A Espécie Humana – capítulos 5, 6, 7, 8 e 9
5.
meu pai já tinha preparado o café. o menino comeu rápido e já saiu. ele nunca fica à mesa até o fim da refeição porque lá fora sempre há algo que o atrai. continuamos sentados, eu e meu pai.
precisamos falar de algumas coisas sobre a rotina da casa, pai.
pois muito bem.
eu tenho que sair às tardes pra trabalhar. tenho um empregado durante a semana. faz os serviços lá de fora, geralmente é gramado e lenha.
ele pode vir uma vez por semana.
sim. e se precisarmos sair todos, eu combino com ele.
não vamos sair todos.
então, sim. e mais tarde tirarei duas férias atrasadas.
meu pai foi até seu saco de bagagem e tirou um jornal.
quero te ler uma notícia.
deixe primeiro que eu leve comida aos cães.
já fiz isso.
voltei-me e sentei-me novamente. o menino passou pela janela, já montado, e acenou.
não me pergunte de onde eu tirei esse jornal.
e o velho iniciou a leitura:
6.
Lomdono é finalmente destruída. (*)
Os invasores lograram êxito total na sua última tentativa de atacar a capital do império dos últimos reis do planeta. Pacotes de poderosíssimos alucinógenos foram despejados simultaneamente em todos os reservatórios de água da cidade. Uma semana e desintegrou-se a ordem. As pessoas espalharam-se pelas ruas, envoltas em panos, nuas, de quatro, arrastando-se atrás de miragens, perseguindo as pontas dos dedos, devorando pedaços dos próprios corpos. Pelas ruas, fezes e sangue e urina. Uivos e cantos de descontrole e choros e gargalhadas que nada significam. Portadores de tochas aumentam o horror quando, à noite, sabe-se guiados por que cruel instinto, passeiam pelas praças com seus mastros cheios de panos acesos. As mães trazem, nos colos, filhos trespassados por garfos e facas, os olhinhos inteiramente abertos para a loucura. Nas bocas dos que se encontram, risos idiotas e grunhidos de terror. Não se temem, não se amam, não se medem, não se comunicam: apenas estão um diante do outro. Os cães fogem no meio do pavor, perseguidos por moscas que não existem. As gentes, no furor, descobrem que carnes machucadas ficam vermelhas de sangue. As criaturas envolvem a criatura e, entre trejeitos e esgares e roncos, avançam com espetos e ferros e facas e aquele que está no centro, os olhos injetados e virados pelo avesso, sorri à espera da festa de abraços e espetadas. Aos poucos o cortam em pedaços e ele agradece e gargalha e diz maninhos, maninhos, irmãos em Deus, maninhos, e chora de felicidade e dor até silenciar como um bebê que definha. E saem os outros para os seus cantos, lavando-se com o vermelho tão excitante e quente e cheiroso e de estranhíssimo e remoto paladar. Dois outros, frente a frente, as palmas das mãos coladas, se olham, rígidos como esculturas de gelo, imóveis, estáticos, permanecendo assim até depois de mortos. Um pequenino se arrasta por debaixo de carros e lambe as gotas de óleo negro que escorrem pelo chão. E quando chegam ao rio, como é terrivelmente belo este rio avermelhado e cheio de corpos que bóiam coloridos e inchados! Brincam com as águas, entram e se deixam afogar do meio do turbilhão e do delírio. Ou então fazem afogar os pequeninos, segurando-os dentro do rio e devolvendo-os ao ar, para sorrir e cantar, enquanto olham os rostinhos arroxeados e trêmulos dos que estão morrendo. Não há morte, não há dor, não há piedade no coração dos homens. Há presente e loucura. Há o que não tem antes e depois. O momento do agora é o senhor e Deus absoluto de todas as gentes. Há uma discutida ânsia de prazer. Não há causas para atos, apenas atos desencadeados entre si. Não há razões para a existência, apenas a existência em si. E porque desligada de todos os compromissos que cada ato cria para ter sua própria justificação e ressonância, a vida ganha o sentido único da loucura irreversível. Olhares esbugalhados pairam cheios de luz diante dos brilhos e das cores. Orelhas atentas se escancaram para todas as espécies de sons desordenados e irrequietos que povoam os espaços. Narinas ardentes arfam todo o tempo para não deixar esgueirarem-se os cheiros todos que escapolem das almas das coisas, coisas agora sem outra finalidade que a de ser a si mesmas. As mãos tocam e gozam tatos nunca antes tateados, queimando-se nos quentes, congelando-se nos frios, espetando-se nas pontas. Rolam e pulam e se atiram de encontro ao que lhes surge à frente, para sentir as possibilidades do toque. E suas mãos levam tudo à boca, para que suas línguas experimentem. Os gostos todos são buscados e não há critério para o que seja agradável e o que seja desagradável. Não há dor nem prazer mas sensação. Os sentidos se desejam saturados, desligados de vínculos com distantes e ininteligíveis noções de ética e prática.
Todos os sobreviventes são agora como grandes bebês idiotas que buscam a ânsia da experiência, sem aprendizado contudo. Onde o político, onde o usurpador? Onde o serviçal, onde o delinqüente?
Nada. Destruídas as categorias todas. Soltos e perdidos nos corredores e nas ruas e nos prédios e nos túneis do metropolitano, o bando inútil, pacífico e desnecessário daqueles que só sentem e nada concluem.
O formigueiro do zero. A ausência da relação.
O grupo de alunos que dança ao redor da professora morta com espetadas de todos os lápis e não dá atenção ao mais pequenino que chora com seu choro de desespero lúcido, já que bebeu apenas a laranjada de sua merenda, o grupo não ouvirá jamais o significado da palavra responsabilidade porque há de dançar alucinado até a exaustão e a morte.
Os trabalhadores da imensa construção que sobem em nervosíssima e rígida fila, seguros uns aos outros por mãos na cintura do que está à frente, estes trabalhadores não ousarão dia nenhum batalhar pelo sentido da palavra ideal, pois que a fila termina à beira do abismo de trinta andares e um à sua vez salta para o vôo precípite até o monte de argamassa vermelha lá embaixo.
O desvairado jovem, escondido atrás dos carros arrebentados, com duas enormes agulhas nas mãos, que se arremessa contra velhos e velhas passantes, para assistir ao desengonçado balé de sua cegueira, monologando urros e gemidos orgásticos, esse jovem jamais abrirá um livro que discuta as virtudes daquilo que pretende ser humano nem ouvirá na consciência o eco machucador do arrependimento que propõe pedaços de futuro.
Esparramam-se pela cidade esparramada e contaminam com sua total ilogia a desesperada lógica sobrevivente. Aqueles que, por um motivo ou por outro, por terem bebido pouca água, ou mesmo nenhuma, aqueles que se espantavam com o tamanho do desvario devastador, acabam por entregar-se à sedução do caos. A linha que separa a lucidez da insanidade dança diante dos fatos todos, cores e tumultos e sons do apocalipse. O muro que divide o sonho da vigília, antes muralha grossa e protegida por sensações de irrecusável percepção, agora mirabolante ruína sinuosa cheia de brechas e furos e passagens escusas, o muro mistura aquilo que é com aquilo que não é. Que resistência ao irreal poderia durar tanto tempo?, ante o fascínio da destruição avassaladora!
Foi então que Eles se chegaram.
Vindos não se sabe de onde, reunidos não se sabe por qual artifício. Vestidos de branco, não se sabe com que fim, jovens de quinze a vinte anos, imberbes todos, com seus cabelos demasiado curtos, desfilando com estandartes onde se lia as palavras avulsas: Deus, Democracia, Liberdade. Chegaram em trens imensos, de todos os lados e foram se dando as mãos e formando um círculo monstruoso que quase envolvia toda a cidade. Muita ordem e um silêncio de formigas ocupadas.
Subitamente irrompeu seu canto pelos ares. A princípio baixinho, quase imperceptível. Todos os homens são irmãos, uma só é a Terra, a terra-mãe que quer seus filhos irmanados numa só grande pátria. Todos os homens são irmãos, todos os homens são irmãos.
Intensificaram-se lentas as vozes e junto às palavras que cresciam em volume, crescia também o júbilo e a emoção do exército branco. Avançavam e se aproximavam das criaturas de mente desintegrada e tentavam chamá-las á consciência e à ordem. A população os examinava curiosa e demente. Não se submetia, contudo. Impossível qualquer contacto. Não havia entendimento algum, apenas êxtase fulminante frente à fileira imaculada e os estandartes com os desenhos a voar no meio da poeira, Deus, Democracia, Liberdade.
Havia paciência e boa-vontade nos corações idealistas. Tentavam novamente algum ensinamento, quebraram suas fileiras eficientes e se polvilharam à procura da alucinação que permitisse um qualquer tipo de salvamento. O bando branco de voluntários, filhos do primeiro mundo, condicionados a vencer a tentação do prazer irresponsável, treinados a pensar sempre e primeiro no grandioso destino do homem, o exército do futuro da humanidade sucumbiu. Sucumbiu o exército branco.
Primeiro os mais fracos. Adotaram a estratégia de se fazer de loucos para ganhar a confiança dos drogados. A princípio com total consciência sobre a divisão que havia entre eles. Depois perdidos e finalmente fragmentados. Misturaram-se por completo.
Algo os separava dos outros, todavia. Percebiam-se diferentes. Chamas esquivas brotavam de seus olhares. Sentiam-se cúmplices e unidos. Faziam tentativas de comentar sobre o tormento a que assistiam, sobre a incapacidade de sua luta, sobre o terror de não estarem conseguindo escapar do contágio da fúria. Perdidos no interior do inferno, puseram-se a brincar com os indefesos isolados. Experimentavam-nos, testavam-nos, açulavam-nos a fim de descobrir vestígios mínimos de vontade. O jogo os excitou e despertou neles o demoníaco sadismo. Como crianças, que tivessem à sua disposição animais fracos e desarmados e abúlicos, pariram no mundo as ações filhas da crueldade e mães da destruição inapelável.
As igrejas foram recheadas de gente e a seguir trancadas e queimadas. Alucinados foram enfileirados e, no centro da imensa praça, eram degolados. Um grupo de brancos imberbes descobriu o esquartejamento com motos. Amarravam mãos, pés e cabeça em cinco motos dispostas nas pontas de uma estrela desenhada a sangue sobre o chão. E arrancavam.
Seu esplendor, todavia, foi a crucificação dos milhares, no parque. Descoberto que foi, ao acaso, um depósito imenso com brilhantíssimos espetos de aço, para exportação, a visão dos ferros sugeriu a vertigem. As vítimas se oferecem aos risos e guinchos, bocas babantes e olhos sem trajetória. Despidos são e se põem a dançar balançando tiras de vestes rasgadas. Até serem trazidos pelos terríveis enfermeiros, imensos martelos na mão, deitados e pregados no gramado. Gritos lancinantes, não de dor, mas de morte. Avermelha-se o chão imenso, acelera-se o horror. Um dia e uma noite dura todo o espanto.
Lentamente desamarram-se as sobras do real. As cores voejam absurdas e fantásticas, atraindo os olhares cristalizados. Prismas iluminados dançam mutantes sem órbita traçada dentro de alguma possível previsão. Braços e bocas e unhas e sexos flutuam à procura do que já não os pode soldar dentro de qualquer ordem. De todos os pedaços de coisas brotam estranhíssimos sons, primeiro uma musicalidade brilhante e enfeitiçadora, depois um zumbido metálico e penetrante até dissolver-se numa linha contínua e insistente, já não som nem brilho nem cor nem cheiro nem sensação outra se não a sensação de que o tempo presente acabou de parar na eternidade.
Fez-se uma nebulosa total e negra.
(*) Lomdono: cidade inexistente, de cujo nome se tira o anagrama “lo mondo”.
7.
o velho saiu e pode-se vê-lo da janela, cuidando de flores. continua com seu hábito antigo. jamais plantou ou plantaria uma flor; apenas cuida delas, tirando-lhes as pragas, podando-as, ajeitando-lhes as hastes de suporte e, vezes outras, tão só admirando-lhes o colorido. disse um dia meu pai que a ele bastou que apenas uma semente sua tivesse germinado; mais de uma consciência a pesar-lhe nos ombros se tornaria um peso duas vezes além do suportável.
o menino brinca lá embaixo com os amiguinhos, e por seus gritos que cortam o espaço como estridentes cantos de gaviões, devem estar se divertindo na cachoeira.
então percebo que não há para mim outro caminho se não o dessa curta permanência solitária. idéias desorganizadas tecem dentro do meu peito uma coreografia confusa que busca rigor. sento-me com meus papéis e resolvo que vou escrever um livro. um livro que fale dos vapores sufocantes que me rodeiam e das lavas incandescentes que ameaçam irromper de dentro de mim. e, sobretudo, da tênue, desesperada e fugidia relação que parece existir entre o que está ao meu redor e o que trama clandestino no meu miolo.
mas, se há intenção para um livro, não sinto em mim o falo que desvende minha vontade e venha depositar, no ventre do meu perturbado universo particular, o sêmen fecundador. prazos diferentes são os prazos da autofecundação.
sinto que há, nisto tudo que pretendo, um caco de destino e, sendo eu paciente, hei de cumpri-lo. mas nem é ainda meu cio. há perturbações apenas, umas envolvendo meu instinto, vivo desde antes da pré-história do homem, outras dando ferroadas na razão recém-nascida e tão ainda aprendiz.
devo esperar. esperarei. resolvo iniciar a rotina do almoço. e que cantam as canções sugestivas das panelas? cantam que tenho já uma pergunta para tentar responder com meu livro:
como conciliar o que está dentro com o que está fora?
8.
estou subindo um monte. estou escalando um monte de dificílimo acesso mas uma violenta e invencível ânsia me impulsiona para o alto. dependurado sobre o abismo que não tem fim, eu galgo com determinação, sempre para o alto. o que me espera lá em cima é o que atrai. sei que há uma porta que protege um pedaço de meu enigma. só um pedaço, sei bem. mas, para sacar do enigma a sua resposta, é preciso quebrá-lo em pedaços e começar a decifrar os fragmentos. sei também que decifrar todos os pedaços não me dará a resposta última. decifrar dúvidas não será decifrar a dúvida; mas eis aí o máximo que conseguirá minha condição de humano, demasiado humano.
chego então ao alto e agora já não cabe dentro de minha memória todo o sofrimento que foi galgar o precipício. não foi sofrimento, estou noutra esfera e agora eis que já são outras as minhas referências. só uma porta existe à minha frente.
abro-a e vejo, sentado num trono branco, de osso, um pai-demônio. um estranhíssimo minotauro que no corpo é pai mas é demônio na alma. não tenho medo mas uma fascinação demasiado cruel me faz imóvel. suores querem rebentar na minha testa. tento decifrar o olhar dessa figura que me fita com seus olhos que vêm de não consigo saber onde. a custo, crio coragem e falo:
desça desse trono porque não vou te adorar.
não estou aqui pra ser adorado. se desço do trono, você se perde a si mesmo.
o que está fazendo aqui?
eu podia te perguntar a mesma coisa. o que está fazendo aqui? vim pra presenciar aquilo que está pra acontecer.
por que motivos acontece aquilo que está pra acontecer?
não sei. quando digo que não sei, quero dizer que você não sabe. por que me pergunta coisas cujas respostas desconhece?
sempre tenho a esperança de que algo do mais fundo de mim venha à tona, livre da censura e da ignorância da vigília.
ouça isto que vou falar: você me dá mais atenção do que eu mereço.
eu silenciei. ele continuou impassível, com o olhar parado a me atravessar e a se perder atrás do que me pertence. então comecei a sentir ligeira coceira na língua. abri a boca. minha saliva fazia arder minhas bochechas. quis fechar a boca e não consegui. estava toda ferida. mexi o maxilar e senti dores fortes.
olhando à frente, vi que ele não mais estava sentado num trono, mas na escada que leva ao sótão. mas nessa escada é que eu estava!, pensei. olhei mais fixamente e percebi que ele se parecia muito comigo. que estaria acontecendo agora? foi então que descobri que ele era a minha imagem no espelho. eu estava realmente sentado na escada e me via refletido no espelho à frente. abri então a boca e me sacudi todo, assustado. todo o interior da minha boca estava ulcerado. firmei mais a vista e vi que também os lábios apresentavam-se sanguinolentos.
foi então que senti a mesma coceira no ânus. um formigamento estranho, que resultava dolorido ao contrair os esfíncteres. como eu estava nu, passei a ponta dos dedos e pude tatear cascas de feridas grosseiras em toda a região. quis me levantar mas meu corpo estava mole e pesado. no espelho confirmei o que temia: já as feridas fizeram desaparecer meus lábios e todo o rosto trazia agora manchas amarelas com os olhos roxos no centro. também as feridas do ânus se tinham alastrado e já se me fazia terrivelmente doloroso continuar sentado. mas era fato que também não conseguiria me levantar, tão pesado, inerte e incapaz eu me sentia. percebi que se não me mexesse doeria menos. senti todavia que, à medida que as pústulas se espalhavam pelas nádegas, meu corpo ia se integrando à escada, acomodando-se às saliências e vãos.
e minhas mãos, como estariam? para espanto, notei que conservavam a sua cor rosada, como se pertencessem a outro corpo que não o meu. da boca e do ânus é que irradiava a pestilência. e já toda a cabeça estava tomada: os olhos inchados e molhados de um verde gosmento, o nariz enegrecido e saliente, as orelhas rachadas e esfarelantes, os cabelos empastados por um pus que escorria pelos ombros.
espichei as pernas na tentativa de ver meus pés. algo como patas agudas de um réptil. minhas mãos principiavam agora a desoladora metamorfose. esverdeadas e grudentas.
estou voltando às origens da vida!
nada havia a apodrecer então. olhei-me a custo no espelho. os olhos quase fechados permitiam que eu divisasse a extensão dos danos. queria que ele estivesse lá novamente, queria estar de novo frente a frente com meu demônio-eu. não. à minha frente o reflexo do terror em que eu me tinha transformado. era comigo mesmo que haveria de ser travado o diálogo.
sempre tive medo de que isto acontecesse; principiei. foi a partir da leitura daquele romance grego.
será este o tamanho de sua culpa?
inda que seja o tamanho da minha culpa, será também o tamanho da minha libertação.
quem fala em libertação está admitindo a culpa. quem admite a culpa, admite o pecado.
estou condenado a conviver com esta moral. fui amamentado com este código. não admito esta transformação se não como algo simbólico. sei que tudo isto se passa dentro de um sonho.
mesmo dentro de um sonho, o que interessa é que você está criando esta purificação como saída.
prefiro este sonho à loucura!
e se não for sonho?
se não fosse para ser sonho não se chegaria a este ponto. apenas, de vez em quando, a boca cheia de aftas ou o ânus com pequeninas ulcerações.
por que a boca e o ânus?
esta pergunta é minha. eu não saberia responder mas sei perguntá-la.
você está muito seguro de que seja um sonho. transformado que está nessa coisa colada à escada, inerte, como um ancestral do que poderia ser humano, um réptil, um peixe, procure suas mãos e seus pés!
com efeito eu era já um amontoado de carnes apodrecidas, um gigantesco berne purulento.
uma criatura tubo, por onde entra o desvario da razão e sai o vômito da obra enlouquecida. e pensa que tem boca e ânus! procure a entrada e a saída!
com efeito eu já não me sentia com boca e ânus. apenas um pólipo imenso, podridão desgovernada com um orifício no lugar onde podia florescer um cérebro, uma boca-ânus ávida, ávido de tragar, de morder, de beijar, de lamber, de sugar, de engolir.
e, antropófago e visceral, enchi-me de volúpia e avidez e voracidade e avancei resoluto até aquela coisa dentro do espelho, voando na densidade do ar, e engoli toda aquela montanha de sarna e câncer, meu reflexo no espelho.
aquietei-me. porque me sentia agora preenchido, alimentado, e, principalmente, sem um desagradável interlocutor que me viesse cobrar por complexo de culpa.
mas por que pensei em complexo de culpa?
agitaram-se-me as entranhas como o vulcão que prepara o parto de fogo.
eu me resigno a conviver contigo, meu outro eu, meu pai-demônio, ressonância de todos os condicionamentos que o mundo fez crescer dentro de mim. a partir dessa escravidão, atingirei minha liberdade. não vou parar de pensar, sei que não vou ficar louco, um sonho pode dar pedaços de resposta!
e vomitei. vomitei ou defequei. abriu-se o orifício boca-ânus e, lentamente, devolvi aquilo que devorara. antes que tivesse saído de mim o produto, eis o que pensara meu cérebro entorpecido: se fosse uma golfada aflita, seria vômito. se fosse um despejar lento, seriam fezes.
mas que bola vermelha é essa que saiu de dentro de mim? como num parto!
brilhava rubro e molhado à minha frente, envolto em água e sangue, um imenso feto dentro de rósea placenta. rebentou-se a placenta e eis que Eu estou dormindo à minha frente, com o meu tamanho de hoje, com a minha idade de hoje, dentro do meu sonho de hoje.
comecei eu, de fora, molécula macróbia, criatura de um só significativo orifício, comecei a chorar, convulsionado.
9.
alguém me tocou no ombro. acordei cheio de suor.
você está tendo um pesadelo? não pára de roncar e de chiar!, falou meu pai.
sentei-me na cama.
acho que sonhei. o barulho era muito feio?
pô!, eu fiquei até com medo! falou o menino.
de repente os três soltamos fortes gargalhadas.
será que falta muito pro dia?, perguntei.
você ontem não cantou pra eu dormir, falou o menino.
não reparou que eu pus um disco?
qual?
o carnaval, de Schumann.
ah… e falou a seguir:
será que falta muito pro dia?
há um morcego voando no cômodo lá em baixo. o velho.
uau! vou ficar com a cabeça coberta.
não tenha medo, filho. é um morceguinho que mora atrás do espelho.
ele vive aqui dentro?
sim! amanhã eu te mostro.
deitados, tentamos dormir de novo. mas apenas nos mexíamos dentro da mesma insônia.
será que falta muito pro dia?, perguntou o velho.
o silêncio e o calor das cobertas foram aquietando nossos corpos. tentava fixar a atenção em algo, mas, tal houvesse uma figura dentro da minha cabeça, e não um pensamento, a forma dançava lenta ante meus olhos e se desmanchava num tipo de vácuo. fiz um tremendo esforço e pedi:
filho, fale mais dos homens.
e ele: