Alma desdobrada, capítulos 188, 189 e 190.
188.
leonardo, leonardo, olhe para mim. você não está à minha frente. você e seu irmão moram com a mãe numa cidade distante. estou só, na chácara, escrevendo à luz de algumas velas. um grilo canta lá em cima e a vovó maria me ensinou que, quando o grilo canta no quarto, é sinal de morte.
você não sabe destas coisas, porque estas são minhas coisas.
você sabe das suas coisas.
penso em você arregalando os olhos para o mundo. não dá pra dizer que você entende o mundo, mas seu silêncio e seu jeito de olhar me falam que, se você o não entende, você o abarca.
joan baez cantou da menina francesa e disse das crianças que são mais sábias que o tempo.
não sei bem o que seria ser mais sábio do que o tempo. o tempo seria sábio, por ser bastante velho?
quando te vejo quietinho, os olhos meus, os olhos parecidos com os meus, a bisbilhotar em silêncio os segredos do universo, sinto que você é mais sábio que o passado.
seu tempo não é o meu, meu filho. confundimo-nos um pouco nesse nosso presente simultâneo, mas estamos sincronizados em distintos períodos. você precisou de mim, para se fazer.
por isso, nossa convivência de hoje.
bem que assim esteja sendo, porque eu te amo, pequenino.
amo sua carinha, seu jeito de rir, seus olhos que vigiam minha alegria, sua curiosidade em torno de minha felicidade, seu cuidado com a discreta essência de meus amores. amo o amor que você sente por mim.
pare de crescer, filho meu. só agora, nesse instante, dentro da minha imaginação cheia de melancolia. com seus onze aninhos desencarrilhando em quase doze, pare de crescer nem que seja só por agorinha. aninhe-se no meu colo, relaxe, faça boneco mole. encoste a cabeça no meu peito. dou um beijinho de pai na sua boca e te faço dormir.
meu filho não único, te amo.
189.
não posso evitar isso, criatura minha: não te sofro como antes, mas sonho com você no meu abraço, no oceano do meu abraço, ultrapassando o gibraltar do meu e do teu desejo.
plus ultra!
que monstros serão aqueles?, tão encantadores! que terrores serão aqueles?, tão doces! que desespero será aquele?, tão adorável!
190.
schopenhauer me dizer que o amor é a transfiguração do sexo, foi uma patada de mãe. dessas patadas que a mãe cabrita dá no filho, quando ele continua insistindo em mamar. ela o expulsa de sua tranquilidade lúdica, como quem estivesse a dizer: daqui pra frente, vire-se. você é o responsável por suas descobertas. está me incomodando sua infantilidade.
esta foi uma das duas grandes mexidas que minha cabeça sofreu no seu processo de desenvolvimento. a outra foi descobrir alguma coisa sobre a imortalidade da alma mortal.
estou no segundo ano científico. o professor de filosofia nos encomenda um trabalho sobre se a alma é ou não é imortal.
fico feliz com a idéia, me ponho a ler aqueles horrorosos manuais de filosofia indicados, chatolissíssimos. quero provar que a alma é imortal, desdobro raciocínios, recorto constatações, faço colagens de silogismos, desenho novos juízos, decalco conceitos. estou seguro agora de que possuo todos os dados para argumentar sobre a alma ser imortal.
sonho com um trabalho brilhante, claro, lúcido, forte.
me ponho a escrever e levo um baita dum susto. aquilo não me convence e, depois de muita dor, concluo que não há jeito de a alma ser imortal. assumo a custo minhas deduções. engulo-as na marra.
de acordo com minha pequenina e pobre lógica, a alma deixou de ser imortal a partir daquele dia. essa alma, consequência do corpo, arrastou atrás de si, na sua queda, um bando de deuses inúteis.
virá um dia, uma cabra maior me dar um outro tipo de patada e me chamar de criança? para que tipo de conhecimento estaria navegando o homem?
a não ser que premido pela escravidão de alguma forma de loucura, na lucidez de minha liberdade de hoje, não acredito em vida eterna.
aqui estou.
sou isto.
sou só isto.
serei sempre aquilo que estou sendo agora.
tudo isto sou.
depois, nada mais. nem o silêncio. nem o esquecimento.
nada.