Alma desdobrada, cap. 202, 203 e 204.

Alma desdobrada, capítulos 202, 203 e 204.

 

202.

          de todos os fatos que me aconteceram, eis então o mais mortalmente inesquecível; minha súbita paixão por aquele menino do pedro segundo.

          algumas vezes, um acontecimento vem a ser tão fulgurante que empalidece o que está ao seu redor. outras vezes, dá-se que o acontecimento não venha a ter assim tanto brilho, mas seja capaz de provocar mudanças ou novas constatações; estes acontecimentos se tornam coisas do sempre.

          se penso em meus primeiros amores, se penso nessas minhas todas únicas paixões e penso a seguir naquilo que senti por nilton (esse, o nome dele), o adolescente de olhos verdes e gestos femininos, concluo fácil que a paixão por esse menino foi frágil, quebradiça, passageira e menor do que tudo que veio em seguida. mas que grandezas e que terrores e que abismos e que serpentes se escondiam atrás daquela pequena paixão passageira e menor?

          eu amei nely, depois rejane, depois as meninas gêmeas não gêmeas no meu segundo ginasial. sabia o que era isto de amar. sabia o que era isto que pensava ser amar. se fosse escrever sobre o amor, repetiria coisas já escritas: que sofria e era feliz ao mesmo tempo; que ansiava por uma presença doce; que não se desligava o coração de um bater convulso e mais desritmado; que meu mundo se modificava e assim modificado adquiria um significado de crescimento, força e conquista. era isto o que eu sentia. as coisas iam e vinham e cada nova paixão era mais violenta que a anterior.

          dizer daqueles amores, violentos, não seria forçar a expressão, fazer exercícios de retórica; aquela era a violência máxima a que eu resistiria. sentir mais, seria fragmentar-me.

          então, numa tarde, eu distraído, quão distraído estava!, fui apanhado de surpresa. então, numa tarde, me sinto diferente, assim como que grávido de uma nova e forte emoção. um pequeno júbilo ameaçou esclarecer-se dentro de mim e transformar-se em grande júbilo.

          eu lembrava daqueles olhos e os achava belos e amigos; queria conhecê-lo melhor; ele me olhava de longe e piscava lentamente, como uma sereia sedutora. eu sentia crescer dentro de mim o fogo, o braseiro, a luz do que sabia ser um novo amor. eu imaginava poder aproximar-me dele e me transformar no seu novo colega. meu coração estava apossado de líricas canções impregnadas em loucura. eu pensava que tinha alguém a satisfazer em mim a ânsia de um outro, dentro do meu viver.

          era feliz porque amava. pensava nele o tempo inteiro. a quem amo?, perguntei-me. que duas constatações tão diferentes são essas, que ameaçam juntar-se? eu amo! mas ele não é uma menina!

          estava aflito. como um peixe preso no anzol!

          houve um dia uma pena de morte que consistia em amarrar os braços do condenado num cavalo e as pernas em outro cavalo. os cavalos eram chicoteados e a pessoa era partida ao meio.

          era como esse condenado, arrebentado em duas direções opostas, que eu me sentia.

          e chegou o momento em que a verdade se mostrou clara e condenatória: eu amava um menino.

          e um choro aterrador explodiu dentro do meu coração.

          e eu fui obrigado a chorá-lo.

 

203.

          então, cheguei em curitiba, a cidade que viria a resolver todos os meus único problema. não deu pra segurar o meu destino. cheguei, comi uma mulher, foi para isto que vim. teria sido apenas para isto que vim? resolveu?

          poderia dizer que meu romance jogado com B… me aqueceu num purgatório de suficiente segurança, para o que aconteceu em seguida.

          seria possível um resumo disto tudo?:

          apaixonei-me por meninos. nunca fiz sexo com nenhum deles. iniciei-me no corpo de uma mulher. foi tão só uma questão de acabar com o pânico. colocar-se diante da situação, atribuindo à situação apenas a carga que ela tem: a coisa mais natural do mundo.

          casei-me em seguida e fiz dois filhos.

          sempre pensei que se meu casamento não tivesse tido a sua bagagem extremada de neurose, eu poderia estar casado até hoje. minhas paixões antigas ficariam a cada dia mais pálidas, até se transformarem em lembranças distantes. conheço muitos casos assim.

          e eu viveria uma pacífica vida cheia de tranquilidade.

          por leonardo e bruno vim para curitiba. eu venci a luta, na minha ânsia por filhos. não são meus nem da mãe. eles se pertencem a si mesmos.

          utilizaram-nos para se fazerem gente. forçaram eles a nossa realidade, para se tornarem reais. a eles nunca interessou, nem vai jamais interessar, todo o jogo de vivências, terríveis ou cheias de esplendor, que se fez necessário entre o pai e a mãe, para que a sua ânsia pela vida se concretizasse.

          o futuro condena o passado. eles eram necessários à Vida. e a Vida cumpriu sua missão. o resto são migalhas de destino.

          migalhas de destino. chore quem quiser. chore quem não conseguir evitá-lo.

          sorria quem puder.

 

204.

          U…, você é hoje um homem bonito. forte, louro, olhos verdes e uma barba espessa. gostaria de ver seu corpo nu e observar o desenho lindo do seu sexo, cujo tamanho tanto me perturbou. mas aquilo de que mais gostaria mesmo era de conversar com você sobre as nossas incansáveis brincadeiras de lutas, em que mais nos abraçávamos do que nos atracávamos. que lembra você disto? o que ficou de tudo? como ficou?

          quem sabe um dia farei isto.

          queria dar na boca do adulto que você é hoje, um beijo que chegasse aquele adolescente que você foi, tão fofinho, ingênuo e manso.

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