A Espécie Humana – capítulos 15, 16, 17, 18 e 19
15.
que livro maluco. é sempre desse jeito?
não. às vezes é horrível. outras vezes é muito bonito. às vezes ensina muito e outras vezes é de uma burrice medonha.
vovô, você não mudou nada quando leu?
claro que mudei! onde está escrito Deus, ou coisa que o valha, eu li o Patriarca Louco e Sádico. fica mais lógico!
silêncio.
quanta ferocidade, vovô. nem quero sonhar com isso. mataram trinta e dois mil meninos.
como sabe?
imagino que a quantidade de meninos e meninas seja mais ou menos igual.
silêncio.
como foi que deram dezesseis mil meninas a doze mil soldados? os chefes levaram mais de uma?
o livro não diz.
silêncio.
vovô, trinta e duas meninas foram entregues aos sacerdotes. o que fizeram com elas?
vamos dormir.
16.
durante o café, o menino falou:
pai, eu esqueci de perguntar. onde está o morcego?
depois te mostro.
como descobriu que ele dorme atrás do espelho?
foi assim: sempre havia uns cocozinhos no meu presépio, embaixo do espelho. eu achava que era rato. um dia, eu estava limpando e ouvi um barulhinho. então eu pensei: vou levantar o espelho e o ratinho vai sair correndo. mas não, levantei o espelho e o barulhinho continuou. então eu olhei e vi o morcego. é bem miúdo.
quero ver agora.
acabe de comer.
pouco depois, foi que levantei o espelho.
fiquem aqui em baixo, fica mais fácil de ver.
nossa!, pai, que bicho feio!
passe a mão nas costas dele. parece de veludo.
eu, nunca!
o velho porém passou o dedo de leve sobre as costas do morceguinho. a cada toque ele abria a boquinha e se contraía.
é muito feio. parece com o capeta.
risos.
pai, outro dia os meus amigos entraram aqui pra beber água e me perguntaram por que é que no seu presépio tem um diabo.
não é um diabo. é um fauno.
ele tem pés de bode e chifre e está pelado.
e tem uma flauta de Pã nas mãos, veja.
mas nenhum presépio tem fauno!
eu quis fazer um presépio juntando todas as religiões, para o nascimento do Homem. não tive tempo de continuar, ou parei, não sei, e ficou só o fauno. pô! um fauno no presépio e um morcego atrás do espelho. eu vou, mas é brincar.
saiu. meu pai pegou as ferramentas de jardim e saiu.
quer ajuda?
claro que não!
vou então lavar a roupa.
17.
pai, hoje eu vou te ajudar a preparar a comida da cachorrada. não está já na hora?
está. então vamos colocar este banquinho perto do fogão. algumas coisas eu é que vou ter que fazer. primeiro, o panelão.
quantos baldes de água?
agora, um e meio. depois, mais meio.
nossa!
então, está feito. vou segurar a vasilha e você vai jogando seis copos de arroz.
um e dois e três… e tá… e tá… e tá! e o que mais?
este pacote com dorsos de frango. cuidado!
quantos pedaços tem aqui?
são quatro.
mas são cinco cachorros!
são. vou picar esta cabeça de alho e você põe lá dentro.
feito. só isso?
só. depois que ferver e cozinhar, eu misturo a farinha de milho no último meio balde de água, junto tudo e tampo e tiro do fogão. de manhã, estará frio.
mas pai, um cachorro vai ficar sem carne.
você nunca viu como eu faço de manhã?
ah!, é. você enfia a mão no panelão e despedaça toda a carne e distribui tudo nas bacias.
e aí, quantos pedaços ficam pra cada um?
uma porção de pedaços pequenininhos. hm!, entendi.
se eu colocasse os pedações nas bacias, o que ia acontecer?
um cachorro ia ficar sem.
e se fosse um pedaço só pra cinco cachorros?
o mais forte pegava o pedaço e os outros ficavam sem.
e se dois achassem que cada um deles era o mais forte.
aí, ia ter uma briga feia.
você já viu algum deles brigar por causa de comida?
não. eles até comem dois na mesma bacia, de vez em quando.
isso tem um nome, filho. mais tarde, você vai aprender.
18.
pai, o vô me mostrou uma borboleta que tem um oito em cada asa.
são muito comuns aqui.
quando a gente as olha de lado, em vez de dois oitos a gente vê dois infinitos! falou o velho.
e o menino: é!
e o velho:
então aprenda: dois infinitos são do mesmo tamanho que um.
19.
no meio dos meus papéis, eu encontro:
quando a tensão é insuportável, o homem fantasia; fantasia durante o sono para metabolizar o turbilhão mental – o sonho; fantasia para evitar a total fragmentação entre o seu corpo físico e aquilo que entende por alma ou espírito ou consciência – a culpa é do mundo, cuja realidade pretende esmagá-lo – a loucura; fantasia porque precisa explicar a assombrosa existência: por que estou aqui, por que existe o mundo – a religião; fantasia dentro do que entende por pensamento ou raciocínio ou lógica, posso inventar um sistema alucinado, tudo é matéria, tudo é idéia, tudo é sombra, tudo é nada, tudo é tudo, desde que feche o sistema num outro sistema que não se contradiga – a filosofia; e fantasia por opção, criando universos particulares, brincando, jogando, sabendo todo o tempo que tudo é mentira – a arte.
as cinco faces da fantasia: o sonho, a loucura, a religião, a filosofia, a arte.
um amigo meu, mais tarde filósofo, acrescentou: a ciência também. não seria este aspecto da ciência um ramo da filosofia?
quanto papel, quanto escrito! vou dormir.
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