A Espécie Humana – capítulos 40, 41, 42, 43 e 44
40.
na manhã seguinte, durante o café:
vovô, o diabo existe?
existe. diabo é o nome da burrice humana.
e ainda se queima pessoas por causa da religião?
claro! o Poder sempre queima vivas as pessoas. há muitas maneiras de fazer isto. deixá-las sem justiça. proibi-las de mostrar o rosto. exibi-las peladas na TV. mas a pior delas é mantê-las na burrice.
meu pai saiu logo após o café. e, no portão, ele me falou:
pior do que as múltiplas facetas das revelações, pior do que isso é essa mania de todos eles se dizerem o povo escolhido. isto é de uma infantilidade sem limites. toda criança pensa isto, eu sou o preferido de meus pais, e de certa forma está certa. as crias dos animais superiores poderiam dizer a mesma coisa, é uma questão de proteção à espécie. mas daí a fazer com que um povo inteiro seja o filhinho de seu papai e, pra isso, é claro!, o seu papaizão tem que ser o único verdadeiro, ah!, cresçam e apareçam, monoteístas presumidos, vaidosos e imaturos. até mais, filho, não gostaria de falar mais sobre estas coisas.
crianças chegaram a seguir. espalharam-se. peguei meus papéis para algumas anotações.
parou um carro diante do portão. já sei quem é. abri o portão, entraram o ex-aluno de meu pai e seu filho adolescente.
o seu filho não está?, perguntou o rapazinho.
está na cascata com uns amigos.
ele tem aula de tarde?
está mudando de escola e agora só em fevereiro. esse semestre ele está comigo.
e ele: pai, vou descer.
não demore muito.
e enquanto esquento a água pro café:
estou sem graça com teu pai, nem sei como apresentar o fato a ele.
ele não está. mas já sabia o que ia acontecer.
como assim?
ele me disse que vocês provavelmente não publicariam o texto dele.
como ele sabia? foi estranho, todo mundo que leu achou interessante mas sempre falava: não era bem isto que a gente queria. o professor não vai ficar chateado?
acho que não. conversamos sobre isto. estava esperando. ele disse pra mim: imprensa é imprensa.
o que quis dizer?
ele fez o seguinte comentário: todos têm o seu limite. os pais e professores do jornalzinho estão comprometidos com todos os pais e professores. o mesmo se dá com a imprensa geral. certos compromissos são mais fortes que a liberdade. há ideologias. vamos imaginar que um candidato à presidência de um país seja usuário de cocaína. é claro que os jornais sabem disto.
quer que eu te conte uma história? tenho um amigo que trabalha num dos maiores jornais do país, se não o maior. e ele me disse que esse fato aconteceu, o do candidato tal que fazia uso da cocaína. os diretores tinham em mãos um dossiê. por que eles não publicaram o dossiê às vésperas da eleição? há compromissos, resta saber com quem. meu pai diz que os jornais e os outros meios de comunicação não passam de meros espaços para caríssimas propagandas.
fico mais sem graça ainda. acho que vou lá embaixo.
tome antes um café.
41.
pai, leia uma história antes de nós dormirmos. uma história de vida.
uma história? vou então ler uma que eu traduzi do Esperanto.
como se chama?
O pássaro todo maravilha.
Era uma vez uma aldeia. Era cercada por uma enorme floresta. No verão, a floresta era toda verde. Mas na primavera as árvores ficavam com tons diferentes. Cores e mais cores. E, em volta da floresta, montanhas e montanhas. Os animais vagavam na escuridão da mata. E pássaros, milhares de pássaros de todos os tamanhos e cores, cruzavam o céu e cantavam nos galhos. Havia um rio e uma ponte. E casinhas espalhadas. E os seus cães e suas galinhas e porcos e cabritos. E gado.
Um caminho saía da aldeia, cortava seus campos, atravessava a floresta e se perdia no que era longe. Por esse caminho, muito de vez em quando, passava uma carroça, ora indo, ora vindo. Quando vinha, trazia sal, tecidos e ferramentas de ferro. Quando ia, levava frutas, verduras, animais.
Há muitos anos atrás, começara a correr um boato na aldeia. De que na floresta alguém vira o pássaro mais belo do mundo. A notícia era esquecida e, de repente, alguém falava novamente que o tinha visto.
E de que cor era?, perguntavam.
Tinha todas as cores, maravilhoso, difícil de explicar, era todo maravilha!
E novamente se passava um longo tempo e ninguém falava do pássaro até que, inesperadamente, alguém voltava a afirmar tê-lo visto.
Ora, entre a aldeia e a floresta, já quase onde esta começava, havia uma colina. Ali vivia um velho. E o povo dizia que ele morava num palácio, mas a mulher que ia lá de vez em quando, para fazer a limpeza, dizia: é apenas uma casa muito grande escondida por velhas árvores. Mas é tudo muito bonito.
Esse velho raramente descia. Diziam que ele era muito rico, porque todas as vezes que alguém precisava de ajuda, a mulher da limpeza falava com ele e ele mandava a ajuda.
E então, um dia, ele desceu e começou a perguntar às pessoas pelo pássaro todo maravilha. E um rapaz foi chamado, porque ele tinha sido o último que dissera ter visto a ave. E explicou ao velho o local onde a tinha encontrado. E o velho pediu que ele organizasse uma excursão por sua conta, que queria ele também conhecer o pássaro. E deu dinheiro ao jovem.
Mas voltaram sem nada encontrar. E aconteceu que, toda vez que alguém dizia que tinha visto o pássaro todo maravilha, descia o velho – a mulher o avisava, e organizava grupos de procura. Mas nunca o pássaro era encontrado.
E, aos poucos, aqueles encontros com o pássaro foram rareando. Algumas pessoas chegavam a dizer que tudo era invenção, ninguém tinha visto nada, criaram uma lenda. Mas os que tinham visto o pássaro se defendiam, não sou mentiroso, eu vi, eu juro que vi, que cor tinha ele?, que tamanho?, não me lembro direito, já faz tanto tempo!
E, mergulhada na sua pequena rotina, a aldeia acabou esquecendo que havia nas florestas em volta, talvez, um pássaro que era o pássaro todo maravilha.
Um dia, porém, passou a correr por todas as ruas um moleque gritando:
Acharam o pássaro todo maravilha! Acharam o pássaro! Acharam!
E veio vindo um homem e atrás dele um grupo de curiosos que aumentava a cada passo. Ele segurava uma peneira coberta por um pano branco.
O pássaro todo maravilha! Então é verdade! Quem o encontrou? Está amarrado?
E as pessoas repetiam as mesmas frases. Alguém gritou: chamem o velho! Chamem o velho!
E na pequena praça reuniu-se todo o povo, formando um grande círculo. Ficou no centro o homem. Alguém trouxe um banco e nele foi colocada a peneira. As pessoas queriam se aproximar mas tinham um certo medo.
Chamem o velho! Já chamaram! A mulher mandou um garoto! Com certeza ele vai dar uma gratificação! Sim, ele vai dar uma gratificação! Vejam, vejam!
O círculo se abriu num lado e entrou o velho e parou. Há tanto tempo ele não era visto! Tinha envelhecido ainda mais, cabelos e barbas muito compridos e ralos, como os velhos sábios das antigas lendas. Todo de branco com o seu enorme cajado. Mas a barra de sua imensa blusa trazia lindos bordados de flores multicores.
O velho avançou e parou. Silêncio total.
Você o tem aí?
Sim.
Tire o pano.
Tire o senhor.
O velho tirou o pano branco.
Mas está morto!
Mas eu o matei com uma bola de borracha pra não machucar as penas!
Sim!… é bonito!… é bonito!
As pessoas fecharam um pouco o círculo e exclamações escapavam de suas bocas: é bonito! É muito bonito! Até que fez-se um silêncio terrível. O velho tomou o pássaro nas mãos.
É um pássaro todo maravilha! É mais maravilhoso do que aquele que eu apenas tinha conseguido imaginar.
E ficou a olhá-lo um tempo.
Houve murmúrios surdos no grande círculo. O velho sabia o que eles cochichavam entre si. Que ele daria ao homem uma gratificação. Então ele estendeu o pássaro ao homem.
Pegue-o.
O senhor não ficará com ele?
Só por um instante.
O homem tomou o pássaro nas mãos.
E houve um grande silêncio e uma tremenda expectativa.
Devo dar-lhe uma gratificação pelo prazer de ter contemplado esta maravilha. Então… Eu lhe darei tudo que tenho. Não subirei à minha casa, partirei daqui mesmo, tudo será seu…
Meu?
Sim! Tudo que tenho será seu… desde que você o faça viver novamente.
42,
no café, o menino:
pedi uma história de vida e você contou uma história de morte.
nada disso, mocinho. minha história é de vida.
silêncio. e ele, novamente:
pai, eu e o vô vamos lá em cima que eu vou telefonar pra mãe.
vão com a charrete?
vamos na égua. quer alguma coisa?
vou fazer uma lista, pai.
após o almoço, o menino desce para a cascata com os pequenos amigos. meu pai pega um livro. eu remexo papéis. as crianças sobem antes da hora habitual. o menino entra e os outros se dispersam. ele está cabisbaixo.
hoje desistiram da água mais cedo?
pai, sumiu meu reloginho russo.
como?, sumiu!
eu tirei e botei dentro da camiseta antes de entrar na água. quando voltei, ele tinha sumido.
todo mundo estava junto?
teve uma hora em que alguns de nós subimos pela cascata até a outra chácara.
foram todos?
não. e eu acho que sei quem pegou.
então fique no acho. será que vale a pena tentar saber?
pai, por que as pessoas fazem isto?
ah!, é tão difícil explicar! se é quem eu estou pensando, veja bem a diferença entre a vida que você leva e a vida que ele leva. eles nem têm onde morar direito!
mas se eu for na casa dum menino rico eu não vou tirar nada!
é verdade. vamos imaginar duas crianças. uma tem tudo de que precisa, mora com conforto e conversa sempre com os pais. a outra não tem nada, só roupa velha que alguém dá, os pais não ensinam nada. quando essa segunda criança vê um objeto desejado, ela não pensa, acha que tem o direito de pegá-lo.
então é porque não aprendeu… o quê que ela não aprendeu?
não aprendeu a respeitar o que é do outro. acha que tem o mesmo direito.
silêncio. meu pai deixa o livro e pega um jornal. eu pergunto:
comprou jornal?, pai.
não! este aqui estava na casinha da lenha.
de quando é!
ele procura. já tem dois anos.
dois anos?, pai.
você sabe que isto pra mim não faz diferença.
e o menino:
mas, pai. se a criança acha que tem o mesmo direito, ela vai crescer e continuar roubando. em vez de trabalhar, ela vai roubar.
infelizmente. a necessidade não justifica, mas ela não conseguiu aprender isto.
mas o vovô falou que tem político que rouba. por que rouba?, se não precisa!
percebi que meu pai levantou os olhos e parou de ler o jornal. estava atento todo o tempo, mas nada falou. acho que ele sabia que esta conversa me pertencia, eu saberia dar conta dela.
alguns políticos roubam, né? o que dizer a isto? não foram daquelas crianças a quem tudo faltou. ou teriam sido? você se lembra das crianças criadas por animais? elas não conseguem aprender a se comportar como pessoas normais. conforme o tempo em que ficaram com os animais, não aprendem nem a falar nem a ficar de pé. e, quando o vovô falou destas coisas e eu falei: o ser humano é apenas aquilo que aprende, você perguntou: o que é que a gente tem que aprender? e eu falei que temos que aprender que a outra pessoa é tão importante quanto nós.
isto é difícil de explicar? é! se você fosse sozinho no mundo, tudo que existisse seria seu! mas se aparecesse outra criança, ela ia pensar a mesma coisa: tudo o que existe é meu. então, quando os dois se encontrassem, estaria criado um problema. está entendendo?
estou. um diz tudo é meu e o outro diz tudo é meu.
certo! e o que cada um tem que aprender? isto: eu sou eu mas ele também é alguém. ah!, poucas pessoas já aprenderam essa lição. quem aprende deixa de ser criança, vira adulto.
então os políticos que roubam são como crianças?
num certo sentido, sim.
meu pai abaixou o jornal e sorriu.
são como crianças que têm tudo e querem mais?
são.
silêncio.
quase como se tivessem sido criados por bichos?
nem sempre. eles é que se transformam em bichos.
que safados! né?, vovô!
grandes filhos-da-puta!
pai!
o menino riu. o que é que tem?, pai. são safados e grandes filhos-da-puta!
43.
à noite, deitados, pergunto a meu pai:
que música pra hoje?, pai. mas o menino é mais rápido:
pai, ponha uma música… que não seja clássica.
posso escolher?
pode.
vou colocar as canções infantis da França, que você chama de os francesinhos. depois eu coloco outro disco de adulto.
En passant par la Lorraine
avec mes sabots.
enquanto ouvimos as canções, fala o menino:
pai, a mãe disse que toda a família vai passar o natal com a tia Marina.
ótimo. eu te levo uns dois dias antes e volto. você sabe que pra mim não existe natal. você viria sozinho de avião?
claro! no ano novo quero estar aqui.
e meu pai:
gostaria de ficar sozinho do dia vinte e dois ou vinte e três até a véspera do ano novo.
está me expulsando?, pai.
sim. você podia ficar no apartamentinho.
tá. o apartamentinho está vazio. deve estar imundo. só vou alugá-lo de novo depois das férias. o quê vai ficar fazendo aqui sozinho?
nada de especial.
e, a seguir, no escuro, soa a voz de Violeta Parra. não temos coragem de conversar. sinto que não há diferença entre as canções de Violeta e os concertos de Brandemburgo, que adoro. estarei exagerando? para onde irão todas estas músicas depois que eu morrer?
quando se muere la carne
el alma busca su sitio.
o maior desespero e mais lírico e mais pungente…
prisionera en una tumba…
quando se muere la carne
el alma se queda oscura.
44.
mexemo-nos na cama. o menino já deve ter dormido. num momento, meu pai rompe com o silêncio.
um dia qualquer, você precisa continuar a lição de hoje. dizer a teu filho que há cidadãos piores do que os políticos que roubam.
como assim?
pior do que os políticos corrompidos são os políticos que assinam leis nocivas. em alguns casos não se pode dizer que sejam desonestos, no sentido corriqueiro da palavra. em outros há suspeitas. tomemos este presidente que desfilou como de esquerda durante toda a ditadura e depois manietou o país numa camisa-de-força. disse que acabou com a inflação. vendilhão fantoche! se tivesse acabado, ela não voltaria. segurou a inflação a um preço corrosivo pra continuar usando a faixa de miss Brasil.
e, depois de curto silêncio:
os milicos amordaçaram o país durante anos…
por que você diz os milicos?
há dois tipos de fardados. o militar é um funcionário público, pago com os impostos dos contribuintes, pra exercer uma atividade pública. esta atividade inclui, sobretudo, defender a Constituição. se ele rasga a lei e institui um regime autoritário, ele passa pro segundo tipo: milico de bosta.
continuando… os milicos amordaçaram o país. caída a mordaça, vem um civil e amarra pés e mãos da nação. eu, como professor, gostaria de ver seu histórico escolar. não o currículo. currículo nunca diz nada. gostaria de saber de suas notas e suas freqüências às aulas…
deve estar na hora de dormir, filho.
até amanhã!, pai.
então, meio dormindo, eu tento me organizar: dia vinte e dois vamos, eu e o menino pra casa da Marina. volto a vinte e três ou vinte e quatro. fico no apartamentinho que está sem inquilino há um mês. dia trinta ou trinta e um, vou ao aeroporto e viemos pra cá direto. no apartamentinho não tem nada. preciso de um colchão e cobertores. não sei se tem chuveiro. vou sentir saudade dos cachorros… levarei apenas meus papéis… talvez o violão… nada de música?…
mexo-me na cama e sinto-me tonto. a embriaguez do sono. depois eu me organizo melhor… o sono… não dá mais para voltar… o sono é a música do silêncio. abraça a gente e sufoca com o prazer do esquecimento. o sono… o so…
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