Alma desdobrada, cap. 184, 185, 186 e 187.

Alma desdobrada, capítulos 184, 185, 186 e 187.

 

184.

          minha mãe, minha mãe, eis-me de novo diante de você.

          ou eis você diante de mim, ainda uma vez.

          sobre o quê falaremos?

          que coisas poderemos lembrar juntos? eu, com minha memória tropeçando em pedaços de dor, você me seguindo à força, amarrada pelas correntes de minhas doridas recordações.

          seria possível tecermos algum tipo de sonho, juntos? juntos, teceríamos alguma tela de sonho?

          que narrativas fugiriam de teus lábios de nada para abrir caminho no meio do meu sangue? que contos te poderia eu contar, que saíssem misturados a lágrimas confusas, e findassem por perturbar o silêncio da tua morte passada ou o turbilhão que foi tua vida apagada?

          não te contarei eu histórias, como as que você nunca me contou.

          não censurarei teus lábios fechados a lendas e fantasias nem reclamarei tuas opções pelo silêncio.

          não te cobrarei abraços não recebidos nem beijos fugitivos e tímidos nem afagos temerosos e impossíveis. cobra-se o que é devido. isto não me foi devido porque não te comprei eu minha filiação, que pudesse se transformar em dívidas de amor dentro do teu coração. não te comprei porque tua maternidade não me estava à venda.

          fui um filho escapulido no meio de alguma tenebrosa noite de embriaguez masculina e feminina indiferença. ou medo. ou fúria. ou nojo. foi no meio desse cheiro de cachaça e dessas trevas de medo, fúria ou nojo ou indiferença, foi nesse torvelinho perturbado que eu me fiz.

          me fiz através de você, usei teu corpo não exorcizado durante nove meses para que se completasse meu corpo até o necessário à sua vitória. e, corpo feito, pari-me dentro do seu parto e me dei ao mundo, eu, filho não desejado, filho. gente.

          não te contarei histórias, por agora. diante de você, meu silenciado coração embrulhado na mais confusa e estranha saudade.

          não quero machucar tua memória já machucada.

          digo-te só mais que estou falando com a mãe que existe em mim. não com aquilo que você me foi, mas com aquilo que de você me ficou.

 

185.

longa noite negra interminável

pra onde é que você me leva?

que infernal deserto será esse

que visitarei, montado nos teus ombros?

de quem são estes corpos apodrecidos

que você evita pisar, com tão seguros passos?

e esse ar pesado e sem vento

não há de envenenar meu sangue?

e por que é que você agora me deposita

dentro dessa pedra sem portas

nem janelas?

como u’a mãe que põe o filho a dormir.

eu não quero dormir, você não ouve

meu choro inconsolado?

eu não quero dormir nestas paragens,

não ouve meus soluços

que fazem tombar os rochedos?

quero voltar com você, em direção

a qualquer madrugada!

qualquer madrugada, inda que fosse

o alvorecer do dia do juízo;

volte, minha mãe, negra e escura

noite da minha vida!

não quero este ar de peçonha

entrando nas minhas veias!

não quero este berço duro e eterno

que venda o meu agitar-me!

você ainda me ouve?

você ainda me ouve? mãe-noite!

onde está você?, que não te vejo!

onde você está?, minha mãe!

que inferno é esse

em que você me deixou?

 

eu tenho medo!

eu tenho medo!

eu tenho medo!

 

eu tenho medo!

 

186.

          tinha medo de minha dor, como tinha medo de minha dor!

          tinha medo de meu choro, como tinha medo de meu choro!

          tinha tanto tanto medo de minha melancolia! era sempre muito estranho amar como eu amava, pois, junto com o arrebatamento da paixão, vinha o terror diante do tipo de desejo que me assaltava.

          amarrem os pés do adolescente num anel de ferro, no chão, com pesadas correntes feitas por um titã gigantesco! dêem-lhe agora asas, fluidas asas de textura legendária.

          observem agora o horror, porque as asas o levantam ao espaço cheio de promessas do paradisíaco delírio, mas as correntes o seguram na terra da dor e da culpa.

          minha dor era grande, como era grande a minha dor!

          grande era minha culpa, como era grande a culpa minha.

          decidi então ser frio e insensível como ivan karamázof ou nicolai stavróguin. ivan karamázof e nicolai stavróguin. isto foi o que escrevi um dia no meu diário.

          o que me ocorria, era o sonhar com uma frieza e uma indiferença que me livrariam daquelas asas que pretendiam me atirar para longe do chão infernal.

          eu resolvera que o ideal humano seria atingir a indiferença filosófica dos sábios, dos velhos.

          queria, tão só, não sofrer. queria, agora penso, queria apenas deixar aquele adolescente para trás, envelhecê-lo, enrugá-lo, cortar suas asas de canções impossíveis, atrair seu futuro para a terra dos silêncios sem flautas perturbadoras.

          viesse a velhice e a dor se calaria no meio daquelas demoradas planícies de gelo.

 

187.

          alguma filosofia me atraía, não toda ela. algum tipo de dúvida combinava com minhas dúvidas. alguma especulação puxava minhas juvenis especulações. eu lia. sempre dei preferência à filosofia mais emocional, lúdica. mais a parábola que o raciocínio lógico. mais a cena de um romance ou uma peça de teatro, que a divagação seca da razão.

          foi por isso que voltaire me deu aquele susto. era uma espécie de evangelho para inteligentes.

          adoro voltaire. nunca vou me esquecer a primeira vez que o li, micromegas, em francês, no apartamento de Miguel e angela, recém casados. depois, já em curitiba, ganhei seus contos filosóficos.

          vale mais lembrar do primeiro voltaire do que da primeira trepada. pra mim, vale. ele me mordeu muito mais. arrancou pedaços. eu poderia dizer que, depois dele, não saí diferente do que viria a ser mas muito diferente do que era antes.

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