A Espécie Humana – capítulos 20, 21, 22, 23 e 24
20.
pai, meus três amigos vão comer aqui e a gente quer batata frita com laranjada.
pois muito bem.
enquanto descasco batatas, ouço do outro lado da janela o menino e um dos amiguinhos.
o que é que você está tirando da mochila?
papéis.
não vai descer pra cascata?
não. vou escrever.
escrever? com este sol?
estou escrevendo um livro.
um livro! sobre o quê?
sobre o coelho da páscoa. quero provar que existe o coelho da páscoa.
você sabe que ele não existe.
eu preciso que ele exista e vou provar que existe. são três elementos: a páscoa, o coelho, o ovo. é como uma trindade. o difícil vai ser explicar por que o ovo é de chocolate.
e se não conseguir explicar?
então digo que é um dogma.
e o que é um dogma?
um dogma é assim: eu digo que é verdade e você tem que acreditar, se não vai ser queimado vivo.
vade retro! como vai se chamar este livro.
suma teológica.
ah! com certeza, um livreco!
21.
meu pai preparou a charrete, atrelou a égua e saiu com o menino. deito-me nas almofadas e semifecho os olhos. as aves silenciaram lá fora. virá chuva? os cães dormem. ouve-se muito fraquinho o barulho das águas lá embaixo.
tudo em ordem por aqui. tenho preguiça de ler. fecho os olhos e penso num sono curto.
um vulto branco se desenha em meu cérebro. estou imaginando um vulto branco, eu penso. se eu abrir os olhos e houver um tipo de fantasma à minha frente, estarei tendo um tipo de alucinação. sei que nada verei mas, para confirmar esta certeza frágil, eu abro os olhos. as aves silenciaram, os cães dormem, nada se move e não consigo ouvir o ruído das águas lá embaixo.
todavia, o vulto branco está diante de mim. finíssimos véus transparentes que, esvoaçando, formam o contorno de uma figura humana; nada se vê de pele ou fisionomia, apenas os volumes como que flutuando no espaço. e sobre a cabeça uma imensa coroa.
a Morte! exatamente como um dia eu a desenhei! e por que está sorrindo? como sei que está sorrindo?
um abalo, em todo meu corpo, me acorda. abro os olhos. um sonho! um sonho?
nenhuma ave canta.
os cães devem dormir.
o eterno ruído das águas lá embaixo prende por um momento minha atenção. e mergulho aos poucos num sono sem imagens.
o que é que ela veio fazer aqui?
22.
pai, olha o jornalzinho que o vô recebeu pelo correio.
que engraçado! é de alguma escola?
é. disse o menino. e o velho:
outro dia, quando eu voltava do banco, encontrei um senhor com um adolescente. ele me cumprimentou sorrindo e eu perguntei
você foi meu aluno?
sim. e me disse o nome.
lembra-se de mim?
claro. lembro do nome mas vocês alunos mudam muito. e esse rapazinho é seu filho?
é. veja, filho, este senhor foi meu professor de arte.
de arte! então o senhor podia responder ao meu questionário.
que questionário?, meu filho!
pro jornalzinho da escola. cada um da minha equipe recebeu um assunto e tem que fazer uma reportagem. o meu é a arte moderna.
não vamos incomodar?
claro que não! vamos tomar um suco de frutas e eu respondo.
então falei tudo no gravador do pequeno e hoje recebemos este jornalzinho.
então, deixa eu ler alto, pai. vamos lá:
o que é que o senhor pensa da arte moderna?
arte moderna? você conhece a história da roupa nova do rei? pois é. a arte moderna é esse rei. e o rei está nu. e ninguém tem coragem de dizer que o rei está nu. e o rei é feio. é barrigudo, tem as tetas caídas, saco pendurado, balofo, gordo, sem graça. olha a bunda dele!, olha a bunda dele!
escreveram bunda?, perguntou o menino.
sim. é a vantagem dessas escolas de hoje.
e acabou ai? de novo o menino.
não. aí eu levei a coisa a sério, falou meu pai. e leu ele mesmo.
a estética do masoquismo dos intelectuais:
vamos tentar ser claros e simples. é sabido que algumas obras de arte são fáceis de serem sentidas e entendidas e outras são um pouco mais difíceis. podemos exemplificar com música. uma canção popular é mais fácil de entender do que Chopin, que, por sua vez é mais atraente do que uma longa sinfonia. à medida que as pessoas se habituam, vão aceitando obras mais complexas. isto nos leva a uma constatação: algumas pessoas são capazes de entender e sentir obras de arte que a maioria das pessoas não entende. e isto é verdade. houve um momento no meio do século passado em que a vaidade começou a mascarar o gosto das pessoas ditas intelectuais. está difícil de entender? é mais ou menos assim: eu, que compreendo a arte, sou capaz de gostar disto, sou capaz de su-por-tar esta obra de arte, coisa que a maioria das pessoas não consegue fazer. e eis que num determinado momento a arte foi substituída pela farsa. nós nos enganamos, eu me enganei, quem acompanhava as manifestações da cultura mundial se enganou. os portões foram fechados. o que vai ser feito daqui pra frente? principalmente a música e as artes plásticas. onde está a saída? o dinheiro está envolvido nessa discussão.
num resumo, quer saber o que penso da arte moderna? atualmente, do jeito que está, é uma arte feita por adolescentes. entre com seu pai naquele museu da esquina, há uma exposição lá, imagine que os autores daquelas obras têm entre doze e dezesseis anos. vai ficar tudo adequado e lógico. um copo de Monteverdi, por favor!
perdão, senhor, disse o garçom.
é brincadeira. acho que vamos desligar este gravador. não seria interessante eu escrever tudo? coisas mais simples, mais fáceis!
assim está ótimo. muito obrigado.
e termina aqui. mas o final não foi assim. ele não falou assim está ótimo, muito obrigado. ele desligou o gravador e disse: assim está muito bom. ninguém lê mesmo estas reportagens; a turma só quer saber das fofocas de namorado e namorada.
23.
pai, como que você lê um livro tão grosso como esse? quantas páginas?
seiscentas.
pô! só de pensar me dá preguiça.
um livro é como uma viagem. se a viagem é maravilhosa, você não quer que ela termine nunca. e quando termina, fica na alma um gostinho de saudade que a gente jamais esquece.
parece que tem figuras…
foi escrito pra gente nova. um dia você vai ler, tenho certeza. chama-se a maravilhosa viagem de Nils Holgersson. acabou de ser traduzido.
por enquanto, fico com o nosso Monteiro Lobato.
felizes os países que contam com tais livros pra suas crianças e jovens.
24.
tenho dormido mal nestes últimos dias. o sono é irregular e eis que de repente eu percebo que estou acordado já há muito tempo. mergulhado num silêncio negro. há um momento dentro da noite em que até mesmo os grilos se calam. ouço, ora o pai, ora o filho, a se remexerem na cama. uma vez ou outra um dos cães sai, eles abrem a porta da cozinha e ela volta e se fecha com um rangido imune a lubrificações.
então eu desço para preparar um copo de leite quente. ao subir, antes de apagar a vela, vislumbro rapidamente o meu pequeno presépio, aquele mesmo que está debaixo do espelho, numa pequena estante. estremeço.
o morceguinho desceu e, colado à parede, mas de cabeça para baixo, prostrou-se, também ele em adoração.
digo a todos que me visitam, que meu presépio é pelo nascimento do Homem. por isso eu o trago armado durante o ano todo. é um bebezinho nu, menino, deitado sobre palhas. é um pai e uma mãe vestidos com roupas medievais. é um boizinho, um burrinho, um cachorro e um galo, estes três últimos do bolo de aniversário feito pro menino, contendo a casinha e os heróis de os músicos de Bremen. não sei onde foi parar o gato. e eis três reis magos, reis, sim, com vestes teatrais e presentes nas mãos. e três carneiros e um fauno pastor. figurinhas de barro. e agora, juntou-se a todos, este morceguinho negro. a vida verdadeira prestando homenagem à vida figurada.
calma, morceguinho, não se inquiete. sei bem que, aqui, só você é sagrado.
não resisto todavia ao desejo de tocá-lo. e repito o gesto de meu pai, deslizo levemente o dedo sobre seu dorso de maciíssima seda veludo. ele se contrai de leve, sempre, e abre a boquinha a cada toque.
há ainda um resto de noite para ser dormido. de olhos fechados, quase mais lá do que cá, me pergunto quando ela surgirá novamente no meu sonho, aquela Morte tão linda, panos delicados sobre um vazio que é o volume de um ser humano e aquela coroa que, quando chega, chega para todo o sempre. acho que já devo estar dormindo.
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