Alma desdobrada, cap. 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137 138 e 139.

Alma desdobrada, capítulos 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137 138 e 139.

 

130.

          minha mãe, como é doído pensar em você. eu sempre me lembrei de uns olhos tristes e um sorriso cheio de um camuflado sofrimento, quando me lembrava de você. queria que suas dores alimentassem o que eu pensava ser saudade. então, na terapia, falando de você, descobri que você não me quis, não deve ter me querido, me prendendo na mais desastrada grade da rejeição.

          o que eu nunca quis entender, o que é difícil entender, é que mãe, você, qualquer mãe do mundo, é o conjunto de um milhão de criaturas. cada coisa que diziam de você, minha mãe, era uma criatura a mais que vinha pousar no pombal do meu entendimento. e eles falavam o tempo todo de você, contavam histórias de dor e traição e choro e luta e em todas estas histórias era você a vítima, a portadora da chama da bondade, a responsável pelo ato heróico. e todas essas imaculadas pombas-mãe vinham se acumulando no pombal daquilo que foi se transformando em conhecimento dentro de mim, virando parte de mim, acabando por ser eu mesmo.

          e venho, no ato de rever e decifrar o meu passado, com olhos de criança que quer aprender, venho a perceber que estas pombas todas, brancas e de doce memória, defecam verdades malcheirosas que se acumulam. e, cavalariças de áugias feitas para dulcíssimas lembranças, ameaçam sufocar o resto da vida que falta, tornando insuportável e impossível, uma existência sem choro infernal.

          e venho, mais, descobrir que, se fizeram dentro de mim mil imagens do que pode ser mãe, mãe, mãe de verdade, mãe minha, seria aquilo que foi minha mãe, aquilo que senti mãe, aquilo que ficou mãe dentro de mim.

          pomba ou dragão. mas a minha mãe.

          não simplesmente a minha mãe deles.

 

131.

          meu primeiro livro foi uma tragedinha chamada caim.

 

132.

          há tanto tempo não falo de Z….

          Z….

          meu amigo.

          tenho uma vida inteira para falar de você.

          há mil e trinta e três coisas para falar de você. há muitas outras para calar sobre você.

          falar ou calar, o que é isto de um coração se arrebentar tanto por dentro, porque exista alguém que venha a ser assim tão amado?

          que coisa é esta de amar?

          não sei o que faço nem o que digo. nada sei.

          Z…. meu amigo.

 

 133.

          meu primeiro livro foi uma tragédia chamada caim. escrevi-o no meio de uma turbulência emocional, porque amava a V… escrevi-o em dois ou três dias e, semanas depois, uma ou duas, copiei-o, ampliando-o. foi a primeira coisa que escrevi, que tivesse começo, meio e fim.

 

134.

          de modo que o juízo final, de michelangelo, me impressionou profundamente. folheava seguidas vezes aquele livrinho em espanhol, a cores. no brasil, à época, não se editava a cores. a primeira noite, após o juízo, foi febril e atormentada.

          febre pela arte e tormento pela beleza, pensava eu contente.

          outras foram as noites em que o livro apenas me perseguia de modo tirânico e voluptuoso.

          Alguns dias mais tarde, resolvi desenhar aqueles corpóreos santos maciços e carnudos. lembro que desenhei dois deles. e, não resistindo à visão, olhando-os, eu me masturbei, desvinculado que estava o meu desenho daquela sacralidade portentosa e cheia de artístico vigor.

          mais tarde ainda, entendi que minha febre e meu tormento nada tinham a ver com beleza e arte. e que minhas duas masturbações indicavam que aquela febre nada tinha de estética.

 

135.

          neuza, irmã mais velha, se eu pudesse te invocar, como invoquei a meu pai, como poderia fazer com minha mãe, não o faria agora.

          não sei qual das três imagens me marcou mais profundamente, qual me queimou mais. desses fogos que temperam o aço para as duras lições que não se repetem jamais. não sei.

          sei só que, das três figuras de meu passado, a mais difícil de ser lembrada é você.

          penso numa resposta: meu pai vestiu a armadura de ódio que lhe doaram, minha mãe nunca me deu um beijo carinhoso; você cobrava de mim, que eu fosse homem.

 

137.

          algumas vezes penso que tenho escrito sobre mim, com uma segurança tão grande e pode se dar que meu destino não tenha a envergadura necessária a suportar o peso de tal grandeza. isto resultaria numa insuportavelmente medíocre presunção.

          falo tanto de mim!; não sei o quanto sou.

          posso ser um grande panaca.

          foda-se tudo.

          assim penso, assim escrevo.

 

138.

          só não quero estar mentindo.

 

139.

          eu tenho o direito de não amar a alguém e não querer viver com determinada pessoa e pretender, dentro do meu destino, desamarrar os caminhos que são desamarráveis.

          eu tenho o direito de mudar: de roupa, de emoção, de gosto, de ódio, de luta.

          eu tenho o direito de trocar meu amanhã pelo dia que eu quiser, do passado, do presente ou do futuro.

          eu tenho o direito de desejar pelo meu desejo, fantasiar pela minha fantasia, enlouquecer pela minha loucura.

          quero ter o direito de ser eu sempre, agora o eu de agora, sem compromisso com o eu de antes; depois, o eu de depois, sem me ligar no eu de agora.

          pois é.

          o grande problema que sinto é que a A… nunca tenha reconhecido isto. ela quer ser o termômetro de minha febre.

          se eu machuco alguém, por soltar ao vento o balão da minha existência, o problema não é meu. isto que ela fala de leonardo e bruno não passa de um bando de abutres-desculpas carniceiras. minha bandeira maior é a da liberdade e sinceridade. se vivo minha vida, não minto para eles, amo-os como os amo, qual é o problema?

          estranha essa sociedade, que dá poder às cegas. a mãe é a dona da vida dos filhos até que estes, já sem vontade, decidam-se por si.

          eu, demoníaco e virulento, insuflo neles, com minha conduta inesperada, o germe da busca da felicidade.

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