tenho tempo de entender. todo o meu corpo se completa com algo que desconheço e eu gozo em alguns segundos de beijo. meu coração se desespera.

         nunca consegui esquecer aquele estranho beijo.

 

 37.

          algumas vezes a comoção do mundo me conquista por inteiro. geralmente, mas não só, é o amor que me permite isso.

         estou distraído, olhando uma paisagem que se desmancha do outro lado da janela; ouço uma música, que abre portas e me dá indicações sobre o meu significado; a comoção avança lenta, meu coração se protege contra ele mesmo, eu sinto isto a que se chama comover-se:

         uma desconhecida dor me embrulha e me carrega num voo mágico, para paragens que não se consegue descrever e não se completam na imaginação: eu menino, pequenino, diante do colorido do mundo enorme que me envolve; eu gigante, com um mundinho desprezível a meus pés; eu, indo para trás de minhas origens, a ouvir o eco das vozes primordiais que gritaram no antes a história do que é humano; eu, assustado diante do desconhecido, o homem que não compreende; eu, ousado diante do desafio, o homem que não tem medo; eu, pleno, diante da questão, o homem que não mede o obstáculo, porque se sabe capaz; eu, alguém que pensa em alguém e não entende o que é isto de amar; eu, alguém que procura dentro e fora um pedaço da resposta impossível; eu, confuso.

         aí, é preciso pensar nalguma banalidade, pra não cair.

         pra não cair.

  

038.

          que coisas me faz lembrar minha mãe? há cenas que escapolem fácil, envolvidas que ficam por uma neblina de véus esvoaçantes. por enquanto, quero me lembrar de olhos macios, perdidos no meio do espaço, esquecidos no ventre do tempo. dois olhos cheios de piedade. ou de mágoa. ou de amor, que sei eu? lembro agora, quero lembrar agora que, alguns dias após sua morte, eu estava brincando e apareceu sílvio, um amiguinho que eu não via há dias. ele me olha e de repente nós percebemos que ainda não nos tínhamos visto, após o acontecimento. ele solta a exclamação: jorge teles! coitada da sua mãe! a gente se abraça e eu choro.

         foi o único choro por minha mãe, que saiu de dentro de mim. os outros eram algo como imitação de tantos choros que minhas irmãs choravam todo o tempo.

  

039.

          ele faz o científico, à noite, dezessete anos. toma o ônibus para voltar para casa. alguém se senta a seu lado. há distração, há pensamentos perdidos, há fantasias a perseguir. de repente ele olha para o lado e o menino também se vira. eles se olham nos olhos. que olhos! de onde saiu esta criatura de lenda: são dois imensos olhos de mar, verdes e cheios de faísca. todo o meu corpo estremeceu e eu sentia também nele um tremor fortíssimo. cada pequeno contato de pernas ou quadril ou de ombro era antecedido e seguido por algo que seria como que um medo vitorioso. eu queria olhá-lo de novo, não tinha coragem. estava eletrizado, carregadíssimo de tensão, uma tensão comovente, o corpo cheio de música e espanto. queria mesmo olhar de novo aquele adolescente cheio de encanto e de fogo, não tinha coragem. ele puxou o sinal, foi-se, anotei bem o lugar, lembrei-me a custo do momento em que ele entrara, dias e dias esperei reencontrá-lo, aqueles olhos nunca mais cruzaram o meu caminho solitário.

  

040.

          estou indo para realeza, nove anos recém feitos, férias de julho, para a casa do irmão e padrinho, washington. vigio estradas e casebres e árvores e campos. tudo corre numa vertigem. eu tenho o coração aprisionado. um pequeno coração preso numa pequena prisão. eu sabia que havia algo a que chamavam amor. pensava que aquilo que eu sentia era aquilo a que chamavam amor. eu me lembrava da nely. e quando lembrava, queria chorar. também o meu lembrar era pequeno e ainda assim o meu ameaçado choro. tudo era menino em mim, menino, mas, para mim, pequeno diante do mundo, virgem de anzóis, de facadas e de dores ininteligíveis, para o menino que eu era, o primeiro amor tinha a força capaz de construir dez impérios.

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