Alma desdobrada, cap. 178, 179, 180.

Alma desdobrada, capítulos 178, 179 e 180.

 

178.

          descubro aos quarenta anos o que é ficar embriagado. meu pai bebia, a imagem do que vem a ser embriaguez transparecia sinistra e ameaçadora no meu entender medroso. para facilitar a sensação de vitória, percebo que todas as bebidas têm um sabor desagradável. levam em si um pouco de inferno, no exato momento em que atravessam os umbrais da garganta. então, sou virtuoso enquanto não bebo. não sigo o caminho do erro, com minha abstemia. consigo.

          só o vinho me perturba.

          o vinho me entontece, as cores saltam das coisas todas e ele é doce como as lendas das mitologias. o vinho me joga para trás, para as velhas eras cheias de magia, insegurança e pasmo. o vinho lembra guirlandas de flores perfumadas, cabelos convulsionados por carinhos zonzos, bocas com cheiro e gosto de uva. olhos que pretendem ainda ver o brilho do mundo, mas se fecham pesados como cobertores hibernais. sexos aconchegantes, não enraivecidos e inteiros e armados para mais um orgasmo; mas intumescidos o suficiente, para mostrar-se vivos; e aquietados o bastante, para serem beijados em sua semi-sonolência.

          o vinho me convida a atravessar o larguíssimo estreito que leva ao grande mar.

          antes, eu tinha medo do grande mar. sempre parei antes do próximo copo. sempre acreditei que tivesse vencido.

 

 179.

          algumas vezes, enquanto ouço uma música, dessas mais danadas, criadas por um desses homens, desses mais medonhos, e penso nesse meu amor, desse mais alucinado amor que me assaltou por estes últimos meses, desses mais loucos meses…

          nessas vezes eu choro. e não penso. apenas tão só e tudo que faço é chorar.

          depois é que penso:

          já senti antes essas emoções todas. pelo primeiro, chorei, chorei pelo segundo, pelo terceiro… e agora choro por Z…. sinto que algo se repete. eu não sou mais aquele que chorava, eu sei, penso que sei. gostaria de saber que aquele não sou eu. mas fica em mim a lembrança do que já vivi antes.

          e concluo que estou repetindo a vida.

          como isto vem a ser belo e profundo! estou repetindo a vida! sou repetente da vida; a vida se permite ser revivida por mim, através de mim! não a vida, mas a minha vida.

          minha vida volta em intensidade. Z…, Z…, tudo passado, tudo sentido, tudo já prestes a se enevoar, você aparece e acorda em mim a canção do que é viver outro dia.

          outro amor é como acordar de novo.

          acorda-se para um novo dia.

          luz do meu novo dia, Z…, luz, luzeiro.

 

180.

          eu vivo novamente.

          retenho a chance. ela me massacra com sua festiva alegria e seus desejos que se debatem. amo.

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