alma desdobrada, cap. 0,1, 2, 3, 4, 5 e 6.

Alma desdobrada, capítulos 0, 1, 2, 3, 4, 5 e 6.

 

ALMA DESDOBRADA

(história de uma terapia)

 

Nota: Este livro foi escrito em 1982. Eu tinha, então, 40 anos. Durante estes últimos trinta e dois anos eu sempre o reli nos dias de meu aniversário. E sempre cortava e cortava textos, por um ou outro motivo. Achava, então, que ao final, nada sobraria. Muitas vezes eu pretendi destruir o material remanescente, mas nunca tive coragem. Agora, 2014, no meio de algum tumulto interior e alguma inesperada felicidade, eu decido que ele é publicável por tão somente um motivo: há de ajudar a alguém que, como eu, sofreu ou sofre injustamente de uma culpa imposta, por força de sua sexualidade.

 

000.

 

quando eu era menino

e pensava no que vinha a ser alma,

imaginava que alma era alma penada:

alma feita de pena

e dor

por viver solta num espaço sem dono,

sem corpo,

à procura de sangue e intestinos

e nariz

e olhos de onde brotem choros.

 

alma não era além

de um branco lençol flutuante,

com dois terrores enormes e negros e sem

no lugar de olhos que não olhavam.

 

alma era aquele véu à espera

de um coração sem existir.

 

alma era o vôo

do branco

no nada.

 

depois cresci e deduzi que alma

era o mais profundo dentro do mais eu

e era e é aquilo que me existe

e que me torna

e que me faz intransferível

e que não me permite ser cancelado

nem de deixa adiável

e é o meu agora feito de depois.

muitos e muitos depois.

 

alma era e é tudo que está

dentro do lençol de pele;

o que quer fugir para qualquer futuro,

qualquer futuro que só meu;

e que quer entrar em todas as voragens

de luz

do que sou, do que sonho ser, do que temo ser,

do que tudo meu,

e até do contacto que for todo o resto.

 

e agora,

hoje,

onde,

menino de novo,

a chorar e a tremer,

menino de novo,

resolvo adotar minha velha alma;

alma penada,

um lençol de pele solto no espaço

do mundo.

eu não sou um conteúdo,

uma substância

envolta ou presa ou protegida num corpo.

 

sou meu limite,

sou minha superfície,

sou meu lençol de pele.

sou aquilo que toca o mundo

e é tocado pelo mundo;

sou o até onde posso ir.

o que está dentro de mim

não passa de um conjunto organizado

para manter intacto e perfeito e bonito

o meu de fora.

 

quando eu era menino

e pensava em alma,

tinha medo.

 

alma era coisa de ir deste mundo

para outros mundos insanos e não provados.

 

agora, menino de novo,

alma não me faz medo.

 

alma não passa de um lençol branco

cheio de dobras.

alma sou,

não tenho medo de mim.

  

  

001.

          ele se senta à mesa e resolve escrever. sabe que deverá ir até o fim, trilhar as trilhas de dor, todas, até que estas se desmanchem nas paisagens cheias de neblinas. ele está fazendo terapia e tem a cabeça cheia de deuses e de demônios. e sabe que vai encontrar esses deuses e esses demônios no meio do caminho. precisa deles. no convívio todos se transformarão numa nuvem de fantasmas que, conhecidos, tornam conscientes as fantasias inconscientes. fantasias conscientes não mergulham o homem na merda. apenas o tornam mais livre. ou menos escravo.

         daqui pra frente, o escrever será o desdobrar de um lençol cheio de momentos de vida.

 

 002.

          ele está sentado no restaurante, seu amigo sentado à sua frente. os olhos do amigo não param mais no espaço, como antes, indo cravar no coração, como dois raios, como antes. não. agora esvoaçam tranquilos como borboletas. olhos de veludo macio. de paz e de sabedoria. ele nada entende. sente apenas que são olhos muito bonitos. era bom poder beijar estes olhos. ele não pode. agora, quando ele escreve, ele repensa o olhar e saem palavras como doçura e enigma. doçura de amor e enigma de vida. agora é fácil. no momento perdido, só há espanto.

         e muito amor.

 

003.

          ele escreve ele, mas poderia estar escrevendo você. ou eu.

 

004.

          sonhei hoje um sonho, e à noitinha o levei para a terapia: estou diante de um enorme espelho. tenho meus atuais quarenta anos, do lado de cá do espelho, onde estou, dentro do meu sonho. vejo a mim mesmo do outro lado, a sorrir. mas não está dentro do espelho o eu de hoje e sim o eu adolescente. sei que sou eu mesmo, apesar da grande diferença de idade. sei que não há diferença de idade, apenas a mesma vida a se refletir em dois tempos diferentes. eu, de cá, olho o menino ingênuo que me olha sorrindo. e penso: como eu gostaria de fazer amor com esse menino…

 

005.

          sei de mil pedaços de vida a escrever. sei da dificuldade de escolher. quero fechar os olhos e me lembrar. mesmo sem fechar os olhos, eu vejo um tumultuado esvoaçar de lembranças doloridas. mas flutua no meio do caos o rosto de meu amigo. flutua com aqueles olhos dele e aquela incrível e doce dedicação. não te entendo de todo, menino. a sensação que tenho às vezes é de que você me amarra com as cordas de sua ternura. é uma estranha forma de escravidão, esta.

 

006.

          ele abre espaço para a primeira recordação triste: eu caminho no meio da noite, preparado que me sinto para entrar na zona, escolher uma mulher e dar minha primeira trepada. foi um trabalho árduo e cheio de concentração. como foi esse trabalho, é assunto para uma outra qualquer recordação que ele escreverá num qualquer momento futuro. vale dizer agora que houve um ritual de preparação mental, de encorajamento, de banho e perfume. assim, vestido por dentro e por fora, eu caminho. imagino como será o encontro, como será a foda, como será a vitória, mil inimigos mortos no caminho de volta: o medo, a insegurança, o terror do homossexualismo, a vaidade ferida, o amor próprio abatido… o caminho de volta seria um caminho de vitória. para ser mais honesto do que pretendo ser, para ser sempre honesto até o fim, direi que não pensava nessas coisas. pensava em chegar decidido, olhar, ficar na espreita, oferecido, aceitar a oferta, conversar sobre preço, qualquer coisa desse tipo: pensava num quarto e numa mulher simpática que tiraria a roupa e flutuaria à minha frente, então, uma vagina cheia de pelos e esta imagem me enchia de medo. mas eu pensava também em deitar-me sobre ela, meter, gozar, entoar o cântico dos cânticos. teria vencido.

         eu acreditava naquele momento que uma foda heterossexual redimiria toda a minha atormentada fonte de desejos por adolescentes e apagaria da face do meu planeta as nascentes de insuportáveis e sedutores sonhos eróticos.

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