a espécie humana 30, 31, 32, 33 e 34

A Espécie Humana – capítulos 30, 31, 32, 33 e 34

30.   

vovô, qual é a diferença entre as torres gêmeas e Hiroxima?
são duas as diferenças.  a primeira não é importante; é a quantidade de mortos…  faz diferença?  morto é morto e crime é crime.   
a segunda é que os responsáveis pelos mortos das torres gêmeas são criminosos psicopatas e fanáticos.  os responsáveis pelos mortos de Hiroxima são os eleitores do presidente que ordenou a hecatombe, porque democracia não é ditadura e ditadura não é democracia.   
não entendi nada, vovô.   
melhor assim.  estou apenas pensando em voz alta…  se a maioria do povo americano é favorável à invasão do Iraque, então, quando um míssil cai sobre um hospital ou um ônibus, o povo americano é o responsável.  se a maioria do povo americano não é favorável, e mesmo assim, o presidente, com a conivência do Congresso, ordena a invasão, então os Estados Unidos são uma ditadura…   
vovô!
desculpe.  você sabia que velho pensa falando?  vamos por aqui…   


31.   

levantei-me com o sol alto.  como foi que consegui dormir tanto?  os colchões onde dormem meu pai e meu filho estão com os lençóis e os cobertores dobrados.  desço e encontro a mesa arrumada para meu café.  vejo vazias as bacias dos cães, então já comeram.  muito bem!  hoje é um dia para atividades triviais, uma casa por limpar, roupa por lavar, depois a comida, mãos à obra!
quando estou distraído, molhando o gramado, ouço o grito do menino:
pai!  pai!  veja!
ele chega sem o velho, vem aflito e alegre, excitado e sorridente:
ela estava perdida no meio do mato e ficou com medo da gente!  depois que fui dando pedacinhos de pão, ela foi-se chegando e agora fica no meu colo!
em seu colo uma minúscula cachorrinha, preta, quase sem pelo, magérrima, enormes olhos que não sabiam se se mostravam felizes ou apavorados.  os olhos, os olhos enormes!…  campo de concentração?  aldeia africana?
tive que ralhar com os cães que nos rodeavam, eles também cheios de excitação, fungando e procurando.  Aklia!  Luluva!
põe ela no chão.  como é filhotinha, os cachorros não vão atacá-la.  
estou com medo!
os enormes dogues colocaram-se em círculo em torno da pequenina criatura que se urinou por inteiro.   
estou com medo!, pai.   
é melhor pegá-la de novo.  mas veja, eles estão abanando os rabos.  Caim!
mas ela, não.   
vamos entrar.  parece que tem frio, enrole-a nesse pano.  sai, Luluva!  saiam!  Caim!  sente-se aqui na almofada e deixe-a se aquecer no seu colo.  vou colocar todos lá fora por um tempo.  Ishtar!  Lilith!  Aklia!
quando ia fechar a porta, meu pai chegou.   
a pobre criaturinha está mais morta do que viva.   
vamos dar mais comida pra ela?, pai!  falou o menino.  é melhor não.  falou o velho.  a barriguinha até já estufou.  quem sabe um pouco de carne moída mais tarde.   
tendo saído lá fora, meu pai me seguiu e falou:
perto do lugar onde a encontramos havia três cadaverezinhos.  não permiti que o menino os visse, quando eu os percebi, tomei um outro caminho.   
entramos.   
pai, ela pode dormir lá em cima?
não.  vou arrumar uma caixa e colocá-la debaixo do fogão, que é bem alto.   
e a cachorrada?
vão cheirar um pouco, depois dormem.   
e foi assim que aconteceu.   
de vez em quando ele puxava a caixa para olhá-la.  os cães se chegavam e a pequenina, cheia de medo, encolhia o rabinho.   
eu vou virar a caixa de lado e colocar tudo sobre um jornal.  assim ela sai pra fazer xixi.  vamos tomar um banho pra jantar?
meu pai falou: não vou jantar.  vou descer até a ponte e passear durante um tempo.   
quando saímos do banheiro a cachorrinha se aninhava entre as pernas de Luluva.  se algum outro se aproximava, Luluva rosnava.   
pronto, agora está tudo resolvido.  ela vai dormir quentinha.   
depois da janta, subimos.  
deitados nos nossos colchões, o menino repetia a aventura do dia.  explicava cada detalhe do encontro com a cachorrinha.  ouvimos que o pai chegou.  logo ele se deitava também.   
pai, falou o menino, você já me explicou mas eu quero saber de novo.   quem foi Luluva?
Luluva foi a irmã gêmea de Caim.   
e Aklia?
Aklia foi a irmã gêmea de Abel.   
e Ishtar?
Ishtar foi a deusa da fecundidade, fazia tudo nascer, plantas, animais e pessoas.   
e Lilith?
hm, Lilith…  depois que Deus fez Adão, surgiu uma linda mulher, Lilith, e ela dormiu com o primeiro homem.  quando Deus chegou, ela virou um morcego e fugiu.  por isso Deus fez Eva.   
então, essas são as cachorras.  e Caim?  quem foi Caim?
antes que eu falasse, meu pai interrompeu:
Caim foi o primeiro crime de Deus.   
silêncio.   
meu pai, de novo: hoje dormimos sem música?
acho que sim, falei.  há um lindo silêncio em torno de nós.  e, para o menino: amanhã podemos escolher um nome pra tua cachorrinha.   
já escolhi.   
e pronunciou o último som da nossa noite:
Kamala.   

32.   

há um apavorante silêncio em torno de mim.  sei bem que há sons me envolvendo mas não sou capaz de decifrá-los.  porque tenho a alma acorrentada a palavras que me queimam como ferro em brasa.  ora elas acariciam com o ensinamento do sábio, ora elas entristecem com a tortura daquilo que significa apenas viver.  ora elas outra coisa não fazem senão sacudir as minhas emoções, não sei quais…  mas sempre guardam para o final de cada poema a chicotada de algum aprendizado.   
por que eis que estou lendo Marjorie Boulton.   

33.   

Kamala estragou alguns canteiros.  meu pai nunca se impacientou.   
os grandes fazem o mesmo.  irracionais são o que são.  vamos ensinando, talvez eu cerque este trecho do jardim pra você.   
o menino ganhou uma sombra nova.  aonde ia ele, lá estava a criaturinha.  os dogues começavam a se irritar com aquela déspota tão miúda e tão exigente.  todavia, ela tremia por um nada.   
estávamos no quinto dia após sua chegada.  parou um carro à entrada e se chegaram um homem e um rapazinho.   
é o seu ex-aluno, vovô.   
eu abro o portão.   
rabos que se balançam, cumprimentos, apresentações.  depois de descerem os dois com o menino, para conhecer a cascata, entramos todos.  o visitante foi ao assunto.   
a associação de pais e mestres também tem um jornalzinho bimestral.  como todos gostaram da sua entrevista sobre a arte moderna…   
gostaram da maneira como falei, provavelmente, não do que falei…   
bem, pediram-me pra perguntar a você se poderia assinar um novo artigo.  é que eu falei de suas aulas e de como você metia o pau na ditadura.   
ora, pois.  vocês tão riquinhos e alienados e eu falando mal da ditadura.  e, no entanto, houve muito sofrimento.  imaginem, você em casa e chega uma amiga, grávida, apavorada porque prenderam seu marido, também amigo, trabalhador e estudante!  e nessa noite nasce a criança!  e nessa manhã, você dá uma aula.  e o pai, estudante e trabalhador, só vem a conhecer o filho cinco dias depois, mas sabem como?  esvaziam uma ala da maternidade e fardas e armas isolam um quarto e um deles entra e fala pra mãe, qualquer palavra que possa parecer informação codificada e prendemos todo mundo porque a criança já nasceu.  nesse clima, e diante de um vigilante armado, o estudante-trabalhador vem a conhecer seu primeiro filho.  e você quer visitar a amiga mas alguém diz não vá porque seu cabelo está muito comprido, é perigoso.  e você vai pra escola e dá uma aula sobre a quinta sinfonia de Beethoven.  e desabafa!
e as torturas?  e as mortes?  não vão querer que eu fale disto!, não?
não.  queriam fazer um número sobre capitalismo e socialismo.   
uau!  vovô não vai poder falar em bunda!  né?, vovô!
poderia falar nos caras-de-bunda, nos bundões e nos bundas-moles.  rindo.  mas presumo que a coisa seja mais séria.   .   .   
séria, sim.  mas gostaram da sua espontaneidade.   
espontaneidade.  isto me lembra um ótimo período da minha vida, há anos que são mais plenos do que outros.  mas vamos ao assunto.  posso escrever do jeito que quiser?  quantas linhas?  quando você vem pegar?
você escolhe.  escolhe tudo!
venha amanhã.   
amanhã?  amanhã!?
ora, rapaz, na minha idade, ou você já concluiu alguma coisa sobre esse asunto ou nunca mais vai chegar a entender.   
e eis que assim foi o diálogo.  fiz um café e depois conversamos todos, sobre o gramado, do lado de trás da casa.  os cães deitados ao redor, Kamala no colo de meu filho.  logo, logo, eles se foram.   
após o banho e nossa costumeira sopa, falei ao menino.   
ponha Kamala na caixinha.  vamos passear até a igrejinha.  vamos?
vamos.   
meu pai me sorriu com os olhos.  ele sabia que eu sabia que queria ficar só, para escrever seu artigo, seu texto, sua coisa.   
de mãos dadas, eu e o menino principiamos a subir a rua já escura.  sentia um tremor emocionado em seus dedinhos.  fiquei pensando no que poderia estar a preocupá-lo.   
você está tranqüilo?
estou muito contente.   
contente?  com quê?
com tudo, pai.   
silêncio.   
alguns cães ladravam enquanto passávamos.  vimos cavalos e ovelhas, quase que apenas suas sombras imóveis no meio das grandes sombras das grandes árvores.  dentro das poucas casas, algumas fracas luzes.  alguma vez um vulto passava pela janela.   
nesta casa moram os dois irmãos que vão sempre na cascata comigo, pai.   
já foi na casa deles?
a mãe deles falou que você é estranho mas é um bom vizinho.   
riso.   
continuamos caminhando.  chegamos à pequena capelinha à beira da estrada.   
pai, por que fizeram isto aqui?
pela data, é muito velha, né?
o vô disse que deve ter morrido alguém aqui.   
por causa desta cruz?
é!
você tem medo?
eu, não!  mas eu acho muito feio.   
risos.   
a mão não mais tremia.   
aqui está mais escuro ainda, pai.   
dá pra ver bem as estrelas.  venha no meu colo.  nossa!  está ficando muito pesado.  qualquer dia não te aguento mais.   
você conhece alguma estrela?
não!  nunca consegui saber qual é qual.  a única coisa que sei é que, se o brilho tremer, é estrela, se o brilho for fixo, é planeta.   
então vamos procurar um planeta.  como o céu é grande!  né?, pai.  é por isso que as pessoas falam tanto de Deus?
quem sabe?  mas se você pensar em você por dentro, com todos os seus pensamentos, vai achar também que tudo é muito grande.   
eu acho que a gente é confuso.  a gente pensa mas não sabe por que pensa e também não pode parar de pensar.  por causa disto as pessoas também falam de Deus?
acho que sim.   
ele deitou a cabeça no meu ombro.   
está com sono?
não.  mas você disse que estou ficando pesado.  quero aproveitar.   
sorriso.   
e continuamos a caminhar em direção à igreja mais além.  dali principiamos a volta.  nada mais falamos.  ao chegar na entrada da chácara, não entramos mas continuamos descendo a estrada.  seguimos até a ponte.  já o menino descera do meu colo.  fomos até o campo de futebol.  quero-queros cantavam e voavam baixo; eles sempre reclamam quando alguém se aproxima muito.   
durante um tempo olhamos a roda dágua.  pena que não funciona mais…   
meu pai nos esperava com chá.   
ah, ela está dormindo com a Luluva, pai.  escreveu tudo?, vovô.   
escrevi.  vamos tomar um chazinho.  este mais frio é pra você.   
depois, subimos.  antes de apagar o lampião, falou meu pai.   
como você está de leitura?, rapaz.   
eu ainda gaguejo em palavras difíceis, vô.   
nada disto, pai, ele já lê praticamente tudo.   
então leia o que escrevi.   
o seu negócio pro jornalzinho?
por que não?
gostei da idéia; eu falei.  eu até podia colocar uma música.   
mas o quê que é isto?  quanto teatro!  que tipo de música seria adequada a algumas bobagens sobre capitalismo e socialismo?
hm.  não é fácil.  penso num clima de delicadeza, pai.   
delicadeza, que horror é este?
eu te conheço, pai.  vou colocar a Berceuse, de Chopin.   
meu pai ficou sério e me olhou com os olhos muito brilhantes.  seu rosto mostrou uma felicidade que beirava à comoção absoluta.   
você sabe o que faz.  coisa séria é coisa séria.   
depois que o piano começou, meu filho principiou sua leitura, ainda infantil, compassada, lenta, escandida, as palavras todas com seu sentido apenas absoluto, desligadas umas das outras e de seu contexto geral.   

34.   

Capitalismo e Socialismo.   
Primeiro movimento: nem alegre nem triste.   

Os idiotas de cá e os de lá já repetiram à exaustão seus argumentos que atacam e defendem e as palavras são as mesmas mas não as intenções. 

Segundo movimento: quase um minueto.   

Quando ruiu o império soviético, levantaram-se os coros de alegria enfurecida: ruiu o socialismo!  socialismo já era!  E o locutor da TV repete quase babando de prazer embriagado, ruiu, o socialismo já era.  Senhores!, a união soviética plasmou-se como um projeto socialista mas virou uma ditadura!  Quando caíram Salazar e Franco e os coronéis gregos (de direita!, pois sim?) e as ditaduras latino-americanas (anticomunistas!, pois não?), alguém veio bradar em praça pública que capitalismo já era, ruiu o capitalismo?

Terceiro movimento: andante, talvez parando.   

Para que uma nação seja capitalista, a sério!, a profundo!, é preciso que seus habitantes sejam mesquinhos, egoístas, individualistas, insensíveis, vaidosos, até meio burros, uma matilha de bichos ferozes a defender, não princípios éticos, mas o luxo e o excesso e a gordura e a preguiça e não estou querendo mencionar invasões e assassinatos e holocaustos porque já as sociedades agrárias abusavam destes privilégios.   
Para que uma nação seja socialista, a sério!, a profundo!, é preciso que seus habitantes sejam apenas solidários, respeitosos e altruístas; até meio burros, se for o caso, desde que se preocupem com o bem comum.   

Quarto movimento: patético.   

O capitalismo compreende um rebanho muito grande, poucos donos (cada vez mais escondidos) e algumas obedientes e bem armadas patrulhas de cachorros sofistas.  Armadas e armadas e armadas.   
E você, socialismo!, temo que não seríamos capazes de te sustentar por muito tempo, nós, os humanos, que talvez não passemos de bichos mesquinhos, egoístas, individualistas, insensíveis, vaidosos, irracionais.  Como teria sido o Chile de Allende?, se o povo americano (é uma democracia!, pois não?  portanto, o povo americano!)…   

Finale: ou somos capazes de nos superar ou o mundo vai explodir num pesadelo.  
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