a espécie humana 50, 51, 52, 53 e 54

A Espécie Humana – capítulos 50, 51, 52, 53 e 54

50.   

um abraço e um beijo.   
foi tudo bem?, filho.   
nossa!, pai.  o avião deu dois pulos no ar e caiu e subiu!  levei um susto!  depois a aeromoça me levou pra cabine do comandante e só me trouxe de volta quando o avião ia pousar.  agora passou o medo.   
foi tudo bem por lá?
foi.  o tio e a tia mandaram abraços.  cadê o fusca?
está no estacionamento.   
vamos direto pra casa?
não.  vamos pro apartamentinho.  depois do almoço a gente passeia um pouco e de tardinha nós vamos.  agora é hora de pegar a bagagem.   


51.   

estamos chegando.  passamos a ponte e eu dobro à esquerda.  ao virar para entrar na nossa estradinha…
pai, pai!  veja!  está tudo aceso!
a surpresa me obriga a parar o carro.  a chácara está toda iluminada.  meu pai está abrindo o portão e, como há luzes por todo lado, eu só diviso o seu vulto, estranhamente meio gigantesco.  saltamos.   
o menino corre até ele e pula no seu colo.  três abraços num só abraço.  novamente.  meu pai:
então, hoje, eu é que recebo meu filho e meu neto.   
o que aconteceu por aqui?
então não vê?  o mundo caminha e essas coisas acabam acontecendo; nada de banho esquentado a álcool.  nada de música a pilha.  vamos à cascata.   
temos que tirar a bagagem!  eu.   
depois, pai, depois!  o menino.   
e descemos maravilhados.  quatro fortes lâmpadas transformavam aquele espaço já mágico num ambiente de outro mundo.   
o menino tira os sapatos e entra na água.  meu pai faz o mesmo.  e eu, lentamente, envergonhado por não ter tido essa idéia.  meu pai:
a água leva a canseira embora!
está tudo lindo.  como fez isso tudo?
outra hora a gente fala sobre isto.   
olhei-o sério e ele entendeu.  e disse:
não precisamos falar sobre isto.   
subimos.  a mesa está pronta e temos a sopa do primeiro dia, pedacinhos de mandioca.  desta vez o menino quis jantar.  enquanto comemos, meu pai:
tem mais uma surpresa.  subiu as escadas e já começou a soar uma música.   
o concerto pra flauta e harpa de Mozart!  o som está alucinado!, pai.   
é a vitrolinha?, vovô.   
não.  temos um som novo.   
pô!, pai!  agora só falta um fogão a gás.   
não!  esse pode esperar muito, ainda.   
e jantamos.  eu:
quando vocês chegaram aqui, pai, na hora da janta você parecia uma pintura de Goya.   
a luz elétrica acaba com estes encantos, não é?  mas deve trazer outros consigo.   
será?
e, tendo terminado a janta, meu pai trouxe uma garrafa de licor.   
é de banana!  acabei de filtrar.   
maravilhoso!  quer provar?, filho.  só provar.   
é gostoso mas muito forte, pai.   
é bom que seja, porque na sua idade não pode!  e meu pai:
não é que não possa.  não precisa.   
Mozart silenciou.  subimos para ver o som.  e meu pai pediu-nos ajuda para colocá-lo lá fora.  repetimos o licor de banana.   

52.   

vocês sabem que hoje é o dia em que o ano velho se vai embora.  e ele quer festa.  festa!  depois, pra ele, coitadinho, só o grande silêncio e a saudade.   
percebi que meu pai estava tomado por estranha excitação.   
licor de banana!  é denso e doce e amacia a alma aos poucos.  pena que os deuses antigos não conheciam o licor de banana!  ponha essa caixa ali.  isto.  vamos testar?  então, escolho eu a música.   
seria o efeito do licor?  tão pouco!
cale-se daqui pra frente Apolo, deus das musas, chega de equilíbrio.  silêncio, divindades da ordem!  este novo som, como uma coxa de Zeus, vai parir o deus dos ditirambos.  evoé!  evoé Dioniso!  evoé África!  ouçam isto!
e explodiram nas caixas acústicas os fantásticos tambores africanos.   
meu pai bebeu direto da garrafa.   
evoé Baco!  senhor Dioniso!  a vindima foi boa!  tum tum tum…  tá…  tá…  tum tum tum…  tá…  tá…   
então meu pai como que passou a não mais se pertencer.  ria nervoso e se mostrava agitado.  o menino o olhava maravilhado.   
e foi dançando, com certeza, que o deus que criou o mundo, o que criou de verdade…  foi dançando…  ora, chega de bobagens…   
e meu pai começou uma dança alucinada.  o menino me olhava e ria.   
nós é que dançamos!  nos dois sentidos!  as duas danças!  dançamos porque uma meia dúzia de criminosos controla o mundo e nós dançamos!  e dançamos a dança macabra!  tum tum tum…  tátátá…  a dança dos carneiros!
e mais um trago, licor de banana!
não havia mais licor.  meu pai atirou para o lado a garrafa.   
não preciso mesmo!  preciso de mais tambores!  volume!, menino.  volume!  a dança dos carneiros.   
o menino aumentou o volume e começou a bater palmas.  estava excitado.   
carneiros de merda!  carneiros de merda!  querem consertar tudo?  é fácil!  vamos acabar com o sigilo dos telefones oficiais e o sigilo bancário de todo aquele que é eleito pelo povo!  é fácil!  eles que esperneiem!  se eu ponho um telefone no quarto da empregada e eu pago a conta, pode ela ficar telefonando pros comparsas bandidos pra combinar o assalto à minha casa?  telefone oficial sem sigilo!  porque temos políticos que não valem o que comem!  tum tum tum…  e temos políticos que não valem o que cagam!  tá tá tá…   
essa eu entendi!, vovô.  essa eu entendi.   
o menino aumentou mais ainda o volume e começou a pular.  eu me sentia dentro de um teatro orgíaco e primitivo.   
é a nossa herança!  e vamos à dança dos macacos!  a dança dos macacos!  tum tum tum tá tá tá.  e tivemos os nossos contrabandistas portugueses e os nossos nobres e os nossos republicanos e no meio de alguns segundos de bom senso aí vai a bandalheira feroz quem chegar primeiro pega mais e a milicada deu sua contribuição estou esperando um coronel ou um general macho chegar na televisão e pedir perdão ao país pelo estrago que fizeram ou vão esperar o mesmo tempo que o papa esperou?  hein?  hein?  tá tá tá tum tum tum…  e a dança dos vampiros…  a dança dos vampiros…   
o menino entrou na dança com meu pai.  imitava os seus passos e ria nervoso e fora de si.   
e o ouro dos judeus?  onde foi parar?  senhores cidadãos da Suíça!  com que então vocês votaram contra a quebra do sigilo!  e se for o sétimo sigilo?  vocês ganham dinheiro dando segurança ao ouro dos torturadores, assassinos, traficantes e vendedores de países!  pra quê?  pra quê?  a dança dos jacarés bêbados, a dança dos jacarés bêbados…   
jogou-se no chão e o menino fez o mesmo.  e rolava e sua voz já estava meio rouca.   
pra quê?  pra quê?  pra que seus jovens promissores tenham de graça seringas descartáveis ave heroína imperatrix morituri te salutant mas levamos juntos alguns crioulinhos e alguns amarelinhos e alguns indiozinhos que essa gentinha morre à toa basta uma fomezinha e vão caindo pelos caminhos como são fracotes!
e o que dizer desses paisecos micróbios?  ontem paraísos turísticos e hoje paraísos fiscais, inventados pelos fantoches do crime internacional pra que os criminosos façam circular com juros seus dinheiros mais do que 30 que matam estropiam enlouquecem escravizam e enfaixam com os panos das múmias que parecem vivas mas estão mortas para a vida porque o que fazem é tão somente trabalhar hoje pra comer ontem!
mas porque não nasceram louros e altos?  diz no livro de Upanixades que o homem bom vai renascer no ventre da mulher de um brâmane e o homem mau vai renascer no ventre da mulher de um pária, a dança das minhocas, a dança das minhocas!  mas que maneira mais fodida e filha-da-puta de justificar o injustificável, o inferno social, o holocausto sem matança!  mas quem mandou?  quem mandou?  por que não nasceram louros e altos?  desses que comem feito porcos e engordam feito baleias e começam a correr feito idiotas vocês sabem de quem eu estou falando?  e a dança dos peçonhentos…  a dança dos peçonhentos…  tum tum tum tan tan tan tan…   
e já um tanto enfraquecido mas cheio de uma fúria selvagem meu pai levantou-se e começou uns passos grotescos, mancando e se desequilibrando de propósito e o menino atrás dele e agora era o menino que imitava o ritmo dos tambores
tum tá tá tum tá tá…   
e o que foi feito do Protocolo de Quioto?  mas que bobagem!  então agora meu filhinho que fez dezoito anos não pode ter o seu automovelzinho?  e o que dizer das minas explosivas em Angola?  mas que diferença faz um preto com pé a mais ou mão a menos?  o preto grita: patrão, a tribo inimiga quer me massacrar, preciso de armas, armas, não tenho dinheiro, quê que eu faço, ora, negão, deixo você pagar com diamantes.  quem vendeu armas a Angola?  e como é que esses povos arrogantes conseguem sobreviver nessa nossa época tão filhadaputa e inútil?  ora ora ora, drogas!  drogas e drogas!  quem é o maior consumidor do mundo?  tum tum tum tá tá tá…   
e a dança dos dinossauros, a dança dos dinossauros!
tum tum tum somos uma espécie de espécie em extinção por que o planeta…  o circo…  o circo não vai aguentar…  ou…  como disse o russo…  que todos o queiram e num minuto tudo será consertado…   mas nós somos a discórdia…  podemos dizer que temos justiça?…   
meu pai, enfraquecido, parou…  olhos esbugalhados para o vazio…   
a justiça…  tantos advogados…  e quase se pode dizer que o país mais atrasado do mundo…   
a custo se aguentava de pé e começou a chorar.  o menino correu ao meu colo e me abraçou forte.   
quase se pode dizer que o país mais atrasado do mundo é aquele…  que tem mais processos na justiça…   
e num urro cheio de violência:
mas não me perguntem qual é porque eu não enfio a mão em balde cheio de merda!
com meu filho no colo tirei o som e fui até ele.  meu pai sentou-se no chão.  sua voz vinha cavernosa, como se saísse do último círculo do inferno.  entre soluços e guinchos:
e não me venham com essa de Deus!  bando de musaranhos vorazes mas dominados pelo cretinismo!  não me venham com essa de Deus!  basta uma pergunta e vocês se derretem em esgares.  basta uma pergunta.  então, digam, vocês, monoteístas cristãos, presumidos, engolidores e cagadores de dogmas: o vosso Cristo, senhores!, o vosso Cristo…   
tinha cromossomo Y?  han?
meu pai falava como um bicho, babava e já ria como se dominado por um tipo de loucura.   
teólogos de merda!  respondam!  vocês católicos que, com raríssimas exceções, se julgam os melhores, e que nunca se envergonharam do passado dessa igreja a que servem!  teólogos da ilogia!  vocês, evangélicos que, com raríssimas exceções, passeiam com essa Bíblia ensebada nas mãos e o Diabo na boca, que vocês falam mais nele do que em Deus.  teólogos da ilogia!
e meu pai me olhou com os olhos injetados e cheios de pavor.   
a custo levantei meu pai.  ele me abraçou desesperado.  o menino sobre um ombro, meu pai sobre o outro, senti o peso de todas as cruzes da história do homem.  eu mesmo apavorado e fraco, mas eu sabia que, naquele momento culminante de minha vida, eu não podia sucumbir.  começamos a chorar os três.  e sem saber de onde vinha a minha força selvagem, eu dei conta da minha missão.   

53.   

aos poucos, aquietamo-nos.  ele separou-se e me olhou como olharia um pai saído da lenda.  eu sorri e falei:

paz, paz, Mercutio, paz.   
você fala sobre o nada!

ele, quase sem voz:

não é verdade!  falo sobre o pesadelo!

lentamente, dirigimo-nos à casa.  nesse momento, sem motivo algum, meu pai parou e olhou para o portão.  estremeci e todo o meu corpo se arrepiou.  o menino se apertou forte contra mim.   
da rua vieram a correr três enormes cães pretos.  iguais.  pararam no portão e ficaram olhando.  apoiando meu pai e ainda com o menino no colo, fomos até eles.  e meu pai, com a voz por um fio, trêmula mas suavíssima:
criaturinhas da vida!  que vieram fazer aqui?
os cães nos olharam fixamente e deram a volta, desaparecendo após uma corrida rápida e silenciosa.   
vamos entrar.  estamos cansados.  antes do sol nascer, eu devo mesmo partir.   
meu filho o olhou cheio de seriedade mas nada falou.  fiz com que ele se deitasse no meu colo e o estreitei com carinho.  ele segurou minha mão e apertou-a com toda a força.   

54.   

coloquei o menino sobre as almofadas do grande banco de cimento e o cobri.  sentei meu pai no canto e fiz com que se cobrisse com seu enorme casaco preto.   
vou fazer um chá.   
e já trouxe uma xícara quente para meu pai e uma morna pro menino.   
capim-limão!  está bom!  e sorrindo: a festa acabou.   
nunca vou esquecê-la, pai.  eu disse.  e você, garoto, não quer um banho?  logo logo vai ser meia-noite.   
falta muito ainda, pai.  mas eu quero um banho.  e vou vestir uma roupa branca.  vovô!
meu pai o olhou, agora já completamente calmo, apesar de eu perceber que ainda tremia de leve.   
oi!
você fica bravo se eu tomar o último banho a álcool?
claro que não!  um sorriso devolveu meu pai a meu pai.   
preparei o banho do menino e ele entrou no banheiro.   
quer mais um chá?, pai.   
vou pegar.   
nada disso!  eu pego.  e logo a seguir:
é preciso trazer o aparelho e as caixas.   
está frio, pai.  eu cuido disso.   
coloque tudo aqui em baixo, por favor.  quero ouvir umas músicas antes de ir.   
trouxe tudo.  armei improvisadamente o aparelho e as caixas.  o menino saiu todo de branco do banheiro.   
você botou mais álcool, né?, pai
botei.  sorrindo.  deite-se aqui.  vou cobri-lo.  está com fome?
não.  e eu:
pai, agora vou ao banho.  depois vemos as músicas.   
e já saí, também todo de branco.  agora era eu, quem perguntava rindo:
pai!  e se eu acender velas, você fica bravo?
vai ficar bonito.   
vou arrumar seu banho, pai.   
não precisa.  meu último banho vai ser frio.   
uau!, vovô.   
risos.   
enquanto meu pai esteve no banheiro, o menino:
pai, semana que vem a gente podia ficar uns dias no apartamentinho.   
quer passear pelo Centro?
quero.  quero jogar vídeo-game.   
semana que vem a tia chega com as meninas.   
jóia.   
e virou-se e dormiu num relance.   
meu pai sentou-se todo dentro do largo banco, de modo que seus pés tocavam os pés do menino.  atrás de sua cabeça, ao alto, o enorme poster que eu fizera de Joan Baez.   
que músicas?, senhor.   
veja estas fitas que eu separei.   
muito bem.  Mors et vita, de Charles Gounod.  isto é maravilhoso!  são duas fitas.  depois, o Réquiem de Dvo?ak, nossa!  e as Vespro della Beata Vergine, de Monteverdi, pai, assim você acaba comigo.   
risos.  preparo-me pra minha volta.   
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